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O instituto da competência repressiva universal apresenta poucas características incontroversas, sendo a sua longevidade uma delas. A doutrina mostra-se bastante convergente no que diz respeito ao seu longo histórico78. Outra noção compartilhada pelos estudiosos é seu desenvolvimento não linear79. A nosso ver, entretanto, a impossibilidade de se verificar uma clara progressão no exercício da competência repressiva universal não é apenas um dado histórico, e sim um elemento indicativo da ocorrência de uma mudança de fundamento, a ser explorada no item I. iv. deste capítulo.

As origens da competência repressiva universal podem ser traçadas desde a Idade Média, quando era exercida pelas cidades do Norte da Itália contra combatentes, sob o argumento de que, fora das fronteiras da cidade, eles ficariam impunes80. Grotius81 também tratou da competência repressiva universal em seus estudos. A associação do instituto ao combate à pirataria82 é, no entanto, a forma ancestral mais conhecida da aplicação da

41 competência repressiva universal, sendo ainda possível83, apesar de atualmente contestada por alguns estudiosos.84 Em relação à pirataria, justificava-se a competência repressiva universal não só com base no fato de o delito ocorrer em alto-mar, lugar onde a soberania estatal não atinge, mas também pelo critério de serem os piratas considerados hostis humani generis85, ou seja, inimigos de toda a humanidade. Não era, entretanto, a gravidade do crime que lhes conferia essa característica, a denominação hostis humani generis devia- se ao fato de os piratas poderem atacar indiscriminadamente, representando, dessa maneira, uma ameaça potencial a todas as soberanias86.

Era de se esperar que um instituto tão antigo quanto a competência repressiva universal já tivesse sido plenamente consolidado pelo direito internacional penal, mas, como será demonstrado, ainda existem grandes e contundentes questionamentos a seu respeito, o que pode, em parte, explicar sua descontínua evolução. Em breves linhas, observa-se a seguinte intermitência no exercício da competência repressiva universal: foi aplicada em relação à pirataria e ao tráfico de escravos87 (séculos XVI a XIX88)89; passou por um grande período sem exemplos relevantes; voltou à tona com o caso Lotus90 (1927),

83 Sobre a aplicação da competência repressiva universal no combate à pirataria, ver: art. 19 da Convenção

42 ainda no âmbito da Corte Permanente de Justiça Internacional; depois regressou com os diversos casos91 que sucederam à Segunda Guerra Mundial e que não haviam sido analisados pelos tribunais militares internacionais de Nuremberg ou Tóquio; retornou novamente com o caso Eichmann92 (1961); para ser outra vez esquecida93 e, enfim, reavivada de forma veemente durante o pós-Guerra Fria94, com o caso Pinochet (1998) e com o aperfeiçoamento das legislações internas, sobretudo de países europeus, especialmente a Bélgica.

Nas duas últimas fases do exercício da competência repressiva universal assinaladas acima

43 competência repressiva universal95

44 É sobre o período pós-Guerra Fria que este estudo vai debruçar-se. A atual tomada de fôlego da competência repressiva universal teve seu início com o caso Pinochet96, e os casos mais relevantes desde então que serão analisados no próximo capítulo. A nosso ver, o caso Pinochet foi fruto de seu momento histórico. Se o fim da bipolaridade permitiu um novo diálogo e possibilitou o consenso e a formação de novos valores comuns à comunidade internacional, ele também trouxe consigo a emergência de conflitos que antes estavam sufocados sob o poder das duas grandes potências. Os conflitos nos Balcãs e em Ruanda repetiram violações de direitos humanos que já se imaginava não serem mais possíveis desde a Segunda Guerra Mundial. Aquelas tão graves atrocidades, umas seguidas das outras, reavivaram na humanidade o sentimento de impotência. A política internacional fracassou e não impediu o horror. A justiça internacional penal, não sendo sua atribuição impedi-lo, respondeu com um novo arcabouço institucional97 (Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, Tribunal Penal Internacional para Ruanda e Tribunal Penal Internacional) e produziu seus julgamentos na expectativa de que eles ressoem para o mundo uma verdade dos fatos, a impunidade dos responsáveis e a necessidade da não- repetição.

Compartilhamos o entendimento de Inazumi98, ao afirmar que o longo período de aplicação da competência repressiva universal permite identificar mudanças em seu exercício. No chamado período clássico, que acima identificamos como a época em que a competência repressiva universal concentrou-se sobre o crime de pirataria, o instituto tinha seu exercício facultado aos Estados e era complementar às demais competências. Esse quadro sofre alterações com o direito internacional moderno, em que o exercício da competência repressiva universal começa a ser aventado como possibilidade para o julgamento dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, ainda que essa ideia tenha enfrentado a oposição de alguns Estados. A relutância teria diminuído a partir dos anos 1970, com a expansão da

96 É possível identificar alguns casos baseados na competência repressiva universal que antecederam o caso

Pinochet na década de 1990, como o caso Refik Saric na Dinamarca e o caso Klaus Barbie na França, mas este será considerado como o ponto de partida por ter sido o mais comentado pela doutrina internacionalista. Sobre os efeitos que decorreram do caso Pinochet,

45 competência repressiva universal em tratados e convenções que lhe conferiam um caráter de competência principal e de obrigatoriedade, assim como influenciavam a formação de um costume internacional. O exercício mais ativo do instituto só se concretizou algum tempo depois, quando foi percebido como resposta às terríveis atrocidades cometidas na década de 1990.

Desde Grotius, passando pela pirataria, pelo caso Lotus, pelo fim da Segunda Guerra Mundial e os tribunais de Nuremberg e Tóquio, pelo caso Eichmann, pelo fim da Guerra Fria e os tribunais penais internacionais para a ex-Iugoslávia e para Ruanda, até chegar aos casos atuais, com destaque para Pinochet e Yerodia (Caso Congo versus Bélgica), é inegável que, em relação à competência repressiva universal, observa-se um aumento: (i) do número de legislações nacionais que a preveem; (ii) da quantidade de convenções e tratados internacionais que a incorporaram diretamente ou que a permitiram na fórmula aut dedere aut judicare; (iii) do número de casos em que tem sido exercida99 e (iv) do apoio que vem recebendo por parte da doutrina e de setores da sociedade internacional.

Essa maior visibilidade e institucionalização da competência repressiva universal não a previnem contra eventuais retrocessos em seu desenvolvimento. Nota-se, por exemplo, que ainda existe pressão para que os Estados restrinjam sua aplicação ao aprovar as leis que a regulamentam100. A legislação belga, que tinha uma das previsões mais amplas quanto ao exercício da competência repressiva universal, como verificaremos no item II. ii. a, foi limitada em seu escopo justamente após sofrer grande pressão internacional. Nesse sentido, reiteramos o entendimento de que o pleno e adequado exercício da competência repressiva universal não prescinde de regulamentação pelo direito internacional penal.

99 O número de casos em que a competência repressiva universal é exercida aumentou, mas não se deve

considerar que a prática já está amplamente disseminada como mecanismo da justiça internacional penal. Conforme Marks:

46 Em seu estágio atual, esclarece Brown101, a competência repressiva universal encontra-se num continuum, uma escala crescente de sua aplicação em vários níveis contra diferentes crimes internacionais. Ou seja, diante da indefinição de seu desenvolvimento no direito internacional penal, resta mostrar as controvérsias que cercam a competência repressiva universal e trabalhar para a superação dos obstáculos que dificultam seu exercício na prática dos tribunais.

Na linha do tempo do exercício da competência repressiva universal pode-se claramente identificar uma mudança em seu perfil. A mudança não está relacionada à sua aplicação: o instituto continua sendo uma maneira de um tribunal nacional estabelecer sua competência sobre um fato típico ocorrido fora de seu território, cometido por autor estrangeiro e com vítimas de outra nacionalidade. O que os dados históricos evidenciam, além da descontinuidade do exercício da competência repressiva universal, é a mudança de sua motivação. O combate à imunidade permanece, mas a ele é agregado o conteúdo da proteção aos direitos humanos. Quando este conteúdo, cuja força expansiva é inegável, atinge o instituto da competência repressiva universal, ele a transforma. Já não se pode mais fundamentá-la nas mesmas bases da pirataria de séculos atrás, é preciso agregar-lhe as preocupações de uma comunidade que ensaia seus passos rumo à formação de valores compartilhados.

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