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3 IMAGEM E LINGUAGEM

3.4 IMAGEM COMO LINGUAGEM

A imagem tem tido um importante papel na história da humanidade nesta inserção da cultura nos sujeitos. Na manutenção da história dos vencedores, na estetização dos modelos educativos, nas imagens dos livros escolares.

Percorrendo o desenvolvimento histórico da linguagem percebe-se que as grandes civilizações hídricas na África e Oriente Médio são os divisores de água entre o que se denomina Pré-história e História Clássica, períodos distintos no tempo histórico por terem desenvolvido linguagens codificadas por meio de pictografia e símbolos cuneiformes.

As produções de arte e de imagem, nesta ocasião, ainda estão arraigadas ao culto religioso e aos melindres causados pela verossimilhança. Entretanto, também, é neste período que fica bastante perceptível a organização de valores e significações estruturadas dadas às técnicas e aos objetos imagéticos. Em algumas dessas sociedades, como no Egito e Mesopotâmia por exemplo, era predominante uma normatização da produção imagética, por meio do uso de padrões rígidos para a representação de imagens, principalmente para a representação de seres humanos.

Neste contexto podem-se perceber alguns entrecruzamentos relevantes para a necessidade de uma padronização da produção imagética. Um primeiro viés está na existência (ou possível necessidade de permanência) de um misticismo da apreensão da alma pela representação verossimilhante, comum às culturas ditas primitivas. Um segundo viés estaria aliado às dificuldades para o desenvolvimento de uma representação naturalista em larga escala para ser disseminada em todo o domínio territorial, visto que estas sociedades tiveram seu apogeu em épocas de grande expansionismo territorial. Estes fatores aliados podem sugerir uma necessidade de ‘demarcação’ por meio da criação de uma identidade visual, idéia sustentada, pelo controle da produção de imagens pela classe dominante, como forma de dominação dos discursos, das narrativas e, portanto, da história.

A produção imagética destas sociedades que perdura até os dias de hoje é fruto de grande esforço social, necessitando de vultosos recursos para ser produzida. Os grandes recursos econômicos estavam concentrados nas classes dominantes, o que sugere o uso de uma grande força bélica e/ou uma larga ideologização para o recrutamento de grandes massas populacionais para seu desenvolvimento, principalmente das obras arquitetônicas.

Em termos comunicacionais, a representação de imagens em materiais de longa durabilidade visa garantir a manutenção das narrativas e discursos vigentes, assegurando o empoderamento dos representados e, conseqüentemente, a manutenção de seu entesouramento. Isto advém da valorização da imagem pelo culto religioso, que fez perceber àqueles que buscam ter ou manter o poder, que a imagem junto às narrativas, auxiliavam uma fetichização dos governantes em frente àqueles que não detêm o poder. 26

Assim, as classes dominantes atendiam a duas demandas: a religiosa, mantendo os dogmas necessários à manutenção da vida eterna e às demandas políticas, de registro e memória dos fatos sociais e manutenção do poder, já que os processos produtivos das grandes obras (e imagens) eram financiados pelos governos e efetivados pela força política, física e/ou religiosa, conforme cada época histórica.27

Em algumas civilizações a ‘abstração’ da imagem chega ao ponto de criação de pictogramas28, ou seja, permite a criação de símbolos para representar objetos ou fatos por meio de desenhos entalhados em pedra ou argila ou grafados em couro ou

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Esta dualidade entre misticismo e poder pode ser percebida na arte egípcia que possuía uma característica própria: a naturalista para a representação fiel dos elementos da natureza, com a captação de detalhes nas pinturas e a abstração, como denomina Hauser (1982, p. 62), nas convenções adotadas para as representações imagéticas dos seres humanos e seus deuses, extremamente formalizadas e idealizadas. “Renunciaram a obter a ilusão da unidade e a unicidade da impressão visual, renunciaram à perspectiva, à escala visual e às intersecções no interesse da clareza, e esta renúncia se estabilizou em tabus que provaram ser mais fortes do que qualquer desejo eventual de conformidade fiel à natureza”.

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Nas sociedades da Mesopotâmia, que incluem Babilônia e Assíria, afirma Hauser (1982, p. 77-8) que, houve uma das formas mais violentas de despotismo e intolerância da religião com a vida urbana e a arte. A arte instituída possuía forte racionalismo ‘abstrato’ e as reminiscências da arte popular e camponesa são exíguas, insignificantes com relação a outras civilizações daquele período. Este fato sugere ao autor que toda a produção de arte atendia somente à corte e à religião, sendo coordenadas somente pelo chefe político e pelos sacerdotes.

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“[...] desenhos ou sinais surgiram relacionados diretamente com as sílabas, palavras ou frases pronunciadas” (FRUTIGER. 1999, p. 87).

papiro. Surge, então, o alinhamento destes caracteres como uma organização lógica dos dados, que dá o encaminhamento final para a escrita.

A escrita ratifica o uso da linguagem como dominação social, pois somente a história que de alguma forma interessava àqueles que detinham o conhecimento deste código permaneceria registrada junto às imagens. A expansão comercial para entesouramento, as divergências religiosas e políticas baseadas nos costumes pós- tribais, a luta pela posse de terra e riquezas, somados aos controles da imagem pelo poder dominante, associadas ainda às regulações do acesso às leis postas em textos escritos, entre outros agravantes, geraram o cisma entre as duas grandes correntes teológicas predominante do mundo antigo lentamente separando o ocidente do oriente médio (mundo árabe), ambos berços da civilização ocidental: uma espécie de ‘iconomania’29 e a iconoclastia, respectivamente.

Quanto mais as civilizações dominantes caminhavam em sucessivas diásporas para o ocidente, maior ênfase é dada à imagem, que ganha novas funções, usos, valores e significados. Lévy (1999) cita que antes da escrita não havia iletrados. A imagem, por mais abstrata e abstraída de representações naturalistas que seja, permite que alguma percepção seja efetivada, pela dinâmica das cores, pela técnica utilizada e pela materialidade dos insumos. Já a escrita é um código fechado. Somente aqueles que detêm o código podem decriptá-lo.30

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Denominou-se de ‘iconomania’ o movimento da Igreja Católica, que fez intenso uso de imagens para a catequização de seus fiéis e aos governantes que adotaram este recurso em seus regimes políticos como forma de perpetuação de seus feitos. Este movimento tem uma tendência inversa aos movimentos de iconoclastia como o Bizantino, Islâmico e Protestante que contestavam os usos decorativos, didáticos ou de adoração de alguns tipos de imagens.

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Dos fenícios e hebreus herda-se pouco das imagens, mas muito de sua forma de manter a história e de sua cultura simbólica, conhecimentos da astronomia, astrologia, princípios religiosos. Dos hebreus o conceito de história que “[...] tem um significado, e por isso encerra ensinamento válido para a vida cotidiana”, onde o passado deve ser narrado “enquanto influi sobre o futuro” e enquanto encerra um desígnio de Deus, ligado ao ‘progresso’ (CAMBI. 1999, p. 70). Quanto à cultura dos fenícios, sobrevem aos conhecimentos técnicos e de navegação, “a descoberta mais significativa [...] do alfabeto, com 22 consoantes (sem as vogais), no qual derivam do alfabeto grego e depois os europeus, e que aconteceu pela necessidade de simplificar e acelerar a comunicação” (CAMBI. 1999, p. 68). Da remota ilha de Creta, vem a arte pictórica, espontânea, colorida e exuberante, afirma Hauser (1982, p. 84). Apesar de manter a mesma estrutura social enrijecida e hierárquica a vida artística gozava de ampla liberdade criativa. Com economia baseada nas navegações, como ponto estratégico no meio do Mar Mediterrâneo, era porto de diversas influências estilísticas. “[...] o caráter modernista dos cretenses relacionava-se provavelmente com o caráter fabril e de produção em massa das suas obras de arte, destinadas a um amplo mercado de exportação” (HAUSER, 1982, p. 88). E a influência na formação da arte grega é inegável. É certo que os gregos conseguiram evitar o perigo da 'estandardização', não obstante o fato de se

Para acessar o universo das significações é necessário conhecer os meios de apropriar seus conhecimentos, seus sistemas de signos, ou seja, sistemas semióticos e linguagens em suas várias formas, que foram desenvolvidos pelos seres humanos no percurso da história. A utilização de signos e sistemas semióticos é uma atividade humana passada de geração a geração e não se restringe somente às linguagens orais e escritas.

[...] Observamos que as operações com signos aparecem como o resultado de um processo prolongado e complexo, sujeito à todas as leis básicas da evolução psicológica. Isso significa que a atividade de utilização de signos

nas crianças não é inventada e tampouco ensinada pelos adultos; ao invés

disso, ela surge de algo que originalmente não é uma operação com signos, tornando-se uma operação desse tipo somente após uma série de transformações qualitativas (VIGOTSKI, 1998, p. 60).

Essas afirmações são relevantes, pois não afastam a necessidade de compreensão da imagem das especificidades dos corpos biológicos para experimentá-la e da presença da imagem junto ao grupo social para percebê-la e significá-la. Conclui-se que o acesso ao universo da leitura de imagens e a compreensão de sua significação depende do acesso dos ‘leitores’ a esses sistemas de signos, que se modificam ao longo da história e que se aprendem através do outro, pela mediação semiótica dos signos.

Faz-se necessário incluir neste debate a percepção de que a imagem na escola é posta como atividade complementar e de desenvolvimento motor para o alcançar a escrita. Após a aquisição da escrita, as atividades ligadas às artes (inclui-se aqui o desenho) são reduzidas e enfatizadas as atividades ligadas ao conhecimento dos conceitos abstratos (ou científicos). Por outro lado, fora da escola cresce o acesso dos sujeitos aos meios de comunicação cada vez mais imagéticos ou meios miscigenados de textos, áudio, imagens, movimento e interação. Walter Benjamin (1994) afirma que a imagem passou a fazer parte do cotidiano das pessoas como recurso documental, comercial e, também, doméstico.

encontrarem na posse de uma industrialização e igualmente desenvolvida; mas este fenômeno apenas prova que na história da arte as mesmas causas nem sempre produz em os mesmos efeitos, e que as causas são demasiado numerosas para serem totalmente explicitadas pela análise científica (HAUSER. 1982, p. 88).

Benjamin caracteriza o espectador, em frente à observação de uma obra, como progressista ou retrógrado. Progressista – se caracteriza pela ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado, e a atitude do especialista, por outro. Retrógrado - “Quanto mais se reduz a significação social de uma arte, maior fica a distância, no público, entre a atitude de fruição e a atitude crítica. [...] Desfruta-se o convencional, sem criticá-lo” (BENJAMIN, 1994, p. 187-188).

A reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte. Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin. O comportamento progressista se caracteriza pela ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado, e a atitude do especialista, por outro. Esse vínculo constitui um valioso indício social (BENJAMIN, 1994, p. 188).

Segundo Benjamin, os modos de exibição da imagem, também mudaram com o tempo. Na Idade Média (séculos XVI, XVII e XVIII), nas cortes, igrejas e conventos, recepção coletiva das obras não se dava simultaneamente, e sim por meio de ‘inúmeras mediações’, ou seja, sessões de apresentação da obra. É preciso levar em conta que a grande maioria da população desconhecia os códigos da escrita. Portanto, as ‘catequizações’ eram feitas por meio das imagens, com pequenos grupos que eram orientados à medida que percorriam os corredores e galerias ilustradas.

Benjamin aponta que “[...] No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. [...]” (BENJAMIN, 1994, p. 169). Explica o autor que com cinema, abarcado pela indústria capitalística moderna, as massas populacionais são impedidas de se verem reproduzidas nas telas31 e são mobilizadas pela indústria publicitária a corromper e falsificar seu interesse original, impelindo ao consumo, para que se sintam semelhantes aos astros e/ou seus personagens, em uma espécie de empoderamento por verossimilhança.

Fora do âmbito da escola as formas de aquisição de conhecimento se processam muitas vezes mediadas pelos meios de comunicação de massa, mormente em

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Os primeiros filmes foram captados em ambientes externos, ruas, estações de trem, eventos. Como as ambientações eram atividades cotidianas, as pessoas se viam ou se viam espelhadas nesses filmes. Outras vezes, filmavam-se eventos diversos e cobrava-se para assistir as projeções em seguida. Com o avanço e imensa aceitação da técnica pela audiência, das captações fortuitas, passou-se a produções roteirizadas: inicia-se a indústria do cinema.

frente da televisão. Na escola, forma instituída pela sociedade para padronizar e disponibilizar seus sistemas estabelecidos às novas gerações, estão se enfatizando as demais linguagens e tecnologias que compõem o universo cultural dos sujeitos? Que novas significações estão postas nas imagens ao longo de história?