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3. IMPLICAÇÕES DO CÂNCER DE MAMA NA SUBJETIVIDADE FEMININA

3.3 Imagem corporal

A patologia não devasta somente a carne, mas também a imagem especular. Essa vestimenta imaginária, construída através dos anos e das experiências vividas se distorce e o sujeito precisa se reconhecer no que vê, ainda que não pareça ser ele, o que remete ao Estádio do Espelho, conceito desenvolvido por Jacques Lacan.

O estádio do espelho é, para Lacan, o momento inaugural de constituição do eu, no qual o infans, aquele que ainda não fala, prefigura uma totalidade corporal por meio da percepção da própria imagem no espelho, percepção que é acompanhada do assentimento do outro que a reconhece como verdadeira. (COUTINHO JORGE, 2005, p.45)

Mais do que uma fase constituinte da vida da criança, o estádio do espelho é um momento constitucional que perpassa toda vida do sujeito. Esse momento de constituição do Eu, Lacan conceituou a partir da leitura que fez acerca dos movimentos inerentes do narcisismo primário.

O “estádio do espelho” ordena-se essencialmente a partir de uma experiência de identificação fundamental, durante a qual a criança faz a conquista da imagem de seu próprio corpo. A identificação primordial da criança com esta imagem irá promover a estruturação do “Eu”, terminando com essa vivência psíquica singular que Lacan designa como fantasma do corpo esfacelado. De fato, antes do estádio do espelho, a criança não experimenta inicialmente seu corpo como uma totalidade unificada, mas como alguma coisa dispersa. (DOR, 1989 p. 79).

A nomenclatura estádio do espelho, não se atribui a uma experiência real da criança diante do objeto espelho. O que ela designa é o modelo de relação da criança com seu semelhante “[...] através da qual ela constitui uma demarcação de totalidade do seu corpo. Essa experiência pode-se dar tanto em face de um espelho como em face de uma outra pessoa” (GARCIA-ROSA, 2009, p.212).

Essa experiência também diz respeito a nosso atrelamento ao outro. Os espelhos – os outros – se alteram ao longo da vida. O outro é nosso espelho e nossa bússola, nos diz que quem somos e para onde vamos,

No plano imaginário, [...], entre o sujeito e o outro, só existe, a princípio, uma fronteira frágil, uma fronteira ambígua, no sentido de que é transponível. A relação narcísica está aberta, com efeito, a um transitivismo permanente. (LACAN, 1957-1958/1999, p.370)

A vivência de estar com pessoas com as quais as experiências as sejam semelhantes, que viveram situações tão dolorosas quanto o indivíduo experienciou, é de suma importância para um sujeito frente ao câncer de mama. No Grupo Renascer5, as mulheres que fazem parte do grupo possivelmente conseguem, através da interação umas com as outras, das trocas de experiências entre si, refazer essa vestimenta imaginária que está fragilizada ou destruída pelo câncer de mama.

A identificação com outras mulheres, que passaram pelos mais diversos tons de sofrimento, assemelha-se a revivência do estádio do espelho superado durante a infância, já que o câncer de mama tem como efeito a alteração da imagem corporal da mulher, seja através da alopecia, através da perda de parte/totalidade de um ou dos dois seios, alterando tanto seu esquema corporal quanto sua imagem do corpo.

A identificação é compreendida às vezes como um fenômeno de imitação imaginaria que só diz respeito à aparência. Entretanto, quando alguém se identifica com uma das pessoas a seu redor, contenta-se em tomar emprestado dela uma de suas características. O aluno vai assumir as maneiras de seu professor; o amigo, o cacoete de seu amigo; a criança a mímica paterna etc. Assim, a identificação é em primeiro lugar, uma operação simbólica, tanto naquilo que a motiva – aquele com quem nos identificamos – quanto no seu mecanismo - a parte pelo todo. (POMMIER, 1991, p. 31).

Nessa perspectiva, Ferreira & Castro-Arantes pontuam:

[...] a imagem corporal, com a qual o sujeito se identifica, sofre abalos ao longo da vida, por se tratar de uma vestimenta que não serve tão perfeitamente ao sujeito, como uma roupa que não garantindo uma veste perfeita convoca a novos ajustes. Dados certos afrouxamentos da imagem na operação de reconhecimento próprio, a imagem corporal exige do sujeito reconstruções frequentes, instaurando ai uma ferida narcísica, ou seja, na operação de investimento libidinal em sua imagem corporal idealizada.(2014, p.47)

Algo na constituição do sujeito, nisso onde ele se reconhece, se sente seguro se constrói em ao redor de uma aparência ilusória, enganadora, já que essa unicidade corporal onde o Eu se reconhece é permanente:

“[...] há uma fluidez nos limites do corpo, deste corpo que molda uma identidade. Isso por que se o sujeito não pode prescindir da identificação em uma imagem, ela sozinha não dá conta do que ele é, ou seja, há algo para além da imagem em o sujeito pode se estruturar. (FERREIRA & CASTRO- ARANTES, 2014, p.47)

Françoise Dolto, psicanalista francesa reconhecida pelo trabalho clínico com crianças, em sua obra A imagem Inconsciente do Corpo, diferencia os termos esquema corporal e imagem do corpo.

[...] Ao considerá-lo uma árvore (o corpo), o esquema corporal seria entendido como as raízes, o tronco e os ramos, pois esses elementos representam a estrutura que compreende a verticalidade, a lateralidade, a biodimensionalidade ou a sua trimendisionalidade. A imagem corporal é representada, na metáfora da árvore, pelas folhagens, frutos, roupagem, aludindo à ideia de que o corpo é resignificado pela sua imagem, formado num processo dinâmico e de múltiplas influências sócio-histórico-culturais, mas que busca a sua âncora na “estrutura” do esquema corporal.(ROCHA, I.P., 2009, p.4)

Dolto (2004) aponta o esquema corporal, inicialmente, igual para todos os indivíduos (em semelhança de idade) humanos. Já a imagem do corpo, é singular, relacionada com sujeito e suas vivências, sendo um compêndio vivente das experiências emocionais.

A imagem do corpo é a cada momento, memória inconsciente de todo o vivido relacional e, ao mesmo tempo, ela é atual, viva, em situação dinâmica, simultaneamente narcísica e inter-relacional: camuflável ou atualizável na relação aqui agora. (DOLTO, 2004, p. 15)

Dolto (2004) sugere que a imagem do corpo, além de sempre inconsciente é sustentada pelo esquema corporal e é através disso que nos comunicamos com outro, já que a imagem do corpo ampara o narcisismo, e é nela que o tempo vai de encontro com o espaço, onde o passado inconsciente ecoa na relação corrente. No presente, sempre há uma repetição de algo de uma vivência passada. “A libido, é mobilizada na relação atual, mas pode-se encontra-se ali, desperta, re-suscitada, uma imagem relacional arcaica, que permanecera reprimida e que retorna, então”. (DOLTO, 2004, p. 15).

“O câncer é uma gravidez demoníaca”, comenta Susan Sontag, em seu livro A doença como metáfora (2007, p. 19). Esse comentário da autora traduz parte do sentimento das mulheres com câncer, que gestam em si, algo maligno. Tanto um ser humano, quanto um câncer, são gerados a partir de uma única célula, que se divide e se multiplica. No ser humano, na construção do aparato biológico essas células permitem a construção de uma vida. No câncer, essas células geram um tumor maligno que pode levar à morte.

O câncer de mama, se dá, justamente no órgão provedor da mulher, onde de uma maneira geral, somos alimentados física e psiquicamente, local que após o nascimento somos acolhidos, um dos símbolos da maternidade. Pommier (1991, p.31) ressalta que “O ser do feminino recebeu desde sempre sua definição canônica na maternidade”

Torna-se mãe aparenta responder as dúvidas de identidade feminina, ainda que tais soluções tragam consigo angústia, quando se realizam, sublinha Pommier (1991). Entretanto, o feminino está para além da maternidade, ainda que a sociedade, por séculos tenha limitado seu valor apenas para procriação, a fim de que a espécie humana se perpetuasse.

Numa época onde, a mulher ainda tinha seu valor reduzido somente a reprodução e cuidados do lar, Freud adentrou na psicanálise ao escutar aquelas mulheres, pois “foi o mistério dos sintomas sem base orgânica, que provocavam simultaneamente dor e prazer, que levou Freud a se aventurar mais intensamente na investigação dos caminhos da alma” (MAURANO, 2014, p.11).

Todavia, ao teorizar sobre a sexualidade infantil e o complexo de édipo, Freud usou como referência o homem e não a mulher, sempre falou da menina a partir do menino. Revistando a obra freudiana, nota-se que apenas dois de seus textos são nomeados com temática do feminino são eles “Sexualidade Feminina” (1931) e “Feminilidade” (1932).

Em seu texto Feminilidade, Freud (1932/2006) comenta que “Através da história, as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade”. Se no início de sua obra, Freud afirmara que o feminino estava associado a passividade, neste texto ele altera essa consideração:

Até mesmo na esfera da vida sexual humana, os senhores logo verão como é inadequado fazer o comportamento masculino coincidir com atividade e o feminino com passividade. Uma mãe é ativa para com seu filho, em todos os sentidos; a própria amamentação também pode ser descrita como a mãe dando o seio ao bebê, ou ela sendo sugada por este. Quanto mais se afastarem da estreita esfera sexual, mais óbvio se lhes tornará o “erro de superposição”. As mulheres podem demonstrar grande atividade, em diversos sentidos; os homens não conseguem viver em companhia dos de sua própria espécie, a menos que desenvolvam uma grande dose de adaptabilidade passiva (FREUD, 1932/2006, p.114).

Mais à frente, Freud (1932/2006) aborda que a feminilidade é um enigma e que a psicanalise é incapaz de solucioná-lo, discorrendo que seria uma tarefa muito difícil descrever o que é uma mulher, mas que a psicanálise se esforça para questionar como a mulher se desenvolve desde criança, e para explicar isso, em linhas gerais, diz que natureza feminina é definida por sua função sexual, enfatizando que essa influência muito se estende e que masculino e feminino não se limitam a anatomia, e como se constitui como tal é algo desconhecido.

Ao final do texto, Freud (1932/2006, p.134) diz que este está “incompleto e fragmentado” e que não menospreza, no entanto, “o fato de que uma mulher possa ser uma criatura humana também em outros aspectos”. Freud não relevou a influência que o social desempenha no desenvolver psíquico e sexual feminino, o que é muito relevante para se entender o enigma da feminilidade.

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