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3. Análise do filme Deixados para trás

3.7. A imagem negativa a respeito dos árabes

As cenas iniciais (1:50-5:20) mostram que parte do ataque bélico contra Israel provém do Iraque, ao leste, e da Síria, fronteira norte de Israel. São países que tanto atacam quanto cedem seus territórios aos aliados para que estes ataquem. Nesse aspecto, a ficção corresponde à vida real; tais países são, de fato, opositores de Israel.

59 HENDERSHOT, H. Shaking the World for Jesus: Media and Conservative Evangelical Culture.

Chicago: University of Chicago Press, 2004, p. 52-64.

60 DRANE, J. The McDonaldization of the Church. London: Darton, Longman and Todd, 2000, apud

MONAHAN, Torin. Marketing the beast: Left Behind and the apocalypse industry, Media Culture Society, 2008, p. 813-830.

61 Extraído do site www.leftbehind.com, no espaço onde os autores colocam seus testemunhos. 62 Ibidem, p. 827.

Na cena 22:00, os banqueiros que lideram e controlam o suprimento mundial de alimentos retratam em seu diálogo os árabes como os grandes opositores de seu plano de esforço humanitário para acabar com a fome no mundo.

Cothren – And who will deliver to the Arabs? Their children cried from hunger and yet, they still chose war.

(Quem entregará aos arabes? Suas crianças choram com fome e, no entanto, ele escolhem a guerra. )

Stonagal – But I’ve rearranged some shipments. When their children die of hunger, the Arabs will cry for peace. It´s all coming together perfectly. (Mas, eu reajustei alguns carregamentos. Quando suas crianças morrerem de fome, os árabes gritarão por paz. Tudo está acontecendo perfeitamente.) Destacamos a imagem negativa a respeito dos árabes, porque tais falas, na verdade, são indiciárias no sentido de que estão inerentemente ligadas à visão dispensacionalista e sua promoção de ideologias.

Rossing63, por exemplo, considera a maneira cristã fundamentalista

dispensacionalista de com preender as profecias em relação a Israel e Palestina uma perigosa questão, que precisaria ser mudada urgentemente. Para ela, pessoas reais estão exposta à destruição, e cada vez mais distantes do cristianismo, porque cristãos americanos, no afã de seguir o script dispensacionalista para o Oriente Médio, promovem políticas estrangeiras prejudiciais a palestinos em favor de Israel. Acreditam que guerra e conflitos estão previstos para o fim do mundo. Tal mentalidade tem incentivado guerras e violências que claramente devem ter Israel como vencedor e palestinos como perdedores. Visões triunfalistas para Jerusalém e o povo judeu não faltam nos livros proféticos. Como é costume do sistema fundamentalista dispensacionalista colar textos para forjar enredos proféticos, é uma constante ler todo os acontecimentos no Oriente Médio por esta lente.

Um assunto que expõe claramente esse tipo de problemática é o sionismo. O movimento foi fundado formalmente em 1897, e sempre teve sua ala cristã64. Contudo,

63 ROSSING, Barbara R. The Rapture Exposed: The Message of Hope in the Book of Revelatio. Colorado:

Basic Books, 2004, p. 47-49.

64 O movimento cristão sionista se estabelece no final do séc. XIX, e um de seus principais ícones é William

Blackstone, um magnata americano de fé metodista conhecido por sua incansável atividade em prol do restabelecimento da nação judaica em Israel. Blackstone passou a empreender esforços em prol do restabelecimento do Estado de Israel motivado por sua visão dispensacionalista da profecia bíblica. Foi colaborador pessoal de líderes pré -milenistas, tais como D. L. Moody, James H. Brookes e Horatio Spafford, este que, por fim, fundou a colônia americana em Jerusalém. Em 1908, Blackstone publicou o

Rossing alerta para o fato de que o problema não é acerca do sionismo tradicional, que objetivava o direito dos judeus de ter sua própria pátria, onde pudessem ser livres e independentes. O problema reside num tipo de sionismo cristão movido por profecias apocalípticas dramáticas, movidas a guerras e violências, e que funcionam como um jogo entre Israel e seus inimigos, em que cristãos sionistas investem suas táticas e bens para que Israel vença. A ideologia cristã sionista é amplamente divulgada por livros como o de Hal Lindsey, bem como atualmente por livros e produtos evangélicos da série Left Behind de Lahaye e Jenkins, entre muitos outros. Infelizmente, é interpretando a Bíblia que eles esperam mais e mais guerras e violência para o Oriente Médio, até culminar no Armagedom. A origem de tudo isso reside na escolha de textos proféticos e apocalípticos que retratam guerra e violência para estruturar sua crença. O filme expõe isso de forma clara: o arrebatamento baseia-se em 1Ts 4,17, uma passagem que não faz parte de um cenário apocalíptico envolto em guerras e violências; antes, é principalmente um texto de consolo. Entretanto, tanto a ficção quanto a doutrina real criam um cenário futuro todo estruturado sobre textos proféticos-apocalípticos65 do

Antigo Testamento com forte conteúdo bélico, como é o caso de Ezequiel 38, e as dramáticas visões de Daniel 7 e 9.

Outros pesquisadores, como Hugh B. Urban66, veem nesse tipo de crença e postura, em que um Novo Milênio de governo divino é iniciado com guerra apocalíptica, um alinhamento muito forte com as políticas de afirmação da hegemonia americana, em grande parte dominando o Oriente Médio e seus recursos petrolíferos, adotadas, por exemplo, no governo Bush – principalmente considerando que autores como Tim Lahaye pertencem à direita conservadora americana. Na mesma linha, Melani McAlister67 sublinha um recrudescimento do sionismo cristão americano, com forte influência na administração Bush, principalmente após o ataque terrorista de 11/09/2001, e sua perigosa política contra o terrorismo. Seu artigo sublinha ainda que a visão fundamentalista de Left Behind faz a Palestina e os palestinos se tornarem literalmente invisíveis, e varrem-nos do imaginário evangélico, no que são seguidos por grande parte de seus leitores americanos.

livro Jesus is Coming (Jesus está voltando), que se tornou best-seller com a venda de mais de um milhão de cópias em três edições e foi “traduzido para trinta e seis idiomas”. Blackstone pode ser considerado o Hal Lindsey de seu tempo. Chegou a ter centenas de exemplares do Novo Testamento impressos em hebraico, os quais foram levados para Petra (atual Jordânia) e lá estocados a fim de que os judeus remanescentes pudessem conhecer o caminho da salvação durante o tempo da grande tribulação. Fonte: http://www.beth-shalom.com.br/artigos/william_blackstone.html.

65 A característica metafórica dos textos apocalípticos sempre aumenta e dá vivacidade ao cenário que

descrevem.

66 URBAN, Hugh B. America, Left BehindBush, the Neoconservatives, and Evangelical Christian Fiction.

Journal of Religion & Society Vol. 8, 2006, p. 1-15.

67 MCALISTER, Melanie. Prophecy, Politics and the Popular: The Left Behind Series and Christian

As ideologias e ambiguidades detectadas nas análises da série estão todas relacionadas à cultura norte-americana, que é o paradigma do sistema fundamentalista dispensacionalista. Entretanto, em outros países como o Brasil, embora não haja influências quanto à política externa, há as mesmas ideologias e ambiguidades características das leituras fundamentalistas da Bíblia. Por exemplo, uma excessiva valorização da cultura judaica, um profundo desconhecimento do ponto de vista palestino, uma visão negativista do futuro na terra, a ponto de evitar o engajamento social, em alguns casos um cinismo em relação ao sofrimento humano etc.