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A ARTE DAS IMAGENS NAS CIÊNCIAS NATURAIS

2 ENTRE A TÉCNICA, A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO DE SENTIDO

2.1 A ARTE DAS IMAGENS NAS CIÊNCIAS NATURAIS

Assim como a arte passou por inúmeras transformações, libertando-se da função representativa, abrindo espaço para a reflexão a ilustração naturalista também agregou novos materiais, mas sem perder nunca a função de representar uma realidade. No decorrer da história a ilustração sofreu influências estilísticas modificando alguns aspectos de sua representação, mas os aspectos mais técnicos e convencionais continuam sendo usados até hoje.

James Roberto Silva (2014) fala sobre os incrementos científicos, técnicos e tecnológicos do século XIX, o autor cita a fotografia como uma das novas especialidades científicas, um dispositivo de apreensão e de representação da realidade objetiva, regido pela racionalidade técnica.

A imagem mecanicamente produzida, proporcionada pelo aparato fotográfico, chegava para abalar os modos de representação e de observação então em vigor: moderadamente, no meio artístico, mas com intensidade no campo científico. De um lado, a fotografia incitava a busca de novas perspectivas para a expressão subjetiva e, de outro, remodelava os conceitos de objetividade e fidelidade tão caros à démarche positivista das ciências. (SILVA, 2014, p. 344)

Com achegada da fotografia surgiram questionamentos sobre o uso da ilustração manual, mas logo se percebeu que a fotografia não substitui à precisão de detalhes de certas ilustrações.

O fenômeno que se verifica, de aproximação entre as noções de ‘ver’ e ‘conhecer’, também participa do processo de incorporação da fotografia pelas práticas científicas em geral, no seio das quais assimilou-se, sem muita resistência, a convicção de que a fotografia constituía ferramenta técnica ideal, superior ao desenho e à pintura para representar a aparência das células, das estrelas, das espécies botânicas, dos cadáveres humanos (O’Connor, 1999, p. 232). Apesar desse pronto reconhecimento, a “crença nas virtudes científicas da fotografia” (Fabris, 2006, p. 162) não significou, é bom lembrar, que a nova técnica tenha substituído por completo a ilustração feita pela mão do artista, da qual se faz uso mesmo nos dias atuais. (SILVA, 2014, p. 344)

A tecnologia contribuiu com melhoria nos equipamentos microscópicos, permitiu uma visualização mais detalhada, o uso de programas de computação,

aliando ao uso da internet contribui para a divulgação de novas imagens, bem como a digitalização de imagens antigas.

Desenhar uma imagem científica não é o resultado de um ímpeto simples riscar de uma ideia espontânea. Representar a Ciência implica um estudo, uma pesquisa em sequencial do método científico (que constitui a coluna vertebral da imagem), mas adornando-a com o sabor e o saber da Estética. O fundamento Científico é assim revestido pelo subjetivo do Belo e a ilustração científica traduz a arte de criar o “veículo” visual ideal para transmitir o Saber pré-existente ou nascido da novidade experimental, diluindo barreiras e obstáculos à passagem do Conhecimento pelos vários estratos/sectores populacionais a que se destina — é pois uma forma de arte dirigida. (CORREIA, 2009, p. 226)

A imagem científica implica estudo, e pesquisa sequencial a partir de um método científico, porém adornando com o saber da Estética. A representação científica passa pelo subjetivo do Belo, traduzido na arte de criar um veículo visual ideal para transmitir um saber pré-existente, através de imagens operativas portadoras de conhecimento.

Ilustração científica é, por definição, um desenho preciso. Ela objetiva informar de forma completa e precisa o assunto que representa a ponto daquele que a estuda se tornar consciente e esclarecido, como se ele mesmo o tivesse visto (WOOD, 1994). A ilustração científica intenciona apresentar estruturas em aparência e organização, de forma que sejam similares ao referente e assim se tornarem compreensíveis entre aqueles que as assistem, para que sejam documentos que possam ensinar, informar, descrever e comunicar (SILVA, 2009). (TROTTA, 2017, p. 21)

Ao analisarmos a questão da ilustração científica na atualidade, percebe-se que ela é um veículo de comunicação presente nos mais diversos campos, possibilitando não apenas apoio as publicações científicas, mas apresentando-se também como meio de sensibilizar e despertar olhares. De modo geral, o desenvolvimento dos meios de comunicação, além de apresentar novos recursos para a representação, possibilitou a popularização das imagens.

Na passagem do século XIX para o século XX, as imagens do mundo natural, sobretudo botânico, passam a ser incorporadas também ao design e estampas decorativas de movimento como o Art Nouveau e o Jugendstil, que pregam uma volta a natureza num momento já bastante dominado pelas máquinas oriundas da revolução industrial. As imagens de plantas e animais produzidas pelos artistas destes movimentos, entretanto, nem sempre seguem à risca a objetividade da representação científica, mas muitas vezes apresentam estilizações e distorções. (FORTES, 2014, p. 81)

Podemos caracterizar a ilustração científica como um estágio intermédio entre o ato de “conhecer” obrigatoriamente (interiorização) e o poder dar a “conhecer” (exteriorização), nesse sentido,podemos destacar a importância da observação direta dos espécimes representados.

No decorrer da história ocorreram algumas falhas nas representações naturalistas como é o caso da famosa ilustração de um rinoceronte feita por Albrecht Dürer por volta de 1515. A ilustração foi feita a partir de uma carta descritiva e um esboço sem, no entanto, representar um rinoceronte real tal imagem circulou por mais de dois séculos no meio científico influenciando outros. Esse fato salienta a importância do papel do ilustrador naturalista enquanto observador, bem como nos faz pensar na imprecisão da ilustração feita sem a observação direta.

Atualmente o desenho de caráter naturalista se faz presente principalmente na ilustração botânica, ilustração zoológica, lustração paleontológica, ilustração arqueológica, ilustração geológica e ilustração médica.

A ilustração científica pode esclarecer várias profundidades focais e camadas sobrepostas, enfatizar detalhes importantes e reconstruir espécimes no papel, resultados inatingíveis por meio da fotografia. Estrutura e detalhes podem ser representados com desenhos em corte, transparências e diagramas expandidos [...] o ilustrador científico desenha apenas aquilo que é necessário. Ele pode omitir, enfatizar e selecionar as partes importantes, esclarecendo detalhes. Ele pode simplificar ou resumir a essência de um assunto e pode mostrar o que está por baixo ou no interior dele. Ele pode idealizar, ignorando variações nos espécimes, como também recriar a vitalidade de um espécime morto. (TROTTA, 2017, p. 38)

Atualmente a arte de ilustrar ciência vive um dilema para ilustrar o natural, a realidade que se pretende explicar, se recorre a uma criação artificial que sintetiza características do real para convencer o receptor de que se encontra frente à verdade. Os aspectos descritivos da ilustração botânica podem ser observados tendo como base os estudos de Rix:

Wilfrid Blunt, o principal crítico de ilustração botânica, escreveu que para os artistas botânicos existe sempre um conflito entre a arte e a ciência: o quanto um espécime deve ser manipulado ou “melhorado a serviço da arte sem comprometer a exatidão e a ciência. Para alcançar um equilíbrio, o artista também deve estudar ou ter conhecimento suficiente da planta para saber quais características são típicas da espécie e quais são únicas do espécime a ser pintado. Uma verdadeira ilustração botânica científica não deve apenas representar o modelo, mas também a espécie como um todo. (RIX, 2012, p. 240)

No livro Theatrum Florae, de Daniel Rabel (1578-1670) (Figura 30), ele retrata uma variedade de narcisos. O desenho em gravura permite-nos identificar diferenças entre as variedades da espécie.

Figura 30 – Daniel Rabel, Gravura de Narcisos, Página do Theatrum Florae, 1622.

Fonte: (RIX, 2014, p. 35).

Hoje em dia a ilustração científica tem seu espaço reconhecido como disciplina curricular dentro das universidades ou em institutos de pesquisa, como atividades livres ligadas as artes naturalistas.

A anatomia humana é um dos tipos de ilustração científica e tem como foco principal os estudos que a medicina se utiliza para documentar, estudar e investigar. Ao investigar as relações entre a anatomia médica e arte, Tatiane de Trotta enfatiza a proximidade dessas áreas, através do recurso do desenho e da pintura na descrição do corpo humano.

A habilidade em representar a anatomia humana se mostrou mais que uma necessidade, como também uma prerrogativa para estudo e avanços no exercício da medicina, pois ela é uma disciplina complexa e a ilustração tem a função de ajudar na cognição, sendo mais eficiente que o texto em conteúdos complexos. (TROTTA, 2017, p. 40).

Dentre dos estudiosos de anatomia Trotta (2017) destaca Leonardo Da Vinci, como um dos primeiros artistas a receber permissão para dissecar cadáveres humanos em Hospitais de Florença, Milão e Roma. Entre 1510 e 1511, o médico e anatomista Marcantonio Della Torre, colaborou em seus estudos e juntos elaboraram um trabalho teórico sobre a anatomia (Figura 31), em que Leonardo fez mais de 200 desenhos, trabalho publicado apenas em 1680 (161 anos após sua morte).

Figura 31 – Leonardo da Vinci, Demonstração conjugada do sistema respiratório, vascular, e genito-urinário do corpo feminino. Desenho, 1510.

Fonte: (KEMP, 2005, s.p.).

Da Vinci ganhou fama como artista que dissecava desvendando os segredos internos do corpo. Kemp (2005) ressalta que os escritos anatômicos deixados por ele

contam uma história um pouco diferente e provavelmente por imposições religiosas se tem registro de apenas uma única dissecação abrangente e bem documentada feita em um cadáver humano completo, os demais estudos são feitos de partes específicas, e dissecações de animais.

Os detalhes de cortes e os ângulos dos desenhos impressionam pelo realismo a influência da geometria e dos conhecimentos matemáticos, influenciou fortemente sua compreensão a respeito pela proporcionalidade que existe no corpo humano.

Martin Kemp (2005) destaca que a única forma de conhecimento válido para Leonardo da Vinci, era olhar para as coisas reais e os fenômenos. Nesse sentido a concepção de Leonardo era que o ato de ver abrangia os dois sentidos do verbo, que são “olhar para” e “compreender”. Ao analisar os sentidos, Leonardo destaca o olho como o instrumento maior.

O olho, do qual se diz ser a janela da alma, é um meio pelo qual o sensus communis [centro coordenador das impressões sensoriais] do cérebro pode contemplar na maior plenitude e magnificência o trabalho infinito da natureza, e o ouvido é o segundo, tendo adquirido nobreza pela narração daquilo que o olho viu. Agora, você não vê que o olho abraça a beleza do mundo? O olho comanda a astronomia; ele faz a cosmografia; ele guia e corrige todas as artes humanas; conduz o homem a várias regiões do mundo; é o príncipe da matemática; suas ciências são as mais corretas; ele mede a distância e o tamanho das estrelas; desvenda os elementos e suas distribuições; faz previsões de eventos futuros pelo curso das estrelas; gera a arquitetura, a perspectiva e a pintura divina. [...] E triunfa sobre a natureza, pois as partes constituintes da natureza são finitas, mas os trabalhos que o olho determina as mãos são infinitos, como o pintor demonstra ao apresentar um sem número de forma de animais, plantas árvores e lugares. (DA VINCI (apud) KEMP, 2005, p. 50)

Leonardo Da Vinci desenvolveu estudos sobre o cérebro e o seu sistema sensorial. A mais antiga dessas suas explorações anatômicas que se conhece é datada de 1489 (Figura 32) e consiste na representação de um crânio inteiro e uma série de desenhos das faculdades mentais e como acreditava que operassem, uma confirmação fisiológica do trajeto da informação, da natureza até o cérebro, situando o nervo óptico em uma situação privilegiada de via de comunicação.

Figura 32 – Leonardo da Vinci, Crânio humano seccionado. Windsor, Desenho, 1489.

Fonte: (KEMP, 2005, p. 53).

Durante a Idade Média copistas associavam plantas a formas humanas, embora essas representações não se caracterizem como ilustrações naturalistas, estas imagens povoaram os mitos e lendas populares, apresentando-se como um elo entre a temática abordada.

A ilustração botânica é uma dos segmentos da ilustração científica, voltada ao registro de espécies vegetais. Muitas vezes é usada a expressão “arte botânica” pelo preciosismo técnico com que são feitas acabam fazendo parte de acervos artísticos. Inicialmente esse trabalho contava com técnicas de gravura elaboradas a partir de ilustrações.

Hoje em dia, as técnicas usadas em tais representações são as mais variadas e vão desde as tradicionais, até as mais modernas.Um procedimento também utilizado atualmente é a ilustração digital que traz a vantagem da redução de tempo de execução, porém exige perfeito domínio técnico da computação gráfica e frequente

atualização na área. Alguns ilustradores aliam as técnicas convencionais da ilustração com a computação gráfica, seja para arte finalizar um desenho iniciado manualmente, ou em um processo inverso um desenho projetado no computador pode ser finalizado manualmente.

A ilustradora Diana Carneiro (2011) que tem atuado na área e destaca as principais técnicas usadas atualmente:

Dependendo da sua finalidade a ilustração pode ser feita, basicamente, de três formas: utilizando somente o desenho (a lápis), o desenho finalizado a nanquim (bico-de-pena) ou a pintura geralmente aquarela. Nos dois primeiros casos, emmonocromia, usando a grafite (lápis) ou a pena e tinta, os elementos básicos do desenho -ponto e linha- são utilizados em todas as modalidades de registro, resolvendo formas, volumes e texturas. Já a pintura traz a vantagem da definição cromática do vegetal e de suas peças, como flores e frutos, facilitando enormemente o processo de reconhecimento do mesmo. (CARNEIRO, 2011, p. 24)

No caso de ilustrações botânicas no meio científico, levam o nome científico em latim, escrito abaixo ou ao lado das imagenscomo podemos observar na (Figura 33).

Figura 33 – Diana Carneiro, Sophronitis coccínea, 1998.

Além do uso em trabalhos técnicos de botânica, por apresentar um apelo estético forte, as ilustrações botânicas estão cada vez mais populares nas produções gráficas em calendários, gravuras decorativas, tecelagens e até mesmo em cerâmicas e louças para cozinha. É comum os ilustradores e botânicos transitarem livremente entre ilustrações puramente científicas e ilustrações para as mais diversas finalidades. Sempre prezando por representar as características descritivas, fiéis às formas e às cores reais, de forma que as plantas sejam facilmente reconhecidas.

Levando em conta a vulnerabilidade em que se encontra o planeta, e a variedade de espécies ainda desconhecidas pela ciência, a ilustração botânica é atualmente um campo em exploração, tendo ganhado bastante espaço recentemente, através da realização de novos estudos e pesquisas, visando ampliar seu uso em diferentes áreas de conhecimentos. Diversas exposições, organizadas em todo o mundo possibilitam aos artistas botânicos exibir suas pinturas, compartilhando conhecimentos e divulgando seus trabalhos, especialmente para colecionadores.

Com essa perspectiva Martyn Rix (2014) acredita que ainda possa haver uma segunda era de ouro da ilustração botânica, onde os trabalhos dos ilustradores encontrem demanda, através da publicação de livros de baixo custo com técnicas de reprodução eletrônica precisas.