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REFLEXÕES ENTRE A TÉCNICA E A ESTÉTICA

2 ENTRE A TÉCNICA, A ESTÉTICA E A PRODUÇÃO DE SENTIDO

2.2 REFLEXÕES ENTRE A TÉCNICA E A ESTÉTICA

A partir das análises anteriores percebe-se que a produção de imagens relacionadas a anatomia e a botânica permeiam dois campos próximos, porém bastante distintos, carregando em suas vertentes as bases do naturalismo científico. Compreender as questões técnicas e estéticas, que envolvem tal produção é fundamental para potencializar o discurso sobre as relações entre anatomia e botânica na produção visual contemporânea refletindo questões estéticas e formais que tais imagens suscitam.

Ao analisarmos o uso de desenhos manuais pela ciência como forma de estruturação e divulgação do conhecimento, percebemos o emprego de recursos das artes visuais nas ciências naturais para a documentação de estudos científicos. Segundo Fernando Correia (2011), a imagem científica desempenha uma relação mimética com o real tornando-se um signo que ao ser observado remete ao referente representado. No entanto, por ser pautada em valores estéticos a ilustração científica

pode nos remeter de forma metafórica a um conjunto de outras imagens que guardamos na nossa memória individual e coletiva, um mundo infinitamente mais vasto do que aquilo que nela está representado.

Sobre as representações de anatomia Trotta, aponta seu espaço dentro da área da medicina:

A representação da anatomia humana está dentro do escopo de estudos médicos e utiliza imagens ilustradas, sejam elas impressas ou digitais, para documentar, estudar e investigar a medicina. [...] Toda representação ou tentativa de modelar algum aspecto do mundo em termos visuais, inevitavelmente tem seu próprio estilo, na medida em que tem uma “aura” visual que permite reconhecer suas origens. (TROTTA, 2017, p. 40)

O estudo a partir de dissecação de cadáveres, realizado há séculos para compreensão profunda do corpo humano, tem efeito de despertar o interesse pela figura humana, tema tão abordado nas Artes Visuais.

No decorrer da história o estudo de anatomia foi uma prática comum para os artistas. O domínio da anatomia tornou-se importante para a reprodução de modelos humanos ou animais, através do desenho ou da escultura, seja através de técnicas tradicionais ou atualmente as digitais.

Uma obra que tem transitado entre os campos da ciência e da arte é A Lição

de Anatomia do Dr. Tulp (1632) (Figura 34) do pintor Rembrandt. A pintura do período

Barroco, retrata uma aula de anatomia do Dr. NicolaesTulp, no momento em que ocorre a dissecação da mão esquerda de Aris Kindt, um marginal que havia sido condenado à morte por assalto. A obra apresenta com destaque a figura do médico ao centro, o único a usar chapéu, talvez um ícone para realçar sua posição diante dos assistentes que acompanham o processo, enquanto analisam um livro. Representa o desejo do homem e sua inquietação por fazer descobertas sobre o funcionamento do corpo humano, seu comportamento, suas verdades, como também a valorização dos estudos anteriores publicados por outros anatomistas.

Figura 34 – Rembrandt, A Lição de Anatomia do Dr. Tulp. Óleo sobre tela, 169,5 x 216,5 cm, 1962, Haia, Holanda.

Fonte: (Museu Mauritshuis13, 2018).

A dissecação permite dar visibilidade aos órgãos internos do corpo em suas inter-relações. O conhecimento sobre proporção da estruturas óssea, tendões, ligamentos, músculos, gordura e de como esses elementos se sobrepõe, cooperando para compreensão das nuances externas do corpo. Ao considerar que a representação correta dos volumes do corpo em um desenho, depende em boa medida do conhecimento anatômico, muitos artistas se dedicam aos estudos de anatomia e dissecação de cadáveres em parceria com laboratórios de medicina.

Atualmente algumas universidades, abrem espaço em seus laboratórios de anatomia para estudos em parceria com artistas. Pensando na aproximação das questões entre anatomia e botânica na produção visual, participei de uma Aula de

Anatomia Artística com Cadáveres14 ministrada pelo professor e artista Gustavo

13https://www.mauritshuis.nl

14 Nesta aula de Anatomia Artística, foram estudados os músculos de superfície e ossos constituintes do esqueleto, bem como suas principais articulações. Sempre relacionando com as questões históricas sobre os estudos de anatomia e suas contribuições na arte contemporânea.

Diaz no laboratório do ICBS (Instituto de Ciências Básicas da Saúde) da UFRGS no dia 22 de maio de 2018 (Figura 35).

A obra A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632) (Figura 34) e a fotografia da Aula de Anatomia Artística com Cadáveres (Figura 35) trazem em comum o olhar atento dos estudantes para o professor, além da imagem do corpo como objeto de estudo, imóvel e despido da vida. Tal observação nos faz pensar que os estudos com cadáveres, realizado há séculos para compreensão profunda do corpo humano, continuam a despertar o interesse pela figura, tema tão prolífico nas Artes Visuais.

Figura 35 – Aula pública de anatomia ICBS- UFRGS, 22 de maio de 2018.

Fonte: (FEIJÓ, Ise, 2018).

No que se refere ao uso de cadáveres para estudos foi sancionada a lei 8.501/92 de 30 de dezembro de 1992 com o objetivo de regularizar aspectos éticos e legais referentes à utilização de cadáveres para fins de ensino na extensão universitária. Segundo essa lei ocadáver não reclamado junto às autoridades públicas sem documentação sem informações referente a endereço de falecimento, em um prazo de até 30 dias, pode ser liberado e encaminhado para um centro de estudos na área da Saúde. Cabe a instituição manter dados de identificação do corpo, tais como:

fotos, dados relativos às características gerais, ficha datiloscópica, e outros dados e informações pertinentes.

Outra forma de obtenção de cadáver para estudo é a doação em vida, esta deve ser feita com base no Artigo 14 da Lei 010.406.202 do Código Civil Brasileiro, sendo permitida a disposição gratuita para fins científicos do corpo no todo ou parte dele depois da morte. Nesse caso o doador precisa realizar declaração ou até testamento, lavrado em cartório, autorizando a doação por parte de familiares, na declaração deve ser especificada a instituição de ensino para qual o doador deseja que seja encaminhado o seu corpo.

Nesta aula foi possível executar apenas alguns esboços rápidos, mais foi de fundamental importância para analisar a estrutura anatômica humana, através do processo de dissecação foi possível compreender como as partes do corpo se sobrepõem.

Figura 36 – Alessandra da Silva, Caderno de estudos. Desenho. 2018.

A partir dessa aula senti um desejo enorme em continuar os estudos através de referências de livros, desenvolvendo uma série de estudos de anatomia (Figura 36), alguns desenhos feitos com grafite e outros com caneta nanquim e uso de hachuras para sombrear.

Há cerca de dez anos, o médico e anatomista alemão Gunther Von Hagens (1945) traçou um caminho paralelo a arte e ciência, causando polêmica no meio artístico. Hagens espantou a comunidade científica ao expor cadáveres plastinados como se possuíssem valor artístico – legítimas obras de arte, em exposições que itineram por todos os continentes até hoje.

Hagens15 desenvolveu uma técnica de conservação dos corpos que denominou

de plastinação, através desse método substitui substâncias orgânicas de corpos mortos por silicone e resina o que permite que os materiais adquiram plasticidade, permanecendo maleáveis, inodoros e secos.

As peças foram dissecadas, abertas, divididas e "desfolhadas" em camadas, ora dando-se ênfase aos músculos, ora à pele, ora ao sistema circulatório, ora ao sistema nervoso. A forma de apresentação lembra aquela de Vesalius e dos anatomistas dos séculos XVI e XVII, época do grande reflorescimento da investigação anatômica, quando as pranchas anatômicas mostravam a estrutura nervosa ou muscular de figuras humanas que, em posições elegantes, posavam tendo como pano de fundo, belas paisagens.

Além de corpos humanos Hagens aplicou a técnica em corpos de animais. Seu trabalho gerou inúmeras críticas e debates sobre questões éticas e religiosas envolvendo a exposição de cadáveres. O conjunto reúne 25 corpos, entre eles um jogador de basquete, um jogador de xadrez, um cavaleiro montado em seu cavalo, uma mulher grávida cujo ventre aberto permite a visão de um feto de oito meses, e um homem carregando a sua própria pele. Os corpos plastinados por Hagens, estiveram em exposições por diversas partes do mundo, no Brasil a mostra Human

15 Gunther Von Hagens, doutor em medicina pelo Departamento de Anestésicos e Medicina de Emergência da Universidade de Heidelberg (1975), logo depois, teve sua fama ligada a essa técnica de plastinização, que ele desenvolveu em 1978, quando trabalhava no Instituto de Anatomia e plastinização e também um Instituto onde põe em prática o trabalho de conservação e fixação das peças anatômicas. Patologia da Universidade de Heidelberg. Hagens possui também uma empresa sediada em Heidelberg, a BIODUR que comercializa os equipamentos e os polímeros utilizados na técnica de plastinização.

Bodies - Maravilhas do Corpo Humano circulou por diversos estados, esteve em Porto

Alegre16 em julho de 2015. Hanges descreve seu trabalho como uma mostra educativa

e não artística.

Hagens transformou seus materiais de estudo em peças de exposição, intitulada Os mundos do corpo. Nas imagens a baixo podemos comparar uma

ilustração feita por Juan Valverde de Amusco17 (1525 - 1562) para o livro A história da

composição do corpo humano publicado em Roma no ano de 1560 (Figura 37).

Figura 37 – Juan Valverde de Amusco. A história da composição do corpo humano. Roma, 1560.

Figura 38 – Gunther Von Hagens, Corpo plastinado - Exposição O mundo dos Corpos, 1994.

Fonte: (Juan Valverde de Amusco18); (Gunther Von Hagens19).

16Disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2015/07/porto-alegre-tem- exposicao-com-corpos-humanos-reais-saiba-mais.html> Acesso em jan. de 2019.

17Nasceu na Coroa de Castela atual Espanha por volta de 1525, estudou e publicou vários trabalhos sobre anatomia. Abra mais famosa de Valverde foi Historia de lacomposicion del cuerpo humano , publicado pela primeira vez em Roma, 1556.

18Disponível em: <https://exhibitions.kelsey.lsa.umich.edu/art-science-healing/vesalius4.php>Acesso em jan. de 2019.

Seus trabalhos fortemente inspirado em Vesalius, agora servem visivelmente de referência para Von Hagens, pela maneira de apresentar o corpo plastinado na exposição O mundo dos corpos (Figura 38).

Gustavot Dias (2018) destaca o uso instrumental atribuído a anatomia – que

por isso tem sido estudada sistematicamente desde o Renascimento, figurando já na antiguidade clássica como um saber necessário ao métier artístico, um padrão de maestria e a bitola da boa arte. Essa distinção durou até a segunda década do

século XX – com pausa de um século para o começo e fim das vanguardas

modernistas – e agora retorna, nas últimas duas décadas, depois de um século de experimentações e implosões do campo artístico, reaparecendo no cenário artístico de modo bem diverso.

Ao desenvolver uma produção em arte que estabelece diálogos com Anatomia e Botânica, faz se necessário pensar além do espaço que a anatomia ocupa na arte contemporânea, analisando também o campo atual da ilustração botânica. Neste

cenário destaca-se Margaret Mee (1909 – 1988), ilustradora botânicas de grande

influência no legado científico brasileiro. A ilustradora de origem britânica veio para o Brasil em 1952, para trabalhar como professora, encantou-se pela exuberância das plantas tropicais, passando a pintar flores que via em viagens para o interior do Brasil. Margaret realizou várias expedições pela Amazônia, observando e desenhando plantas, suas obras participaram de diversas exposições no Brasil e em Londres. Além das ilustrações finalizadas, deixou inúmeras anotações e esboços em seus cadernos de estudos. No entanto, sua importância vai além da produção de imagens, pois além de abrir espaço para a crítica das questões ambientais, influenciou outros artistas ilustradores contribuindo para a formação e a organização dos ilustradores Brasileiros. A técnica utilizada por Margaret Mee é a aquarela, uma das técnicas mais

usadas dentro da ilustração botânica. A aquarela é uma técnica de pintura onde a se

usa tinta diluída em água, a tinta é formada basicamente pelo pigmento colorido moído e um aglutinante, geralmente goma arábica. Como o próprio nome indica, ela se baseia no uso da água, no qual os pigmentos se transferem para a superfície do papel, evaporada a água, o pigmento forma uma mancha de cor sobre o papel, que se fixa através do aglutinante. As principais características da aquarela são a luminosidade, opacidade, transparência e a sobreposição de camadas. O que permite conferir as ilustrações uma grande quantidade de detalhe.

Os pesquisadores Hadna Abreu e Valter Mesquita (2016) analisam as ilustrações produzidas por Margaret Me e conforme conceitos da linguagem visual e da semiótica, destacando que suas ilustrações enfatizam dois estilos. O primeiro grupo de ilustrações (Figura 39) prioriza a neutralidade do fundo do papel, sem muitas intervenções, além de anotações e identificações da ilustração, um desenho de caráter mais científico sobre a estrutura da uma planta. O segundo grupo de ilustrações (Figura 40) apresenta o contexto onde a planta está inserida, priorizando a figura central da planta em primeiro plano, e o fundo é trabalhado em camadas.

Figura 39 - Margaret Mee. Clusia grandiflora,ano e dimensões desconhecidos. Figura 40 - Margaret Mee. Strophocactus wittii, ano e dimensões desconhecidos.

Fonte: (Botanical Art & Artist20).

Após sua morte foi fundada no Rio de Janeiro a Fundação Botânica Margaret Mee (FBMM), atual Fundação Flora de Apoio à Botânica, um centro de pesquisa, que promove bolsas de estudos na área de ilustração botânica. Nas últimas décadas

20 Disponível em: <https://www.botanicalartandartists.com/about-margaret-mee.html> Acesso em: 07, abr. 2018.

outros ilustradores bolsistas contribuíram na criação de centros de estudos e pesquisas em outros estados, como o Centro de Ilustração Botânica do Paraná (CIBIP) a Botânica Arte de Companhia (SP), Núcleo de Ilustração Científica da (UNB), além de cursos, encontros, debates e seminários na área.

Diana Carneiro foi uma das brasileiras bolsista da FBMM no ano de 1997,

adquirindo formação técnica com Christabel King no Royal Botanic Gardens21 e

assumiu o desafio de disseminar seus conhecimentos, atuando na formação de ilustradores botânicos brasileiros.

No intuito de aprender e aprimorar técnicas de ilustração botânica, desde 2016 participo de Cursos de Aperfeiçoamento em Ilustração Botânica (Figura 41) no Centro de Ilustração Botânica do Paraná (CIBIP) sobre orientação da professora e ilustradora Diana Carneiro.

Figura 41 – Estudos de plantas. Aquarela sobre papel Canson. CIBP, 2017.

Fonte: (SILVA, Alessandra, 2017).

21 Situado em Kew/ Londres onde foi criado o projeto Margaret Mee, AmazonTrust que fornece a bolsa de cinco meses com um instrutor.

As aulas são voltadas para a observação direta de plantas, envolvendo aprendizado de técnicas de luz e sombra em grafite, estudo de cores em aquarela. As atividades concentram-se divididas em blocos, focados em desenvolver habilidades de representação de diferentes texturas e cores em folhas, flores, frutos, caules e sementes com a maior fidelidade possível, garantindo perfeito reconhecimento e identificação do vegetal.

Além de desenhar recebemos orientação pra confecção de herbários com anotações e estudo de características morfológicas das plantas. O termo herbário refere-se a um conjunto de espécimes vegetais secas, distribuídos de acordo com um determinado sistema de classificação, que podem ser utilizados para fins de estudo e até mesmo apreciação, funcionando como uma espécie de arquivo onde é possível coletar informações diversas sobre plantas, tais como habitat, aspectos gerais da morfologia do vegetal, entre outras.

Nos herbários as plantas são armazenadas na forma de exsicatas, sendo anteriormente prensadas e secas, após estarem secos, são fixados em cartolina ou outro papel, para facilitar a identificação é indicada a coleta de flores e frutos, é fundamental também o preenchimento de uma ficha com informações relevantes sobre o espécime, tais como quem coletou o material, habitat, data da coleta e dados que se perderão com a secagem, como a coloração das flores, folhas e frutos.

2.3 ARTE CONTEMPORÂNEA: CONFLUÊNCIAS COM O NATURALISMO