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Imigrantes no Núcleo Colonial

No documento Lilian Crepaldi de Oliveira Ayala.pdf (páginas 167-187)

3 A tradução cultural dos processos migratórios em Raízes

3.5 Imigrantes no Núcleo Colonial

A partir do século XIX e até a década de 1930, destacou-se a migração econômica em vista da substituição do trabalho escravo pelo livre. Primeiro, os imigrantes foram para as lavouras e, em seguida, para a nascente indústria, sobretudo no Sudeste do país.469

A diferença primordial entre o migrante africano e o europeu é o livre-arbítrio. Enquanto o primeiro sujeita-se ao trabalho forçado, o segundo veio para o país por

466 CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p.244.

467 BASSANEZI, Maria Sílvia C. Beozzo. Família e imigração Internacional no Brasil do Passado. Estudos de História. Franca, SP: UNESP, v.6, n. 2, p. 163-191, 1999.

468 RAMOS, Adriana M.C.& SOUZA, Monica de. Cotidiano e História em São Caetano do Sul. São Paulo: Hucitec; São Caetano do Sul: Prefeitura de São Caetano do Sul, 1992. p.35.

vontade própria, mesmo que o contexto do país de origem impulsionasse a emigração.

O imigrante, o trabalhador dessa invenção social, era um ser de direitos e um ser de vontades. Mas era acima de tudo um ser de imaginação. O que diferenciava o colono e o escravo, é que o colono podia sonhar o próprio modo de sua inserção na sociedade que com ele nascia.470

Essa capacidade de imaginar e sonhar com o futuro foi fundamental para a preservação e divulgação dos relatos dos primeiros imigrantes. Era uma questão de orgulho transmitir aos descendentes, sobretudo oralmente, os feitos e conquistas, da viagem à construção de novas formas de vida. Peter Burke diz que a cultura se inicia na oralidade, na transmissão oral de relatos e histórias. Apesar da escrita, as marcas da tradição oral, muitas vezes, aparecem nas letras impressas. Boa parte dos textos da revista são dependentes dos relatos orais dos imigrantes e seus descendentes, que discorrem, majoritariamente, sobre o trabalho e a vida do trabalhador.

Os imigrantes italianos do Núcleo Colonial herdaram a estrutura da antiga fazenda beneditina, e isso foi determinante para a vida privada e pública. “Além da casa-grande, das senzalas e da capela da antiga Fazenda, o núcleo colonial herdara, também, ‘três fornos para tijolos, telhas e louça’.”471

Novaes, na obra “Nostalgias”, que congrega crônicas de diversas épocas, descreve as olarias daquele tempo: “os fornos característicos, cozendo os tijolos; o burro girando a pipa, as carreiras de tijolos crus cobertos com telhas, a banca do lançador... A fumaça dos fornos traz o cheiro gostoso do barro cozido.”472

Wilson Loduca reafirma a importância da colaboração dos imigrantes de origem italiana para o desenvolvimento fabril da cidade:

Tudo apontava para as jazidas argilosas e foi por aí que a atividade industrial nasceu. Os colonos italianos logo desistiram de suas tentativas de desenvolver lavouras (...) por força da necessidade, aprenderam uma nova profissão e dedicaram-se a transformar a argila em produtos vendáveis e de grande aceitação. A argila das ‘minas’ sancaetanenses era de primeiríssima qualidade e recompensaram os esforços de famílias inteiras que tangiam as mulas atreladas aos varais das pipas onde o barro era batido, enchiam as formas, empilhavam os tijolos, trabalho pesado, duro, bruto, extenuante,

470 MARTINS, José de Souza. O imaginário na imigração italiana. São Caetano do Sul: Fundação Pró-Memória, 2003. p.102-103.

471 Idem. Subúrbio: vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha. 2.ed. São Paulo: Hucitec; Unesp, 2002.p.53.

472 NOVAES, Manoel Cláudio. Nostalgias. São Paulo: Meca; São Caetano do Sul: Prefeitura Municipal de São Caetano do Sul, 1991. p.14

mas que mostrava um novo caminho, encarado com coragem e determinação. O progresso começava a se mostrar possível.473

Em 1883, havia 251 colonos no Núcleo. Cinco anos depois, em 1888, eram 314 pessoas: 101 brasileiros e, o restante, italianos. O mesmo censo populacional apontava as principais posses: 14 cavalos, 38 muares, 68 bois, 69 vacas, 22 porcos e oito cabras, além de plantações de videiras, milho, feijão repolho, batata e árvores frutíferas.474 A alimentação dos colonos italianos era composta por carne de boi,

peixe, carne de capivara, minestrone (sopa), polenta e macarrão.475

Já na primeira edição da revista, de julho de 1989, o artigo “Olarias trazem industrialização na cidade”476, escrito por Sonia Maria Franco Xavier, discutia a

questão do trabalho imigrante italiano na cidade e sua contribuição para a produção de telhas e tijolos. Outros três artigos do primeiro número da revista também abordavam a imigração do mesmo grupo cultural: “Memória do trabalho e do trabalhador”477, de Ademir Medici, e “No tempo dos ladrilhos de cimento”478, de

Mário Botteon.

Feres destaca que “o desenvolvimento da atividade oleira não rompeu com a característica de trabalhador familiar.”479 As tradições italianas foram mantidas ao

máximo. Joanna Fiorotti, em depoimento dado a Feres, explica a relação direta entre trabalho e família em fins do século XIX e início do XX:

Agora muitos daqueles que tinham olarias aqui em baixo, no Bairro da Fundação, tiravam suas filhas da escola quando completavam o segundo ano, sabe por quê? Para irem lançar tijolos! Estudaram pouco elas... Era costume os filhos trabalhar todos com os pais nas olarias das famílias.480

O local era dividido da seguinte forma, segundo descrição do engenheiro Leopoldo José da Silva, em relatório ao presidente da Província:

Existe nesta Fazenda uma casa térrea regular com bastantes compartimentos, situada dentro de um pátio cercado por muros de

473 LODUCA, Wilson. São Caetano: de várzeas alagadiças a Príncipe dos Municípios. São Paulo; São Caetano do Sul: Hucitec; Prefeitura de São Caetano do Sul; Fundação Pró-Memória, 1999. p.68. 474 RAMOS, Adriana M.C.& SOUZA, Monica de. Cotidiano e História em São Caetano do Sul. São Paulo: Hucitec; São Caetano do Sul: Prefeitura de São Caetano do Sul, 1992. p.30

475 NOVAES, Manoel Cláudio. Op.cit.p.4.

476 XAVIER, Sônia Maria Franco. Olarias trazem industrialização na cidade. Revista Raízes, 1. São Caetano do Sul, jul.1989.p.7-9.

477 MEDICI, Ademir. Memória do trabalho e do trabalhador. Revista Raízes, 1. São Caetano do Sul, jul.1989.p.32-35.

478 BOTTEON, Mário. No tempo dos ladrilhos de cimento. Revista Raízes, 1. São Caetano do Sul, jul.1989. p.13.

479 FERES, Cristina de Lourdes Pellegrino. Herdeiros da Fundação: “lavoro” e “famiglia” em São Caetano. São Paulo; São Caetano do Sul: Hucitec; Prefeitura de São Caetano do Sul, 1998. p.97. 480 Idem.p.98.

construção de taipa, tendo de um lado doze pequenos quartos separados da casa principal por uma capela; todas essas acomodações têm sido conservadas e se acham alojados (nela) imigrantes que destinam-se para este núcleo.481

Aos poucos, o Núcleo ganhava características próprias, diferenciando-se da antiga Fazenda, conforme descreve Loduca

começava a tomar feição e os italianos a pressentir um futuro mais promissor. Já se podia ver em seus olhares um sentimento de apego à nova terra, que respondia com produção e, afinal, poderia ser possível viver naquele lugar, criar família, firmar raízes.482

A estranheza cultural também dava sinais. “Dizem que as italianas estranharam a maneira como as negras lavavam as suas roupas no Ribeirão dos Meninos. Isso mostra que os antigos moradores da região conviveram com os imigrantes recém-chegados.”483 Dos 150 colonos instalados, 120 estavam

insatisfeitos484 e as reclamações começaram logo na chegada, já que muitos

imigrantes acreditavam que desembarcariam em Santa Catarina, onde já tinham parentes. Havia também a esperança de voltar para casa rapidamente.

A descoberta de que haviam sido trazidos a lugar inteiramente diferente, a província de São Paulo, criou um estado de forte tensão no relacionamento com as autoridades encarregadas do serviço dos colonos, que se manifestou já uma semana após a chagada a São Caetano, no dia 4 de agosto de 1877.485

Porém, as tecnologias facilitaram a adaptação, como o trem, o navio a vapor, o correio e o telégrafo, que permitiam aos emigrados uma rápida comunicação com os familiares que ficaram na Itália. As promessas da Agência Oficial de Colonização e Trabalho nem sempre atendiam às expectativas de quem desembarcava em Santos e se dirigia à Hospedaria dos Imigrantes.

481 MARTINS, José de Souza. Subúrbio: vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha. 2.ed. São Paulo: Hucitec; Unesp, 2002.p.53.

482 LODUCA, Wilson. São Caetano: de várzeas alagadiças a Príncipe dos Municípios. São Paulo; São Caetano do Sul: Hucitec; Prefeitura de São Caetano do Sul; Fundação Pró-Memória, 1999. p.66 483 RAMOS, Adriana M.C.& SOUZA, Monica de. Cotidiano e História em São Caetano do Sul. São Paulo: Hucitec; São Caetano do Sul: Prefeitura de São Caetano do Sul, 1992. P.37

484 MARTINS, José de Souza. Subúrbio: vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha. 2.ed. São Paulo: Hucitec; Unesp, 2002.p.20.

485 MARTINS, José de Souza. O imaginário na imigração italiana. São Caetano do Sul: Fundação Pró-Memória, 2003. p.35.

Com o intuito de evitar atritos e reforçar ainda mais a mão-de-obra, o “governo até mesmo estimulava os imigrantes a escreverem a seus familiares no lugar de origem convidando-os a também emigrarem.”486

Eram as cartas de chamada que, contraditoriamente, eram escritas por imigrantes com baixo nível de alfabetização. Foram um método eficaz de comunicar os familiares do país de origem como eram as condições de vida aqui. Constituíram, também, uma espécie de carta de recomendação para entrar mais facilmente no Brasil.

O sucesso das cartas de chamada como expediente de entrada de imigrantes no Brasil, aliado ao fato de muitos deles serem analfabetos, fez com que consulados como o de Portugal e Espanha criassem um modelo para esse documento que, na realidade, era um formulário padrão em que o candidato preenchia seus dados. A leitura desses documentos é uma oportunidade privilegiada de entrar em contato com histórias de vida, redes e laços de sociabilidade somente possíveis por conta da experiência da migração. 487

Imagem 36 - Carta de chamada em exposição no Museu da Imigração do Estado de SP

Fonte: A autora, 2014.

486 Idem.p.39.

Como já dito anteriormente, todas as edições possuem textos sobre o grupo italiano. Na edição 2, o artigo “As raízes na aldeia”488, de Claudinei Rufini, aborda a

importância do estabelecimento de afetos para as primeiras famílias que chegaram ao Núcleo. À época da publicação, em 1989, o jornalista Rufini apresentava, além das lembranças da família, uma canção de Natal em italiano e uma paródia de uma música popular de autoria desconhecida.

O texto, com duas páginas e oito notas de rodapés, tem um início bastante emocional:

Através dessas lembranças fragmentadas, podemos reconstruir o universo em que se concebeu o núcleo colonial de São Caetano e as implicações na gestação da cidade que viria a formar-se: cresci ouvindo muitas histórias e passagens contadas por minha avó, Da. Esperança Martorelli Cairo, com a riqueza dos detalhes que ela guarda do convívio com a sua própria avó, Angela Dalcin Martorelli, e outras velhas pioneiras.489

Logo de início, o autor previne o público sobre as falhas de sua própria memória, sobre a fragmentação das informações. Para Lotman, a cultura funciona como um sistema de signos, sendo o texto a unidade mínima da cultura. Ele transforma-se a partir da relação com outros textos, inclusive o texto cultural que porta o receptor da mensagem. Ferreira, ao explicar a necessidade de tradução cultural, diz que:

Traduzir um certo setor da realidade em linguagem, transformá-la num texto, isto é, numa informação codificada de um certo modo, introduzir esta informação na memória coletiva é para ele (Lotman) um ponto fundamental. Num crescendo, vai nos mostrando que cultura é informação, codificação, transmissão, memória, e conclui, de forma a não deixar lapsos: somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser patrimônio da memória (grifo original).490

A cultura é coletiva, não é estática, mas sim resultado de experiências, assim como a memória. “Ela (memória) relaciona-se necessariamente com a experiência histórica passada. (...) A própria existência da cultura pressupõe a construção dum sistema de regras para a tradução da experiência imediata em texto.” 491

Claudinei Rufini ressalta que a avó tinha a preocupação em ensinar a família o “modo de vida e das relações sociais da pequena aldeia distante”.492 Para o autor,

488 RUFINI, Claudinei. As Raízes na aldeia. Revista Raízes, 2. São Caetano do Sul, dez.1989. p.44- 45.

489 Idem.Ibidem.p.45.

490 FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da Memória e outros ensaios. São Paulo: Ateliê, 2004.p.74.

491 LOTMAN, Iuri e Bóris USPENSKII. Sobre o Mecanismo Semiótico da Cultura. In: Ensaios de Semiótica Soviética. Lisboa: Livros Horizontes, 1981.p.41.

era comum que os imigrantes buscassem formar uma comunidade ligada por laços identitários. Um dos elementos agregadores era a religião. Outro, a entidade associativa Príncipe di Napoli.

Com o aumento do fluxo imigratório e o deslocamento industrial e especulativo (os grandes proprietários de terra) para o lugar, aqueles valores propostos pelos pioneiros foram colocados em xeque, apesar de a maioria dos novos imigrantes e o consequente isolamento do grupo fundados e de seus descendentes, em organizações próprias, fica evidente na criação da Sociedade Príncipe di Napoli acessível somente a eles. Somente quinze anos mais tarde seria criada a União Operária Internacional, aberta a sócios de todas as origens.493

A cultura, desta forma, se relaciona diretamente aos afetos e saberes de um grupo cultural, que os transmitem de geração em geração, com o intuito de preservá-los da maneira o mais próxima possível ao local de nascimento e de vivências.

A cultura não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande medida, aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual, um sentido de significado último: tudo isso está mais próximo, para a maioria de nós, do que cartas de direitos humanos ou tratados de comércio. 494

O texto de cultura não deve ser considerado somente como parte, mas sim também a memória das interpretações desse texto e os fatos que ocorreram durante a produção dessa memória. É a memória de Rufini em relação à sua família, mas também a memória de sua família em relação aos fatos. Interpretação da interpretação.

a transformação da vida em texto não é a interpretação mas a introdução de eventos na memória coletiva. Lotman vê os textos de crônicas e daquilo que considera seus contíguos, como inscrições, signos comemorativos etc., como os próprios signos da existência. É então nos fala da captação do mundo, mediante sua transformação em texto cultural.495

O próprio artigo de Rufini aponta que as visíveis diferenças, inclusive hierárquicas, entre os primeiros colonos estabelecidos e os imigrantes que vieram depois foram acabando conforme o estabelecimento da indústria e a mudança da condição do migrante, de agricultor a trabalhador operário. Ressalta, contudo, que

continuou presente o arquétipo dos fundadores, na tradições, através da transmissão da matriz simbólica do grupo, de uma forma romântica até. Isso deu campo e foi bem aproveitado politicamente, em determinada época,

493Idem.Ibidem. p. 46.

494EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp, 2005a.p.184.

495 FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da Memória e outros ensaios. São Paulo: Ateliê, 2004. p.78-79.

pelos agentes consulares fascistas em sua tarefa de pregação das virtudes itálicas.496

José de Souza Martins acredita que o mito do herói fundador construído durante o período do Núcleo Colonial foi um reforço para a formação das ideologias políticas presentes na cidade na primeira metade do século XX, sobretudo o fascismo.

Os primeiros anos da história do núcleo colonial de S.Caetano são os que mais facilmente estão sujeitos às deformações de uma memória histórica fantasiosa. Sem dúvida, a fantasia é também um documento sobre as mentalidades e como tal pode ser incorporada à análise histórica. Nesse sentido, a história local constitui um caso fascinante de deformação. Quase todos os fatos que conhecemos hoje em dia, a respeito da história do núcleo colonial, são produto de uma seleção ideológica que teve por finalidade construir uma interpretação triunfalista da imigração italiana.497

Para o migrante, era preciso adaptar-se no novo país. Isso significava, por exemplo, aprender a língua. Das famílias que chegaram ao Núcleo, muitos membros eram analfabetos, o que dificultou a documentação e o aprendizado dos novos costumes. Ainda assim, alguns já desconfiavam que as novas terras não fossem, necessariamente, a salvação da pobreza que enfrentavam na Itália. Duas peças de cobre de um aquecedor trazido pelos imigrantes, atualmente no Museu Histórico de São Caetano do Sul, comprovam essa perspectiva.

O aquecedor era mais do que um objeto que se definisse por seu uso e sua utilidade material, o aquecimento do quarto de dormir. Ele era um objeto impregnado de significados; de certo modo, cristalizava o imaginário do imigrante naquele momento. Era essencialmente um enigmático documento das incertezas da imigração como calculado engodo dos grandes proprietários de terra que precisavam com urgência encontrar um substituto para os escravos dos cafezais. Aquele aquecedor antigo não só falava dessas incertezas, mas também da sábia e camponesa desconfiança do imigrante em relação ao destino que lhe ofereciam ‘de graça’ e tão longe.498

Na época, as mercadorias eram transportadas por rio ou em carroças, e o escambo tornou-se comum entre as vilas próximas. Em 1883, a São Paulo Railway inaugurou a estação de São Caetano e os colonos tinham mais uma opção para escoar os produtos.

A ferrovia anunciava e realizava o novo, ao mesmo tempo em que nele reafirmava o velho e tradicional. Era como se descosturasse a trama das velhas relações sem destruí-las inteiramente, recosturando-as no sistema

496 RUFINI, Claudinei. As Raízes na aldeia. Revista Raízes, 2. São Caetano do Sul, dez.1989. p. 46. 497MARTINS, José de Souza. O Tempo da Pobreza e do trabalho na memória histórica de São Caetano do Sul. Revista Raízes, 4. São Caetano do Sul, jan.1991.p.18.

498MARTINS, José de Souza. O imaginário na imigração italiana. São Caetano do Sul: Fundação Pró-Memória, 2003.p.42-43.

de significados e funções do primado do capital e de sua reprodução ampliada.499

Pela localidade estratégia entre a capital e o Porto de Santos, a ferrovia ajudava no escoamento da produção do café, principal produto brasileiro de exportação no fim do século XIX. A ferrovia em si não é o principal motivo para mudanças, mas sim a mediação por ela proporcionada, que

criou necessidades sociais novas, adaptação de costumes, novas regulações de conduta, novos horizontes. Essa mediação fundante foi anunciando aos poucos, conforme as circunstâncias sociais, econômicas, políticas, culturais, que mundo era aquele, de lógica radicalmente diversa, que nela assumiria sua melhor configuração de sentido.500

Em certa medida, a ferrovia impulsionou a mestiçagem cultural e a criação de um imaginário onde a convivência com o outro era cada vez mais possível. Os objetos da cultura são, naturalmente, mestiços. Mestiçagem pensada no sentido cultural, e não meramente étnico. Não existe essência, raiz. Normalmente, esta essência sonhada, imaginada, é determinada pelos grupos de poder com alguma finalidade. É preciso pensar nas relações entre globalidade e localidade, entre diversidade e solidariedade, já que o sofrimento foi um traço marcante do período.

Os primeiros imigrantes sofriam com a falta de médicos e farmácias. A morte era uma constante. “Até o dia 20 de outubro de 1877, já haviam morrido 18 pessoas na localidade – uma morte a cada 5 dias, uma frequência alta num grupo de pouco mais de 150 pessoas, menos de 40 famílias, diversas das quais aparentadas entre si.”501

As principais causas eram oftalmia purulenta, diarreia e varíola. Como não havia cemitério em São Caetano – o primeiro seria inaugurado somente em 1911-, os mortos eram enterrados em São Paulo, sobretudo no Cemitério da Consolação.

O “luto tinha precedência sobre a festa” e um “alcance social muito maior do que hoje”502 e lembra o caso da explosão da fábrica de pólvora, que vitimou um

operário, e o natural cancelamento de uma festa. Em vista dos inúmeros problemas

499MARTINS, José de Souza. A aparição do demônio na fábrica: origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário. São Paulo: Editora 34, 2008.p.30.

500Idem. Ibidem.p.19-20.

501 MARTINS, José de Souza. Subúrbio: vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São

No documento Lilian Crepaldi de Oliveira Ayala.pdf (páginas 167-187)

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