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Migração forçada na Fazenda São Caetano

No documento Lilian Crepaldi de Oliveira Ayala.pdf (páginas 157-167)

3 A tradução cultural dos processos migratórios em Raízes

3.4 Migração forçada na Fazenda São Caetano

Certas especificidades marcaram os processos migratórios em São Caetano do Sul427: foi um dos primeiros experimentos no Brasil de substituição do trabalho

escravo pelo trabalho livre, com a criação do Núcleo Colonial em 1877; exerceu função estratégica no Estado em vista da industrialização e a precoce utilização de imigrantes italianos nas incipientes indústrias, já no final do século XIX. Esses séculos de história da cidade tiveram processos migratórios marcantes na região,

423 PINHEIRO, Amálio. (Org.). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009. p.10-11.

424 CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. São Paulo: Vértice, 1987. p.36. 425 Idem. p.121.

426 PINHEIRO, Amálio. (Org.). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009. p.34.

427 Ver detalhes em: MARTINS, José de Souza. Subúrbio: vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha. 2.ed. São Paulo: Hucitec; Unesp, 2002.

patrocinados ou não pelo Estado428. De 1820 até a Primeira Guerra Mundial (1914),

o Brasil recebeu 3.354.829 imigrantes.429

No país, o início das migrações esteve relacionado aos interesses da corte portuguesa, que tinha o intuito de fortalecer a economia e garantir a ocupação do território para que as áreas “descobertas” não fossem perdidas para outros países, como França e Espanha. A Igreja Católica também contribui com a vinda dos migrantes, sobretudo os jesuítas portugueses, que tinham o intuito de levar a “civilização” aos indígenas.

Neste contexto, cultura tem uma relação intrínseca com Estado. Cultura é civilização, ideia que, até mesmo no século XXI, muitos ainda perpetuam. Neste viés, é essencial pensar em aprimoramento do espírito e direcionamentos, palavras tão proeminentes no vocabulário europeu, sobretudo no século XIX, com as colonizações na África e na Ásia e o surgimento dos estudos na área da antropologia.

De acordo com Said, utilizada neste sentido, a cultura “inclui um elemento de elevação e refinamento, o reservatório do melhor de cada sociedade, no saber e no pensamento.”430 Assim, é preciso que o Estado ou seu representante institucionais –

que, no caso da Fazenda São Caetano, era a Igreja Católica - ensine o bom e o mau, o certo e o errado, o belo e o feio, o pecado e a virtude. Afinal, dificilmente um poder político atinge suas metas somente com coerção. Nessa primeira perspectiva,

a cultura é uma espécie de pedagogia ética que nos torna aptos para a cidadania política ao liberar o eu ideal ou coletivo escondido dentro de cada um de nós, um eu que encontra sua representação suprema no âmbito universal do Estado (...) O Estado encarna a cultura, a qual, por sua vez, corporifica nossa humanidade comum.431

Hall complementa que a cultura atua como ponto crítico de ação e intervenção social, no qual relações de poder são estabelecidas e potencialmente desestabilizadas.432 Said diz que “é uma espécie de teatro em que várias causas

428 O histórico da cidade, a partir da historiografia oficial e dos textos de Raízes, foi contemplado no Capítulo 2.

429 HISTÓRICO DAS IMIGRAÇÕES. Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Disponível em: museudaimigracao.org.br/centro-de-preservacao-pesquisa-e-referencia/historico-das-imigracoes Acesso: 25.jul.2014.

430 SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p.13. 431 EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp, 2005a.p.16-17.

432 HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2006.

políticas e ideológicas se empenham mutualmente (...) a cultura pode até ser um campo de batalha onde as causas se expõem à luz do dia e lutam entre si.”433

Cultura e instituições do Estado são entendidas como formas utópicas e precisam resolver conflitos entre os diferentes. Nesta acepção, parte de uma perspectiva determinista. Novamente, é uma ideia típica dos séculos de colonização europeia.

Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação.434

Nega-se aos povos política e economicamente inferiorizados o direito não somente de conduzir suas ações políticas, mas também de praticar certas formas de cultura, as formas consideradas não civilizadas pelos colonizadores. Slavoj Žižek destaca a importância da ideologia e de sua transmissão ao “outro”, mesmo nos dias atuais.

A era contemporânea volta e meia se proclama pós-ideológica, mas essa negação da ideologia só representa a prova suprema de que, mais do que nunca, estamos imbuídos na ideologia. A ideologia é sempre um campo de luta – entre outras, de luta pela apropriação das tradições passadas. 435

O colonizado, o outro e, no caso dos escravos, o “não humano”, o objeto de outrem, é deficitário de algo, e cabe ao Estado civilizado levar a cultura. A cultura legitima o poder, é utilizada de maneira ideológica. É como uma missão. Remete-se, então, à ideia de hegemonia.

De acordo com Williams, “o termo não se limita a questões de controle político direto, mas busca descrever um predomínio mais geral que inclui, como uma de suas características centrais, um modo particular de ver o mundo, a natureza humana e as relações.”436

Não há como voltar ao conceito sem mencionar Gramsci437, que estudou

também a cultura popular, buscando entender o caráter interclassista e de longa duração das culturas populares e levando em consideração aquilo que têm de aparentemente imóvel, inconsciente e irracional. Apoiado na ideologia do cotidiano,

433 SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.p.14. 434 Idem. p.40.

435 ŽIŽEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011. p.42. 436 WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.p.200

de que o homem não conhece o mundo enquanto o transforma, o autor parte do conceito de hegemonia para entender a alternância de forças políticas e sociais ao longo da História.

Para Gramsci, a cultura é produto da história, ou seja, jamais pode ser separada de fatores econômicos e políticos. Desta forma, também na linha gramsciana, prevalece a relação entre Estado e Cultura.

A partir dessa relação, sabe-se que o discurso colonizador quase sempre institui quais devem ser as principais posições intelectuais e políticas dos colonizados. O Estado apresenta-se como produtor dos saberes corretos, o depositário oficial da cultura. Numa perspectiva crítica, tais concepções são eficazes inclusive no processo de colonização intelectual. Para Roger Chartier, pensando a partir da história das mentalidades,

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (...) As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.438

Também Chakrabarty menciona essa inadequação da cultura do colonizado perante o que é imposto pelo colonizador, inclusive no campo das pesquisas sociais

the everyday paradox of third-world social science is that we find these theories, in spite of their inherent ignorance of “us”, eminently useful in understanding our societies. What allowed the modern European sages to develop such clairvoyance with regard to societies of which they were empirically ignorant? 439

Em seu relacionamento direto com o Estado, a cultura é essencial para os nacionalismos e serve como força política. Cultura é civilização. De acordo com Said, “em quase todos os lugares do mundo não europeu a chegada do homem branco gerou algum tipo de resistência (...) O contato imperial nunca consistiu na

438 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1987. p.17. 439 CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000. p.29. Tradução livre da autora: “o paradoxo cotidiano das Ciências Sociais do terceiro mundo é que nós achamos essas teorias, apesar de sua inerente ignorância de "nós", eminentemente útil para entender nossas sociedades. O que permitiu aos modernos sábios europeus desenvolver tal clarividência no que diz respeito às sociedades das quais eram empiricamente ignorantes?”

relação entre um ativo intruso ocidental contra um nativo não ocidental inerte ou passivo.”440

Dificilmente o morador “original” da região conquistada, invadida, pilhada, ou qualquer que tenha sido a forma de impor o poder, recebeu as formas de comportamento e de produção econômica do “outro” sem algum tipo de resistência, até mesmo cultural. O outro nunca é completo, mas sim aberto, ou seja, cabe à cultura atingir esses vazios do outro.

Não devemos jamais reduzir o Outro a nosso inimigo, a defensor do falso conhecimento, e assim por diante: nele ou nela sempre há de existir o Absoluto do impenetrável abismo de outra pessoa. O totalitarismo do século XX, com seus milhões de vítimas, mostrou o resultado último de seguir até o fim o que nos parece uma ‘ação subjetivamente justa.’441

Sempre há as resistências inesperadas e, por vezes, transformadoras. Há autores que contestam o conceito que relaciona Cultura e civilização, como é o caso Denis Rolland. Ao refletir sobre os efeitos do modelo francês de civilização na América Latina, ele afirma que

Quando o cultural se torna, por exclusão, a alma retórica e às vezes sentimental de um vínculo político, o historiador deve, mais que nunca, cuidar de nunca fechar o ângulo da tomada de visão, sob pena de agir de maneira míope.442

Quase sempre, a aceitação daquele que já estava da cultura daquele que chegou não é imediata, mesmo que o pareça. Também Bakhtin443 afasta a

possibilidade de uma assimilação direta da cultura dominante pelos populares e defende o conceito de circularidade cultural entre as classes: em essência, um movimento mais dialético entre as diferentes classes e que engendra maior reciprocidade aos diferentes níveis culturais. A circularidade pode ser entendida, de uma certa maneira, como interculturalidade, e envolve tradução cultural.

Bakhtin ressalta que a palavra é mediadora entre o social e o individual444,

além de ser reveladora dos valores culturais. Desta forma, o uso da palavra mantém ou subverte valores, intervindo no mundo material. Bakhtin acredita que não se pode compreender a língua de forma isolada, devendo-se considerar fatores como

440 SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.p.12. 441ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.p.90.

442 ROLLAND, Denis. A crise do modelo francês: a França e a América Latina: cultura, política e identidade. Brasília: UnB, 2005.p.30.

443 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 3.ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 1993.

contexto de fala, intenções e momento histórico. Nesta direção, Baccega complementa que a palavra só tem razão “na materialidade do intercâmbio da vida social.”445 Desta forma, o discurso de coerção só será eficaz se os outros fatores

contribuírem para tal.

A revista Raízes mostra as minúcias dos sistemas de coerção implantados no Brasil Colonial por meio de três textos sobre a migração forçada dos africanos, todos atrelados à escravidão na Fazenda Beneditina. Nenhum deles, porém, entra em discussões mais aprofundados sobre os sequestros sequenciais na África entre os séculos XVI e XIX, que levaram milhões de pessoas a trabalharem como escravos no Brasil.

Nos poucos textos sobre a migração forçada a São Caetano presentes na revista, não se menciona a morte de quase 1,5 milhão de escravos na travessia pelo mar, nem as 18 horas de trabalho diárias, que estabeleciam uma vida produtiva de, em média, 10 anos.446 Já as formas de resistência – dos quilombos aos movimentos

culturais – aparecem nos textos, principalmente com a história do escravo Nicolau. A negação imediata do que é imposto como certo pelas instituições hegemônicas – Estado e Igreja - pode ser observada no artigo “A Escravidão na Fazenda Beneditina em SC”, escrito pela historiadora Cristina Toledo de Carvalho para a edição 30, em dezembro de 2004.447

Além da quantidade relevante de referências a diferentes autores e dados de arquivos (onze notas de rodapé), a pesquisa histórica ocupa três páginas e apresenta três reproduções de imagens (da captura dos índios para o trabalho escravo, dos africanos trabalhando num engenho do Nordeste e uma imagem do Papa Júlio III, que permitia aos reis portugueses também o domínio religioso nas colônias). O texto busca destrinchar não somente o processo de migração forçada dos africanos, mas, sobretudo, as motivações econômicas vinculadas ao mercantilismo e as formas de coerção imposta pela colônia e os monges beneditinos.

A autora informa: “Em 1730, ano em que foi instalada a primeira olaria da Fazenda, São Caetano contava com 17 escravos, enquanto que em 1750 já

445 BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: literatura e história. São Paulo: Ática, 1995.p.6. 446 Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990. / SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

447 CARVALHO, Cristina Toledo de. A Escravidão na Fazenda Beneditina em SC, Revista Raízes, 30. São Caetano do Sul, dez. 2014. p. 30-32.

apresentava 23.”448 A pesquisa aponta que, apesar de a Igreja Católica defender a

liberdade indígena em detrimento da dos africanos, a Ordem de São Bento optou pela escravidão. “Na Fazenda de São Caetano houve duas espécies de escravo: os administrados e os escravos propriamente ditos. Os primeiros correspondiam aos índios escravizados, enquanto que os últimos eram os negros.449” Havia preferência

pelos “crioulos”, como eram conhecidos os negros nascidos no Brasil, mas, “no período anterior ao da produção oleira, período no qual as atividades de subsistência predominavam na Fazenda (século XVII e meados do século XVIII), o administrado indígena prevaleceu sobre o negro.”450

Outro mérito da pesquisa é apresentar uma relação dos escravos da fazenda Beneditina, recenseados entre 1798 e 1825.451 A nomeação dos cativos, de certa

maneira, torna o relato de pesquisa mais humano e aproxima os leitores, ou deveria aproximar, das condições de sofrimento e privação às quais os escravos estavam sujeitos na Fazenda São Caetano.

Quadro 3 – Reprodução da revista Raízes, edição 30, p.32

Fonte: Acervo/Fundação Pró-Memória.

448 Idem, p. 31. 449 Idem, p.32. 450 Idem, p.32. 451 Idem.

No Brasil, no início do século XIX, estima-se que 42% da população negra ou mulata fosse livre, apesar da escravidão oficial. Liberdade, contudo, não necessariamente estava relacionada a melhoria de condições sociais. Optou-se, por exemplo, por uma política de imigração destinada ao branco europeu do que pela inserção do negro no mundo do trabalho.

Outro artigo que enfatiza a escravidão é da mesma historiadora, Cristina de Toledo Carvalho. Com o nome de “A transição entre a fazenda beneditina e o Núcleo Colonial em SC (1862-1877), foi publicado na edição 28, de dezembro de 2003452. Possui cinco páginas, quatro imagens (sendo, uma delas, a reprodução de

um documento) e treze notas de rodapé. A pesquisa apresenta que, a partir de 1862, o abade do mosteiro beneditino

pôde perceber que os escravos viviam dispersos pelo seu interior. Esta liberalidade mostrou-se, contudo, prejudicial aos beneditinos, sobretudo no momento em que a Assembléia da Província de São Paulo instituiu um imposto de dez mil réis por cabeça de escravo.453

Somando-se ao imposto e aos evidentes sinais de tensões entre escravos e administradores da Fazenda, conforme apontado pela autora, o contexto econômico brasileiro e internacional impunha uma nova forma de organização do trabalho, que, anos mais tarde, em 1877, daria origem ao projeto do Núcleo Colonial.

Contudo, talvez o texto mais significativo para a construção da memória sobre os escravos africanos na Fazenda São Caetano seja “Nicolau, escravo de São Bento”454, um perfil escrito por Luiz Gonzaga Piratininga Júnior, na edição 6, de

janeiro de 1992.455 O texto possui duas páginas e apresenta a cópia do documento

de registro dos familiares do escravo Nicolau Tolentino de Piratininga, o que permitiu ao autor a reconstituição da árvore genealógica da família.

O texto enfatiza as lutas dos escravos, inclusive no âmbito cultural, e advém da dissertação de mestrado do autor, intitulada “Dietário dos Escravos de São Bento”, de Luiz Gonzaga Piratininga Júnior. Descendente direto de escravos que viveram na Fazenda São Caetano no século XVIII, ele herdou os escritos do escravo

452 CARVALHO, Cristina Toledo de. A transição entre a Fazenda Beneditina e o Núcleo Colonial em SC (1862-1877). Revista Raízes, 28. São Caetano do Sul, dez. 2003. p. 34-38.

453 Idem, p.34.

454 PIRATININGA JÚNIOR, Luiz Gonzaga. Nicolau, escravo de São Bento. Revista Raízes, 6. São Caetano do Sul, jan. 1992. p.87-88.

455 A dissertação em História tornou-se livro publicado pela Prefeitura de São Caetano do Sul. Ver: PIRATININGA JÚNIOR, Luiz Gonzaga. Dietário dos escravos de São Bento: originários de São Caetano e São Bernardo. São Paulo: Hucitec; São Caetano do Sul: Prefeitura de São Caetano do Sul, 1991.

Nicolau Tolentino Piratininga. De acordo com Piratininga Júnior, mesmo após a venda da Fazenda,

os descendentes desse grupo familiar mantiveram-se solidários, atando muitos laços quotidianos que lhe garantiram a sobrevivência coletiva e individual. Da senzala eclesiástica à alforria sustentaram, portanto, uma resistência sociocultural calcada no elemento principal dessa atitude: a estrutura familiar e a mentalidade decorrente deste conjunto.456

Na opinião de Piratininga Júnior, em referência à organização familiar dos escravos negros dentro da Fazenda,

A desorganização da vida beneditina, que se acelerou em meados do século passado (XIX), é concomitante com o aumento do nascimento de filhos naturais. Duas razões para isso: ou os negros veem-se mais livres e mantêm suas uniões naturais sem a legitimação do matrimônio, ou, então, os poucos monges procuraram de algum modo favorecer a procriação menos controlada, a fim de aumentar a mão-de-obra, num período em que ela se valorizou rapidamente (1820-40).457

Entre os escravos negros, houve até mesmo certa ascensão social. Piratininga Júnior explica a partir da história do escravo Nicolau, que foi “uma das 33 crianças nascidas na senzala durante a década de 1850.”458 Nicolau, após a alforria,

ascendeu socialmente e tornou-se o braço-direito do monge da abadia. Possuía muitos livros, documentos e escreveu 42 poemas.

O próprio texto publicado em Raízes459 mostra a via poética e combativa da

família. Em referência à mãe de Nicolau, Piratininga Júnior escreve:

Guilhermina Maria do Espírito Santo foi mulher com vários adjetivos: escrava de São Bento, mãe extremosa, mulher natural do abade, frei João de São Bento Pereira, ou ainda ‘burrinha-de-abade’ na acepção popular de falsa moralidade. Mas, em verdade, foi apenas uma mulher negra que, talvez se o saber completamente, pariu para o futuro o segredo de seu passado.

Até o estudo foi permitido aos filhos de Nicolau, o que mostra o caráter de exceção daquela família. Nicolau apreciava arte e, futuramente, a fotografia. Para seu descendente Piratininga Júnior (1991, p.156), Nicolau foi “como um refúgio de si mesmo, suficientemente seguro para não permitir a destruição de sua identidade”.

456 PIRATININGA JÚNIOR, Luiz Gonzaga. Dietário dos escravos de São Bento: originários de São Caetano e São Bernardo. São Paulo: Hucitec; São Caetano do Sul: Prefeitura de São Caetano do Sul, 1991.p.17.

457 PIRATININGA JÚNIOR, Luiz Gonzaga. Nicolau, escravo de São Bento. Revista Raízes, 6. São Caetano do Sul, jan. 1992. p.70.

458 Idem. p.86. 459 Idem. p.88.

García Canclini afirma que “cada forma de privação associa-se a formas de pertencimento, posse ou participação.”460

Privado da própria característica de “ser”, por ser posse do outro, Nicolau encontrou o pertencimento em si e na memória familiar, sobretudo de sua mãe. “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.”461

Mas este prestígio de Nicolau foi uma exceção e logo foi perdido após a sua morte, em 1929. Tudo voltou a ser como antes para sua família, com as relações hierárquicas entre monges e escravos muito bem delineadas. Piratininga Júnior afirma que

As ‘ninharias’ traduzem, portanto, um rompimento social que se simboliza nessa palavra. A família, de certa forma, se reenquadrou na sua tímida realidade pela sua verdadeira condição social e racial. Enquanto vivo, Nicolau amarrara muitos pontos difíceis para assegurar a sobrevivência de todos; morto, esses nós se desataram. 462

Esses fragmentos históricos tiveram consequências para a questão escravocrata em São Caetano. Em 1863, houve uma rebelião e os escravos se recusaram a trabalhar nas olarias e queriam se tornar foreiros. Para não complicar a

No documento Lilian Crepaldi de Oliveira Ayala.pdf (páginas 157-167)

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