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O império da verdade e da razão

A Respublica litteraria congrega uma multiplicidade de significações a partir de seu próprio nome. Ela designa ao mesmo tempo o conjunto de homens

19 “Ce que vous m‟apprenez du galant& savant M. Pradalz, m‟a extrémément réjoüi. Puisqu‟il vous a écrit,

prenez occasion de lier un commerce de lettres, & soumettez-vous à sa censure ; engagez-le à vous faire part de ses pensées sur les livres qu‟il lira, & à vous les communiquer, même raisonnées, s‟il en veut prendre la peine. C‟est ainsi qu‟en usent ceux qui veulent savoir quelque chose ; & combien y a-t‟il de gens doctes à qui les lumières de leurs amis ont plus éclairé l‟esprit que leurs propres veilles & leurs travaux?”. BAYLE, Lettre XXI, de 08 de março 1675. OD I, p. 38b.

20 WHELAN, Ruth. Le jeune Bayle épistolier. XVIIème Siècle. Revue trimestrielle, n° 178, p. 73. Há uma longa

discussão sobre o real estatuto da correspondência no pensamento de Bayle, especificamente se o seu propósito é divertir ou instruir o leitor. Apesar do interesse do assunto, ele ultrapassaria demais os modestos limites deste trabalho. Sobre o tema cf. também DESMAIZEAUX (Ed.), Lettres de Mr. Bayle, RETAT, P. Le Dictionnaire de Bayle et la lutte philosophique au XVIIIe siècle, esp. pp. 65-66 ; WAQUET, Françoise. Les éditions de correspondances savantes et les idéaux de la république des lettres. XVIIème Siècle. 1993, n° 1 e ainda DIBON, Paul. Les échanges épistolaires dans l‟Europe savante du XVIIe siècle. Revue de Synthèse, 81-82, jan-juin 1976, pp. 31-50.

doutos, a comunidade de sábios, mas também um modo de pensar comum, uma “consciência” que se desenvolveu ao longo do século XVII e que unia os eruditos para além das fronteiras nacionais. Além disso, ela pode ser entendida no sentido especializado de academia e ainda como um coletivo que nomeia as pessoas que se interessam pelas letras.21 Há uma duplicidade também na figura do “homem de letras”: uma duplicidade moral, pois cada membro é uma individualidade profissional, social, nacional, religiosa e ao mesmo tempo pertence a um “senado” invisível e homogêneo, no qual há uma grande liberdade de pensamento e de comportamento.22

Nessa sociedade ideal, ainda que haja requisitos aristocráticos para a seleção de seus membros, as relações são pautadas pelo critério da igualdade, como convém a uma república. Assim, pouco importa a nacionalidade ou a confissão religiosa de um associado, o que interessa é a sua relação com o saber. Bayle enfatiza este ponto, no prefácio de sua publicação, as Nouvelles de la République des Lettres:

Não se trata aqui de Religião, trata-se de ciência. Deve-se combater todos os termos que dividem os homens em diferentes facções e considerar somente o ponto que os reúne, que é a qualidade de homem ilustre da República das Letras. Neste sentido, todos os eruditos devem se olhar como irmãos, ou de tão boa linhagem uns quanto os outros. Eles devem dizer

Somos todos iguais, Somos todos parentes, como filhos de Apolo.23

21 Cf. BOTS, Hans e Waquet, Françoise. La République des Lettres. Paris, Belin, 1997, p. 14.

22 Nesse contexto, os libertinos, no sentido intelectual, são também figuras desta república. Sérgio Paulo Rouanet

ensina que o termo “libertino” no século XVII designava simplesmente o livre pensador, alguém emancipado de preconceitos religiosos. No século XVIII, o libertino poderia até ser uma pessoa moral, mas era definitivamente um incrédulo em relação à religião. Cf. “O desejo libertino entre o iluminismo e o contra-iluminismo”. In: Adauto (Org.). O desejo, p. 167.

23 “Il ne s‟agit point ici de Religion; Il s‟agit de Science: on doit donc mettre bas tous les termes qui divisent les

hommes en différentes factions, & considérer seulement le point dans lequel Il se réunissent, qui est la qualité d‟Homme illustre dans la République des Lettres. En ce sens-là tous les Sçavans se doivent regarder comme frères, ou comme d‟aussi bonne maison les uns que les autres. Ils doivent dire, nous sommes tous égaux, nous sommes tout parens comme enfans d’Apollon”. BAYLE, NRL, prefácio. OD I2, p. 2b.

Enquanto membros da República das letras, os homens devem deixar de lado tudo o que não diga respeito à ciência. O que importa é a produção do conhecimento, os livros que são publicados, as reflexões que podem ser partilhadas, as descobertas propriamente científicas. Assim, nada menos importante do que a religião e mesmo a extração social dos savants24. Para que esta sociedade seja

harmoniosa, todos devem ser tratados igualmente, como irmãos, e o que os destaca é unicamente a sua produção intelectual. Há, portanto, um princípio democrático que rege esta sociedade, que se pauta pela igualdade de condições e ainda pela liberdade, como Bayle lembra no verbete “Catius” do Dicionário:

Esta república é um estado extremamente livre. Ela só reconhece o império da verdade e da razão, e, sob seus auspícios, faz-se a guerra inocentemente a quem quer que seja. 25

A república das letras é guiada por uma autoridade diversa da dominante nas repúblicas reais. Na primeira, só a verdade e a razão são legisladoras e sob sua égide pode-se discutir livremente. É claro que o contraponto aqui são as violentas guerras de religião, altamente culpáveis nesse sentido. O combate intelectual tem critérios – argumentos, experiências, documentos irrefutáveis26 –, diferentes dos utilizados nas guerras que envolvem as confissões de fé. Nestas, seria preciso tratar a fundo quem tem ou não razão, e como não há autoridade reconhecida por unanimidade “este debate é de grande fôlego, como se sabe, e não se vê jamais o seu fim”27. A guerra travada em nome da religião leva em última instância à ruína do próprio cristianismo, pois não há critérios para julgar quem tem razão e nem um juiz

24 É preciso notar que a República das Letras era essencialmente masculina. No entanto as mulheres publicaram,

entre 1475 e 1700 cerca de 600 livros, 0,5 por cento do total. Embora os homens fossem maioria, havia uma atitude mais favorável em relação às mulheres nesta sociedade de eruditos. Cf. BOTS, Hans e WAQUET,

Françoise. La République des Lettres, p. 96.

25 BAYLE, DHC, “Catius”, D.

26 GROS, J-M. La place de la “République des Lettres” dans l‟oeuvre de Bayle: de la correspondance au

Dictionnaire. In :DELPLA, Isabelle e ROBERT, Philipe de (Eds). La raison corrosive, p. 38.

imparcial. Bayle destaca o ridículo desta situação quando afirma que tudo se reduz a um “belo princípio” em que não se saberia se as censuras caberiam ao lado vitorioso ou ao vencido: “eu tenho a verdade do meu lado, portanto minhas violências são boas obras. O outro erra, portanto suas violências são criminosas”28. A falta de critério para julgar as controvérsias leva ao uso da força, e quando esta é o último recurso, a violência instauraria uma guerra contínua e sangrenta:

Ver-se-ia uma guerra contínua seja nas ruas das cidades, seja no campo, seja entre as nações de sentimento diferente, e o cristianismo seria apenas um inferno perpétuo para aqueles que amam a paz e para aqueles que se encontrassem sob o partido fraco.29

Contrariamente aos conflitos religiosos, em que não é possível atingir uma conclusão racional sobre quem tem razão, os conflitos intelectuais podem ser demonstrados, provados, ou ao menos examinados com argumentos coerentes e recorrem a uma autoridade reconhecida universalmente, a razão, que se impõe naturalmente a todos os homens. Por isso a guerra praticada em seu nome é inocente. O combate de ideias pode ser perpetrado sem culpa, pois segue as leis da consciência, e esta, de acordo com as máximas de Bayle, quando de boa-fé é sempre inocente. Com o intuito de estabelecer a verdade, os membros dessa sociedade podem gozar de ampla liberdade:

Cada um aí é conjuntamente soberano e jurisdicionado. As leis da sociedade não prejudicaram a independência do estado de natureza com relação ao erro e à ignorância: todos os particulares têm a este respeito o direito da espada e podem exercê-lo sem pedir permissão àqueles que governam. 30

28 BAYLE, CP, I, X, p. 174. 29 BAYLE, CP, I, X, p. 173. 30 BAYLE, DHC, “Catius”, D.

Há aqui a nítida distinção entre duas esferas: o Estado político e a República das Letras. No entanto, diferentemente do Estado civil nesta última não há poder central. Trata-se de um estado natural, onde cada membro é ao mesmo tempo soberano e súdito. Há jurisdição recíproca entre os participantes, pois todos têm o direito de indicar os erros a quem procura a verdade. Bayle usa a noção de estado de natureza para mostrar que mesmo no estado civil o erro e a ignorância devem ser combatidos, por todos, sem interferência do poder político. A única autoridade aí é a racionalidade. Suas regras são claras e conhecidas por todos, por isso a igualdade é atingida. É a mesma razão que confere os limites da liberdade, que é bastante ampla. Não se trata todavia de licenciosidade, e por isso o autor se preocupa em traçar os limites entre a “guerra inocente” travada entre membros justamente interessados no estabelecimento de uma verdade ou de um fato, e o abuso da liberdade, que é identificado na publicação de certos libelos difamatórios.

É bem fácil conhecer porque o poder soberano teve que deixar a cada um o direito de escrever contra os autores que se enganam, mas não o de publicar sátiras. É que as sátiras tendem a despojar um homem de sua honra, o que é uma espécie de homicídio civil, e por conseqüência, uma pena que só deve ser infligida pelo soberano. No entanto, a crítica de um livro apenas tende a mostrar que um autor não tem um determinado grau de esclarecimento. Ora, ao tornar conhecidos do público os erros que estão em um livro não se usurpa nada do que depende da majestade do Estado, pois o autor pode gozar de todos os direitos e de todos os privilégios da sociedade sem que sua reputação de homem honesto e de bom súdito da república receba a menor ofensa. 31

A tentativa é de diferenciar a crítica dos libelos difamatórios e das sátiras: eles têm regras e objetivos diferentes, e por isso a primeira é permitida e os outros não. A crítica é vista como positiva, pois colabora no esclarecimento geral; já a

sátira pode culminar em um “homicídio civil”, na morte moral do autor perante a sociedade. Ainda que abstrata, ela engendra efeitos bem concretos, razão pela qual Bayle atesta que somente o Estado poderia infligir tal castigo. Ainda que a reputação do autor criticado possa ser um pouco abalada, ou que ele possa ver seus lucros diminuídos, se a crítica é honesta, “sustentada pelo partido da razão e pelo interesse da verdade”, ela não pode ser proibida. Tal situação é diferente do que ocorreria normalmente nas elaborações de libelos difamatórios. Nestes, há acusações, fatos sem provas e o autor normalmente se esconde sob o véu do anonimato para não ter que comprovar o que publicou e para fugir à sua responsabilidade. Na crítica, os autores se expõem abertamente, provam suas alegações, e se expõem à “lei de talião”, pois ao criticarem, correm o risco de serem novamente criticados por aqueles que julgaram. 32 Em suma, o objetivo da crítica é o estabelecimento da verdade e a regra é a utilização da reta razão; em contrapartida, o alvo da sátira é atacar a honra de alguém, e nesse caso pouco importam argumentos racionais ou a fundamentação em evidências. Bayle trata deste assunto no verbete “Eppendorf”, ao lembrar que o cavalheiro alemão recorreu ao tribunal de seu país pedindo a cominação de uma multa contra aqueles que escreveram injuriosamente contra ele:

Eis um remédio bastante eficaz contra a bile de vários escritores. Eles são cada vez mais belicosos e mais resistentes à reconciliação do que as pessoas de guerra. Diz-se que é porque as pessoas de guerra, resolvendo suas disputas com a espada na mão, expõem a vida; mas os autores que se atacam não estão dispostos a derramar seu sangue, quando só lhes custa papel e tinta. Se eles expusessem sua pele na ponta de uma espada como na ponta de uma pluma, eles seriam mais pacíficos. Digamos também que se seu bolso corresse qualquer perigo para cada injúria que eles dissessem, seu estilo seria mais honesto.33

32 Cf. BAYLE, DHC, “Catius”, D.

33 “Voilà un remède très efficace contre la bile de quantité d‟écrivains. Ils sont et plus querelleux et plus

difficiles à réconcilier que les gens de guerre. C‟est dit-on, parce que les gens de guerre vidant leurs disputes l‟épée à la main, il y va de la vie ; mais les auteurs qui se querellent ne s‟exposent pas à verser leur sang, il ne

A crítica é válida e preciosa, mas não a qualquer custo. É importante delimitar o seu domínio legítimo e o seu abuso, tendo em vista “as disputas escandalosas” entre os teólogos de seu tempo. 34 Bayle relata alguns desses debates, e se solidariza, por exemplo, com Charron que foi vítima de injúrias violentas por parte de Garasse: “jamais se viu uma fúria tão violenta como a sua: daria um livro a soma de todas as injúrias que ele vomitou contra Charron”.35 O próprio Bayle é alvo de insidiosos ataques por parte de Jurieu.36 Por ser algo frequente e que arruína reputações, o autor insiste que no caso dos escritos manifestamente sediciosos é possível recurso à justiça civil, que deve cominar uma penalidade para evitar que tais iniciativas voltem a ocorrer:

Deve ser permitida aos autores a crítica recíproca no que concerne à erudição ou a um falso raciocínio. Os juízes civis não têm nada a ver com isso. Mas seria desejável que eles exercessem o rigor das leis por meio de multas pecuniárias, pelo menos, contra os autores que atacam o seu próximo e o cobrem de injúrias. Isso baniria dos livros uma infinidade de frases difamatórias e introduziria a moderação nos processos do Parnaso, onde ela é muito pouco conhecida.37

A liberdade na República das Letras tem, pois, limites, tal como a vida civil. Quando o autor foge do domínio da crítica e passa aos ataques pessoais, isto pode e deve ser julgado pelos tribunais civis. Há livros difamatórios que não podem ficar impunes: “isso é necessário para a segurança dos grandes caminhos da

leur en coûte que du papier et de l‟encre. S‟il exposaient leur peau à la pointe d‟une épée comme à la pointe d‟une plume, ils seraient plus pacifiques”. BAYLE, DHC, “Eppendorf”, D.

34 Cf. BAYLE, DHC, “Strigélius”, C. 35 BAYLE, DHC, “Charron”, H.

36 Pierre Jurieu atacou várias vezes e de maneira veemente os escritos de Bayle. Cf. por exemplo, o Corte Revuë

de maximes de Morale & des príncipes de Religion, de l’Auteur des Pensées diverses sur les Comètes, de 1691, opúsculo que é respondido por Bayle com a Addition aux Pensées diverses sur les Cometes, em 1694.

república das letras”.38 Note-se que há a sugestão neste caso de aplicação de multas pecuniárias, e não de castigos corporais, o que supõe a eficácia da medida que incide sobre a propriedade. No que concerne ao debate puramente intelectual as regras são claramente estabelecidas e este é julgado pelos juízes naturais da República das Letras, o próprio público. Trata-se então de um estado regido unicamente pelas leis naturais, no qual todos os membros dispõem de um direito igual de julgar, por meio da razão, as disputas entre autores. Como nesta sociedade há jurisdição recíproca, todos são juízes e jurisdicionados para decidir as controvérsias:

Segundo a ordem, e segundo as leis da república das letras, só se deve opor um livro a outro livro. A crítica de uma obra é propriamente falando um processo que um autor intenta perante seus juízes naturais. Ele é convocado a comparecer diante do público para dizer ou que ele raciocinou mal, ou que ele entendeu mal certas coisas. Ei-lo citado no tribunal legítimo. Pois cabe ao público julgar em primeira e última instância esses tipos de acusações. 39

No reino da crítica, a instância julgadora não é a justiça civil, mas o “tribunal natural” composto pelos próprios membros da República das Letras. Nesse sentido, um autor que se vê criticado por outro não deve ir buscar reparação fora desse “tribunal legítimo”, no qual será julgado pelos seus pares, pois além de subverter os critérios de julgamento entre as diferentes esferas, ele apenas denunciaria a sua fraqueza: “isso (...) seria mudar a ordem das coisas e procurar suprir a ignorância pelo crédito que se esperaria encontrar, pela força das intrigas, no tribunal de magistrados”.40

A República das Letras comparativamente a uma república real se rege portanto por regras diferentes, seus combates utilizam diferentes armas e o tribunal que julga as controvérsias se rege por diferentes critérios. Bayle contrapõe de

38 BAYLE, DHC, “Colomiès”, E. 39 BAYLE, DHC, “Tavernier”, E. 40 BAYLE, DHC, “Tavernier”, E.

algum modo essa república ideal à política real, e mostra uma perspectiva de oposição irredutível entre elas. Pois, embora nos dois domínios o problema seja a solução de conflitos, a guerra “erudita” é feita em nome do interesse da verdade e das luzes, o que não se pode afirmar sobre as guerras reais. Feitas frequentemente em nome da religião e do poder, estas últimas não suportam a crítica, como afirma no artigo “Chrysippe”: “a religião não suporta o espírito acadêmico: ela quer que se negue ou que se afirme”.41 No mundo dos conflitos intelectuais os debates são produtivos porque envolvem o consentimento do entendimento que pode levar à conciliação entre os litigantes sobre a melhor solução, no qual todos aprovam as normas e vias empregadas. Nos combates intelectuais não está em causa o indivíduo, ou o que pode levar à sua salvação, ou a sua dignidade moral, nem mesmo a sua integridade psíquica. A autoridade é a da prova, os critérios são racionais e o modo de solução de disputas é democrático: somente mediante esta sua via é que poderá se estabelecer uma verdade, que pode ser compartilhada por muitos, ou por todos, gerando o fim do conflito, algo que as guerras de religião sempre falharam em conquistar.