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A temerária pretensão à verdade

A grande originalidade de Bayle no tratamento ao problema da tolerância civil é a afirmação dos direitos da consciência errante. Esse é um dos pilares da noção de tolerância bayliana, algo que não tem nada de evidente no momento em que é enunciado.1 Considerações sobre os direitos da consciência não estão ausentes do pensamento dos “politiques” do século XVI, mas esta abordagem privilegia o ponto de vista jurídico de l‟Hospital. Segundo esta perspectiva, a coerção das consciências levaria à perturbação da ordem pública.2 A este ponto de vista jurídico, Bayle acrescenta uma fundamentação teológica, moral e metafísica.

1 Cf. BOST, Hubert. Pierre Bayle historien, critique et moraliste, p. 246. 2 Cf. LAPLANCHE, François. L’écriture, le sacré et l’histoire, p. 666.

O direito de seguir a consciência não é um direito do sujeito na Idade Média. Aí não se pode falar em um “direito do homem” no sentido moderno, ou seja, não é possível uma reivindicação e de um reconhecimento de tal direito por parte do indivíduo. Para Tomás de Aquino, o direito de seguir a própria consciência é antes um dever em relação à Deus3, pois contrariar os ditames da consciência é um pecado. O termo “direito subjetivo” surge apenas do século XIX4,no entanto, autores do século XVII como Grócio, Hobbes ou Bayle foram absolutamente essenciais para o estabelecimento desta noção. Ao exaltarem os valores da consciência, eles elevaram os direitos do homem enquanto crente e enquanto cidadão, e assim procuraram erigir definitivamente a liberdade de consciência como princípio de direito fundamental.

De um modo geral, a liberdade de consciência diz respeito ao foro íntimo e às convicções sociais, filosóficas, políticas e religiosas de um indivíduo. Este conceito, elaborado pelos primeiros reformadores como Lutero, Calvino e Mélanchton, entre outros, é emprestado da noção teológica de Christiana libertas, que está presente nos textos da Escritura de Paulo5. Ao longo do século XVI, do plano teológico, a liberdade de consciência passa a figurar também no plano jurídico, onde adquire um conteúdo político enquanto objeto de reivindicação social e religiosa. Na França, esta noção entra em uso corrente e se insere mesmo nos textos legislativos oficiais – os editos de pacificação – desde os anos 1560. Inicialmente estes textos têm o cuidado de distinguir a liberdade de consciência da liberdade de culto, isto é, a faculdade de exercer exteriormente ou de professar publicamente a confissão de fé escolhida6.

3 Cf. SOLERE, J.L. Le Droit à l’Erreur : Conversions forcées et obligation de conscience dans la pensée

chrétienne. In : De la conversion, p. 313, n. 7. Cf. também AQUINO, T. De veritate, q. 17, a.4, resp.;

Suma, I, 2, q. 19, a 5 e 6.

4 VILLEY, M. Filosofia do direito, p. 141.

5 Cf. TURCHETTI, Mario. La liberté de conscience et l‟autorité du magistrat au lendemain de la

Révocation. Aperçus du débat touchant la théologie morale et la philosophie politique des Réformés : Pierre Bayle, Noël Aubert de Versé, Pierre Jurieu, Jacques Philipot et Elie Saurin. In : La liberté de conscience (XVIe- XVIIe siècles), p. 302.

6 Cf. TURCHETTI, Mario. La liberté de conscience et l‟autorité du magistrat au lendemain de la

Em seus textos, Bayle fundamenta a necessidade da tolerância em vários níveis argumentativos: há uma argumentação moral, que afirma a imoralidade da perseguição; uma argumentação epistemológica ou filosófica, que tenta mostrar a limitação do conhecimento, sobretudo em assuntos relativos à religião, e também uma argumentação política, que sustenta que uma sociedade tolerante pode ser pacífica, bem ordenada e que a autoridade máxima do poder político deve coibir os abusos por parte das seitas.

A doutrina da tolerância em Bayle se desenvolve em torno de dois pólos complementares: de um lado, a liberdade e os direitos da consciência; de outro, a autoridade e os direitos do soberano.7 O propósito deste capítulo é, portanto, analisar a construção da doutrina da consciência errante que culmina no estabelecimento de uma tolerância ampla e irrestrita, que abrange todos os cultos e mesmo a falta deles, na figura do ateu.

De acordo com Bayle, a história européia dos séculos XVI e XVII mostra de maneira bastante convincente que a pretensão de possuir o monopólio da verdade leva ao dogmatismo e à violência. O remédio para este mal seria a tolerância, visto como uma renúncia ao direito exclusivo de ter razão. Os direitos da consciência errante pressupõem a ideia de que pode haver uma sinceridade no erro e que nada prova definitivamente que se detenha a verdade. Apesar de haver de algum modo um tipo de “ética da dúvida” que pode redundar numa “ética da compaixão”8, e de compreensão dos erros, não se trata de piedade condescendente, ou de permissividade leviana, mas de um respeito ao caráter sagrado das opções da consciência individual. Por isso Bayle escreve sobre a liberdade que deve ser concedida aos ateus. Há uma

Pierre Bayle, Noël Aubert de Versé, Pierre Jurieu, Jacques Philipot et Elie Saurin. In : La liberté de conscience (XVIe- XVIIe siècles), p. 303.

7 Por esta razão Jurieu denomina sua réplica de Des Droits des deux Souverains en matière de Religion, la

Conscience et le Prince. Pour détruire le dogme de l’indifférence des Religions et de la tolérance Universelle. Contre un livre intitulé Commentaire Philosophique sur ces paroles de la Parabole « Contrains-les d’entrer ».

8 Cf. ABEL, Olivier. La suspension du jugement comme impératif catégorique. In: La foi dans le doute, p.

independência inexorável do foro interior que deve redundar em uma margem (ainda que modesta) de liberdade de ação para todos os homens. O ateu, ser racional e até virtuoso, não deve ser excluído deste arranjo.