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Parece indiscutível que Bayle confere contornos bastante modernos à república de letrados: os objetivos, o modo de sociabilidade, a democracia interna direta42 que animam esta sociedade divergem em grande medida da maioria das sociedades existentes na época. A modernidade deste autor se reflete ainda no seu grande empreendimento, o lançamento da Nouvelle de la République des Lettres. Bayle conhece as dificuldades de obtenção da “cidadania” da República das Letras,

41 BAYLE, DHC, “Chrysippe”, G.

42 Cf. GROS, J-M. “La place de la “République des Lettres” dans l‟œuvre de Bayle: de la correspondance au

condicionada a requisitos bastante rígidos, e percebe a necessidade de difundir um conhecimento que se restringe a um pequeno número de autores, que contrasta com uma classe numerosa de cidadãos “passivos”, “puros consumidores” de livros, e que desejavam, senão ilustrar-se, ao menos conhecer as notícias literárias para guiar as escolhas de suas leituras. Este é o entendimento de alguns comentadores, dentre eles Elisabeth Labrousse:

Os jornais – o de Bayle como o de Sallo – procuraram satisfazer aos deserdados e o sucesso que esta espécie de periódico encontrou mostra como era real e premente a necessidade que eles tentavam suprir.43

É difícil afirmar categoricamente que Bayle tenha a intenção de democratizar o acesso à República das Letras desde o início de seu trabalho. Todavia, também é difícil declarar o contrário, uma vez que Bayle é ele mesmo um membro excluído e que teve dificuldades para fazer parte da sociedade de eruditos. Mas além desta explicação de ordem psicológica e por isso mesmo limitada, é preciso notar o gosto do autor pela disseminação do conhecimento, visto como um bem precioso e que deve ser multiplicado tanto quanto possível. O livre exame é algo desejável e que se impõe como um princípio universal:

[É um] princípio que concerne universalmente a todos os homens, que é preciso aproveitar todas as ocasiões para ampliar nossos conhecimentos, pelo exame das razões que se podem propor contra nós ou pela opinião dos outros. 44

O princípio do livre-exame é afirmado diretamente em várias passagens ao longo da obra bayliana, ao apresentar a importância do conhecimento, tendo por critério a luz natural ou ao rejeitar a ignorância e a superstição. Este princípio também é afirmado indiretamente pelo grande espaço que Bayle dedica à

43 LABROUSSE, E. Les coulisses du journal de Bayle. In : Notes sur Bayle, p. 31. 44 BAYLE, CP, I, V, p. 121.

crítica ao longo de sua obra. A crítica é um método eficaz de propagação do conhecimento de uma obra, seja ele interno, isto é, pelo exame das razões e posterior estabelecimento de uma conclusão a respeito dela, ou externo, pois permite que vários – iniciados ou não – tenham acesso a esta ou aquela opinião, por meio dos escritos.

Nesse contexto, não parece despropositado supor que Bayle tenha em mente a expansão do público pertencente à República das Letras. Anote-se ainda o fato conhecido e várias vezes repetido da antipatia do autor para com os doutores da academia. Em diversas ocasiões, ele aproveita para deixar claro que nem sempre a riqueza intelectual e a nobreza moral andam juntas. Os doutores muitas vezes não são honestos intelectualmente e nem moralmente. É esse o sentido do artigo “Reinesius”, no qual Bayle, após caracterizá-lo como “um dos homens mais sábios do século XVII”, conta que ele teve de recusar o posto de professor várias vezes porque temia ter de aturar “colegas insuportáveis”. O meio acadêmico é retratado como repleto de inveja e crueldade, de modo que Reinesius prefere viver só a adentrar este círculo:

A inveja de certos espíritos maldosos também o perseguia, e resta tão pouco de amizade verdadeira no mundo e tão pouca equidade e ordem na república das letras, que para evitar essa tempestade ele se manteve escondido durante a melhor parte de sua vida.45

É claro que Bayle se utiliza habilmente do efeito cômico que essa anedota induz para reforçar os defeitos dos doutores das academias, sobretudo os da Sorbonne46, e a “contrario sensu”, a virtude de certos homens cultos. No artigo “Launoi”, o autor exalta o fato deste doutor em teologia pela Universidade de Paris não usar o seu título para obtenção de vantagens e de benefícios. Bayle insiste que tal fato merece ser notado, pois “é tão raro encontrar, mesmo entre os doutores de

45 BAYLE, DHC, “Reinesius”, B.

teologia, algumas pessoas livres da avareza e da ambição, que quando encontramos alguma é preciso prevenir o público cuidadosamente”.47

Essa visão eminentemente negativa do douto das Academias48, combinada com a perspectiva positiva com relação às luzes da razão e da crítica leva a crer que a tese de Labrousse, segundo a qual Bayle teria percebido a necessidade de uma “democratização” da república das letras, não seja destituída de sentido. O alargamento das fronteiras desta sociedade, em direção a uma vasta classe de cidadãos “curiosos” é congruente com o propósito da obra de Bayle, que é instruir, ensinar, mas também divertir. Trata-se de uma abordagem diferente do conhecimento, da relação com o outro e com a verdade, pois propõe a extensão de um diálogo erudito fora da universidade, fora do privilégio exclusivo dos especialistas, e ao alcance dos homens (e mulheres) excluídos até então do acesso ao saber, como laicos, artesãos ou comerciantes.49

Nesta “aristocracia republicana” na qual nem todos tinham direito à cidadania plena, a originalidade da posição de Bayle é justamente levar esse conhecimento de uma elite de produtores para um grande número de leigos, que fará o papel de “consumidores”. 50 Como membro desta República Bayle é um dos poucos – senão o único – que tem a iniciativa de fundar um jornal não exclusivamente para o público savant mas para os curiosos, os diletantes. O prefácio das Nouvelles de la République des Lettres ilumina este ponto. Nele, Bayle justifica a sua empreitada afirmando a necessidade da elaboração de um jornal que informasse ao público sobre “o que se passa de curioso na República das Letras”.51 Já há na Holanda algumas publicações especializadas no ramo da física ou da química, e o Mercure Savant, que trata mais de religião e de política. Na França há o Journal des

47“Car il est si rare de trouver, même parmi les docteurs em théologie, quelques personnes guéries de l‟avarice et

de l‟ambition, que lorsque l‟on en peut rencontrer quelqu‟une, il en faut avertir soigneusement le public”. BAYLE, DHC, “Launoi”, B.

48 Vale conferir ainda o artigo no DHC, “Accarisi (François)”, A, no qual Bayle critica os professores doutores

que nunca se fixam nos seus postos de origem.

49 Cf. FUMAROLI, Marc. La République des Lettres. Diogène, 143 (1988), p. 135. 50 Cf. BOTS, Hans e WAQUET, Françoise. La République des Lettres, p. 92. 51 BAYLE, NRL, OD I, p. 1a.

Sçavants, que versa sobre as publicações literárias e científicas. Este último é um dos modelos de Bayle, juntamente com os Acta Eruditorum de Leipzig e ainda os Philosophical Transactions de Londres.52 No entanto, falta ainda na Holanda uma publicação imbuída do espírito generalista especialmente onde os editores podem desfrutar de uma “liberdade de grande extensão”, um privilégio raro, e que poderia ser divulgada em todos os lugares da Europa.

Assim como no Dicionário são os erros de Moréri que impulsionam Bayle à monumental empreitada de redigir um outro dicionário, com o fim de corrigir as falhas daquele, também nas Nouvelles Bayle aduz como uma de suas justificativas o conhecimento do Mercure Sçavant, e a constatação de que “nele faltavam muitas coisas”.53 O intuito é compartilhar as novidades, mas não cair nos erros das Gazettes, que se dedicavam aos acontecimentos da ordem do dia, mas que nem sempre narravam os fatos com fidelidade.

Talvez por isso Bayle tenha se voltado para o mundo dos livros. Nesse domínio, a honestidade da crítica sempre pode ser auferida. Como foi dito, diferentemente dos outros jornais, que tinham como público-alvo eruditos, o periódico de Bayle se endereça explicitamente a um outro tipo de leitores: “iniciei a compilação dessas Nouvelles somente para contribuir tanto quanto me fosse possível para a instrução e satisfação dos curiosos”.54 Ainda no prefácio das Nouvelles Bayle desculpa-se com o seu público e pede compreensão para com o seu primeiro número: “esperamos que os curiosos não negligenciem que o início desta obra não terá toda a força que seria necessária. Pedimos-lhes que desculpem esta falha”.55 Logo em seguida dirige-se para o público erudito, produtor direta ou indiretamente dos artigos. Durante os anos em que esteve na direção do jornal, na maior parte dos casos os artigos saíram da pena de Bayle, mas algumas vezes este reproduz como seu o texto de colaboradores que desejavam permanecer no anonimato, e frequentemente a

52 Cf. BOST, Hubert. Pierre Bayle historien, critique et moraliste, p. 44 53 BAYLE, NRL, OD I, p. 1b.

54 BAYLE, NRL, OD I, p. 101a. Vale a pena notar que Descartes também se refere aos “curiosos que não são

doutos” para designar o público do Discurso do método. Cf. BOTS, Hans e WAQUET, Françoise. La République des Lettres, p. 13.

escolha dos artigos é sugerida por correspondentes56: “esperamos também que as pessoas que têm a instrução em seus corações, e a satisfação pública das pessoas de letras, não nos recusem seu auxílio e as memórias de que temos necessidade para aperfeiçoar esta obra”.57 Essas evocações ao público produtor e leitor, (que muitas vezes se confundem) sugerem a pretensão do jornal de estabelecer uma conexão com este público, de envolvê-lo “na aventura das Nouvelles”.58

O prefácio do periódico ainda faz algumas advertências: a primeira é a de que não obstante a liberdade de edição que existe na Holanda, o jornal não será um “gabinete da maledicência”, ou seja, a intenção é a troca de informações e ideias, o exercício honesto da crítica e não o aniquilamento de reputações (o que ocorreu em alguns casos no Mercure Sçavant). Bayle escreve que as Nouvelles pretendem se afastar desta conduta e que se contentará com “o meio razoável entre a servidão das bajulações e a ousadia das censuras”. 59 Todos os livros, mesmo os que tratem da religião, serão analisados com imparcialidade. Ao jornalista cabe mais o papel de relator do que o de juiz, de modo que o exame das obras deve ser honesto e isento de quaisquer prejulgamentos:

O julgamento de uma obra será sem prevenção e sem nenhuma maldade, de tal modo que se espera que aqueles que estejam interessados neste julgamento, não se irritem. Pois declaramos primeiramente que não pretendemos estabelecer nenhum preconceito, a favor ou contra os autores. Seria preciso ter uma vaidade ridícula para pretender uma autoridade tão sublime. Se nós aprovamos ou se refutamos qualquer coisa, isso não terá conseqüência. Só teremos por propósito oferecer aos eruditos novas oportunidades para aperfeiçoar a instrução pública.60

56 Cf. LABROUSSE, E. Les coulisses du journal de Bayle. In : Notes sur Bayle, p. 25. 57 BAYLE, NRL, OD I, p. 2a.

58 BOST, Hubert. Pierre Bayle, historien, critique et moraliste, p. 44. 59 BAYLE, NRL, OD I, p. 2a.

O aperfeiçoamento da instrução pública passa pela crítica imparcial. Os artigos tratarão majoritariamente de livros, sendo grande a variedade de autores e assuntos. Apesar de ser essencialmente interdisciplinar, destacam-se nas NRL os temas consagrados às questões religiosas, à história, à filosofia, à literatura e às ciências. Dentre estes tópicos sem dúvida os artigos atinentes à matéria religiosa são maioria, perfazendo cerca de 47% do total de resenhas, segundo Hubert Bost.61

Os artigos trazem resenhas sobre livros, considerados por Bayle um grande vetor de informação e de conhecimento, e mais do que isso, de prazer e divertimento. Todos os números das NRL seguem uma estrutura, composta de duas partes, que já era dada pelos jornais da época. A primeira parte é composta por artigos, que analisavam os livros mais detalhadamente, e a segunda traz apenas pequenos resumos das obras. Além disso, por vezes há o elogio de grandes personagens, desde que tivessem sido “homens de ciência”. Há ainda informações ao público das mudanças ocorridas nas Academias, sobretudo a posse de professores doutores.

Falar de livros e ao maior número, essa a missão do autor.62 Trazer “notícias”, “novidades”, apresentar as “nouvelles”, que no vocabulário da época remete a todos os tipos de informações, mas em Bayle a palavra também possui conotação “literária”: ela diz respeito a tudo o que trata de autores, de livros e da leitura63. Ao responder à objeção de que já haveria um bom número de publicações parecidas às Nouvelles, e que portanto este trabalho seria desnecessário, Bayle sustenta que “a multidão de jornais não impede que um grande número de curiosos permaneça na penúria, pois são produzidos muitos livros dos quais os Jornais não falam e que há outros dos quais não tratam cedo o bastante”.64

61 Cf. BOST, Hubert. Pierre Bayle journaliste. In : Pierre Bayle dans la République des Lettres, p. 85. 62 Cf. BOST, Hubert. Pierre Bayle, historien, critique et moraliste, p. 44.

63 Cf. BOST, Hubert. Pierre Bayle journaliste. In : Pierre Bayle dans la République des Lettres, p. 82.

64 BAYLE, NRL, OD I, p. 3a. Hubert Bost destaca o papel da metáfora da escassez, presente em outros trechos da

obra, também representada pela fome, pelo gosto e pela comida, como algo que exprime e remete frequentemente ao desejo fundamental de ler e de saber. Cf. BOST, Hubert. Pierre Bayle, historien, critique et