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Antes ainda do exame de como esta tolerância seria de fato garantida, parece imprescindível a análise da tolerância de que trata Bayle. Delimitar a extensão do conceito de sua tolerância importará, por consequência, na determinação do conceito de liberdade sustentado pelo autor. Preliminarmente, é preciso observar que o conceito de tolerância não é unívoco e talvez por isso enseje tantas disputas e polêmicas. A tolerância é um tema controverso, e isso parece ser de algum modo “inato” ao conceito, já que este nasce carregado de um significado negativo e caminha gradativamente para um significado positivo, como foi visto. No entanto, mesmo na contemporaneidade

68 “J‟ai la vérité de mon côté ; donc mes violences sont des bonnes œuvres. Un tel erre ; donc ses

este conceito traz ainda em seu bojo algumas dificuldades. A tolerância como corolário do ceticismo ou da indiferença nociva são objeções também enfrentadas por Bayle e que permanecem atuais.

Michael Walzer, em seu livro Da tolerância, afirma que como “atitude ou estado de espírito, a tolerância descreve algumas possibilidades”69. Este autor propõe uma gradação para aquele termo, pois, de fato, há uma diferença entre a tolerância no sentido negativo, que remete a um suportar relutante, e o seu sentido positivo, que envolve o apoio manifesto da diferença. O primeiro grau de tolerância, de acordo com Walzer, é justamente a ideia que predominava nos séculos XVI e XVII: “é simplesmente uma resignada aceitação da diferença para preservar a paz. As pessoas vão se matando durante anos e anos, até que, felizmente um dia a exaustão se instala, e a isso denominamos tolerância”70. Nesse estágio, a tolerância não é virtude positiva, mas apenas uma resignação relutante. Em seguida, avançando um grau de aceitação, vem a ideia de indiferença à diferença. Aqui percebe-se um avanço no sentido da anuência a comportamentos e atitudes diferentes. Um terceiro grau decorre de “um reconhecimento baseado no princípio de que os outros têm direitos, mesmo quando exercem tais direitos de modo antipático”71. A quarta espécie deixa entrever uma espécie de abertura para com os outros: uma curiosidade, e uma disposição de ouvir e aprender. Há o abandono da relutância e uma abertura sincera à diferença. O quinto ponto é o mais avançado do continuum: não é apenas o respeito, mas o “endosso entusiástico da diferença”. É uma aceitação positiva, ativa, e aí a pergunta é se ainda se trata de tolerância, já que há um apoio efetivo. Walzer esclarece que o regime da tolerância será mais estável quanto mais a comunidade estiver no ponto mais avançado deste continuum, pois a tolerância é sempre uma realização precária72.

69 WALZER, M. Da tolerância, p. 16. 70 WALZER, M. Da tolerância, p. 16. 71 Cf. WALZER, M. Da tolerância, p. 16. 72 Cf. WALZER, Da tolerância. pp. 17-18.

De modo mais direto, Susan Mendus considera duas posições sobre a tolerância. A primeira, chamada de interpretação negativa da tolerância, sustenta que se deve apenas permitir formalmente aos outros o exercício de certas liberdades e abster-se do impedimento a esse exercício ou da perseguição. A segunda é uma interpretação positiva que afirma que a tolerância requer mais do que apenas uma resignação ou indiferença, mas também assistência, auxílio e proteção.73

Esta gradação ou maleabilidade imanentes ao conceito de tolerância também se revela na filosofia de Pierre Bayle. Para este autor é possível falar em graus de intolerância, e, por conseguinte, em uma tolerância mais ampla ou mais restrita. Ao sustentar uma aceitação da diferença que fugia ao que era comumente proposto em sua época, o filósofo inova uma vez mais ao propor uma ideia de tolerância religiosa ampla, fundada sobre a liberdade de consciência74. Como já se viu, no século XVII, a tolerância era vista como um mal menor e todo alargamento do conceito de tolerância aparecia como uma “indulgência culpável”75. Este conceito tinha um sentido eminentemente negativo, pois lidava com a resignação ante algo que não se poderia evitar. A

73 Cf. MENDUS, Susan. Toleration and the limits of liberalism, p. 16.

74 Sem dúvida muito foi escrito a favor e contra a tolerância na época de Bayle, especialmente na

Holanda, mas a maioria dos autores sempre foi muito cautelosa em afirmar a tolerância como resposta aos conflitos religiosos, e muito mais ainda em afirmar uma tolerância irrestrita, que abarcasse todas as seitas. A literatura crítica mostra que ao lado de Bayle, foram muito lidos Basnage de Beauval, e o seu La Tolérance des religions (1684), Adriaan Van Paets, traduzido por Bayle e a Lettre sur les derniers troubles d’Angleterre, où il est parlé de la tolérance de ceux qui ne suivent pas le religion dominante (1686), Pierre Jurieu, com a obra La Politique du clergé de France, ou Entretiens curieux de deux catholiques romains, l'un Parisien & l'autre Provincial, sur les moyens dont on se sert aujourd'huy, pour destruire la religion protestante dans ce royaume, (1681), Jean Le Clerc, que escreveu Theological Epistles (1681) e, é claro, John Locke, com a Carta sobre a tolerância (1689), obra que será abordada com mais detalhe adiante. Sobre toda uma série de trabalhos que sustentavam a tolerância religiosa a partir de 1680, bem como a rede de assistência mútua que se formou entre seus autores, cf. MARSHALL,

John. John Locke, Toleration and Early Enlightenment Culture, pp. 471-477.

aceitação da diferença era o último recurso, a ser implementado com relutância76.

A análise do texto do Commentaire philosophique indica, porém, um distanciamento de Bayle com relação a esta tolerância mínima. Para o autor, a aceitação da diferença não é articulada como um mal necessário; ao contrário, o pluralismo de cultos e de crenças é posto como algo essencial e positivo. E não poderia ser diferente, dadas as bases de sua doutrina: segundo ele, a liberdade de consciência é um mandamento da lei natural e também algo inerente à natureza humana.

Sally L. Jenkinson, no artigo Two concepts of tolerance: or why Bayle is not Locke, afirma que, muitas vezes, o sentido de tolerância em Bayle varia entre os seguintes significados: 1. tolerância como civilidade nas condutas; 2. tolerância como isenção à conformidade da religião oficial, segundo a qual a autoridade política exime membros de certas seitas da obrigação de se converterem à religião oficial; e 3. tolerância como liberdade de pensamento, expressão e associação, como direito constitucionalmente assegurado77.

Certamente Bayle entendia a tolerância como noção essencial que permitiria uma convivência pacífica e organizada. A civilidade nas maneiras é algo sempre apontado como uma meta e que deve ser alvo de emulação entre os homens. A tolerância permitiria essa civilidade. Isso não quer dizer, porém, que o autor a percebia como indiferença religiosa. Isso não seria suficiente. Não se trata de escolher apenas entre dois caminhos: eliminar os heréticos ou abandoná-los a seus erros, sem preocupações. Bayle afirma que é possível trabalhar pela conversão dos que se crê estejam em erro, com todos os cuidados possíveis, mas por instruções, pelo esclarecimento de dúvidas. No

76 Cf. DELUMEAU, J., que na obra Nascimento e afirmação da reforma, p. 189, cita o Procurador geral

Omer Talon: “os reformados não são suportados a não ser por tolerância e dissimulação, como se atura uma coisa que realmente se desejaria que não existisse”.

77 Cf. JENKINSON, Sally L. Two concepts of tolerance: or why Bayle is not Locke. The Journal of

entanto, se ainda assim o outro não se persuadir, não se pode constrangê-lo pela coerção78.

Quanto ao segundo sentido apontado por Jenkinson, a tolerância como isenção da conformidade, não parece que Bayle tenha emprestado esse significado à sua noção de tolerância, pois ele é enfático ao afirmar que a autoridade política não pode legislar em matéria de religião. Bayle não segue a doutrina do “cuius regio eius religio”. Então, o melhor não é que haja dispensa de seguir a religião do príncipe, mas que não haja religião oficial da qual haja isenção79. Os governantes e indivíduos que não concedem liberdade de consciência àqueles que querem seguir sua religião, sem causar nenhum prejuízo às leis nacionais e políticas, agem injustamente80.

Assim como há graus de tolerância, parece possível supor que no Commentaire philosophique há também graus diversos de intolerância, e por isso torna-se necessário o estabelecimento de uma regra, ou um ponto de referência para guiar os homens numa situação de conflito:

Deve-se trabalhar com todas as forças para instruir com boas e vivas razões os que erram; mas deixar-lhes a liberdade de declarar que perseveram em seus sentimentos e de servir a Deus segundo sua consciência, se não temos a felicidade de esclarecê-los; e, quanto ao resto, não propor à sua consciência nenhuma tentação de mal temporal ou de recompensa capaz de seduzi-los81.

78 Cf. BAYLE, P. CP, II, 4, p. 225-6.

79 Cf. JENKINSON, Sally L. Two concepts of tolerance: or why Bayle is not Locke. The Journal of

Political Philosophy. Volume 4, nº 4, 1996, pp. 309-10.

80 Cf. BAYLE, P. CP, II, 5, p. 251.

81“Que l‟on doit bien travailler de toutes ses forces à instruire par de vives et bonnes raisons ceux qui

errent ; mais leur laisser la liberté de déclarer qu‟ils persévèrent dans leurs sentiments, et de servir Dieu selon leur conscience, si l‟on n‟a pas le bonheur de les détromper ; et quant au reste, ne proposer à leur conscience aucune tentation de mal temporel, ou de récompense capable de les séduire”. BAYLE, P. CP,

Aí está o ponto fixo no qual se funda a verdadeira liberdade de consciência: quanto mais se separa deste ponto, mais aumenta a intolerância, cujo grau máximo é a imposição de sanções civis e penais. Essa “escala” proposta por Bayle traz indicações importantes a respeito do seu entendimento sobre a tolerância. Em primeiro lugar, a tolerância não implica indiferença, pois, se há alguém em erro, pode-se procurar dissuadi-lo, mas somente com razões e argumentos. Em segundo lugar, não se trata de uma indulgência negativa, mas do reconhecimento do direito do outro de exercer a sua liberdade de consciência e expressão, desde que não fira as leis civis. Por último, há a condenação de todo artifício coercitivo, violento ou não, que busque constranger a consciência.

Nesse sentido, é curioso notar que Bayle se insurge contra toda espécie de coerção, implique ela castigos corporais ou apenas em “tentações do espírito”. Pouco antes da revogação do Edito de Nantes, além das “dragonadas”, expedições militares que arrancavam conversões e assinaturas dos huguenotes à força, também se criaram expedientes sutis que procuravam “facilitar” a conversão à Igreja Católica. Em 1676, Paul Pellison, também convertido ao catolicismo, aconselhou o rei francês a dispor de cerca de 100 000 libras entregues pelas abadias para gratificações aos novos católicos. Isso foi mal visto por Bayle, pois, como narra Jean Delumeau, “houve naturalmente escândalos de uma e de outra parte: do lado católico, intermediários retiveram uma parte do dinheiro que devia ser entregue aos novos fiéis de Roma; do lado protestante, algumas pessoas pouco escrupulosas abjuraram várias vezes, receberam vários prêmios e continuaram a ir ao templo”82.

Bayle insurge-se sempre com veemência contra este tipo de conversão, que revela além da intolerância, a falta de sinceridade. Existem vários graus de coerção, e a morte pura e simples não ocuparia o primeiro lugar em torpeza, segundo seu pensamento. Na verdade, o oferecimento de somas em dinheiro mediante conversão ocupa um grau maior na escala que a

intolerância envolve, pois importa em comportamentos reprováveis tanto do agressor quanto do agredido: “um ambicioso não se inclinaria a trair o que sua consciência lhe dita, quando visse uma bela soma em recompensa de sua hipocrisia?”83. Assim, a intolerância não se limita a atos violentos externos. Há também as violências implícitas, o constrangimento subreptício. Para Bayle, todas as espécies de intolerância são reprováveis e imorais. Mas a que envolve as “tentações do espírito” é a pior de todas. A violência explícita pelo menos não corrompe a sua vítima, ao passo que as tentativas de suborno geram uma dupla corrupção, a do carrasco e a do “convertido” que trai sua consciência:

Considerando bem, as perseguições que matam são as melhores de todas, e principalmente quando não permitem a vida àqueles que abjuram, pois prometer a vida a um homem condenado à morte, prometê-la, digo, caso ele abjure a sua religião, é um meio muito perigoso de fazê-lo cometer um ato de hipocrisia, e um pecado enorme contra sua consciência84.

A filosofia de Bayle, mas especialmente o Commentaire philosophique constrói um plano teórico que, ao refutar as razões dos perseguidores, funda positivamente a tolerância, sob uma perspectiva racional e ainda da sinceridade moral e religiosa. Seu programa será radical, com a recusa total da coerção e a extensão da tolerância ao ateu e ao herege. A tolerância está para a sociedade política tal como a polifonia para a música. Apesar da diversidade de cultos, e muitas vezes das oposições existentes, o resultado final é de harmonia e concórdia:

83“Un ambitieux ne se portera-t-il pas a trahir ce que sa conscience lui dicte, lorsqu‟il verra une belle

charge pour récompense de son hypocrisie?”. BAYLE, P. CP, p. 62.

84 “À tout bien considérer les persécutions qui font mourir sont les meilleures de toutes, et principalement

lorsqu‟elles ne donnent point la vie à ceux qui abjurent ; car promettre la vie à un homme condamné à mort ; la lui promettre, dis-je, en cas qu‟il abjure sa religion, est un moyen fort dangereux de lui faire un acte d‟hypocrisie, et un péché énorme contre sa conscience”. BAYLE, P. CP, II, 3, p. 223.

A tolerância é a coisa mais adequada do mundo para resgatar o século de ouro, a produzir um concerto harmonioso de várias vozes e instrumentos de diferentes tons e notas, tão agradáveis pelo menos quanto a uniformidade de uma mesma voz.85

A tolerância é um imperativo e para ela não pode haver exceções. Justamente porque é fundada na liberdade de consciência, dela não se excluirão católicos, protestantes e nem mesmo ateus: “é preciso tudo ou nada. Não se pode ter boas razões para tolerar uma seita se elas não são boas o suficiente para tolerar uma outra”86. O único limite da tolerância são atos que se choquem com a conservação da sociedade política, pois isso implicaria em última instância uma desobediência às leis civis.

Assim cabe investigar esses dois tópicos sob os quais se assenta a doutrina da tolerância de Bayle. Em primeiro lugar, a liberdade de consciência, que garante o direito ao erro. Em seguida, o seu pensamento político, pois apenas o poder político é garantidor da ordem pública. Esses serão os temas dos próximos capítulos.

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85 “La tolérance est la chose du monde la plus propre à ramener le siècle d‟or, et à faire un concert et une

harmonie de plusieurs voix et instruments de différents tons et notes, aussi agréable pour le moins que l‟uniformité d‟une seule voix”. BAYLE, CP, II, VI, p. 257.

86“ Il faut tout ou rien. On ne peut avoir de bonnes raisons pour tolérer une secte, si elles ne sont pas

O

DIREITO DE ERRAR

A infinita liberdade da busca

Eu tenho o direito de persegui-los porque estou certo e vocês estão errados. Bossuet

O que é uma comédia para vocês é uma tragédia para nós. Bayle