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Capítulo I A Adolescência e a Spina Bifida

1.1 Viver com Spina Bifida: Repercussões na saúde e bem-estar

1.1.2. Implicações da Spina Bifida no Autoconceito e na Autoestima

Ao longo do desenvolvimento da criança, a construção do self é um processo complexo e multidimensional que envolve fatores do foro intrapessoal, extrapessoal, ambiental e associado a múltiplas alterações e redefinições de papéis (Harter, Waters, & Whitesell, 1998).

Harter et al. (1998) referem o autoconceito como um constructo que diz respeito ao modo como a criança perceciona os seus próprios atributos ou fragilidades. O autoconceito global representa um “sentimento de valor pessoal que não se resume à soma objetiva das diferentes partes que o compõem, mas exige a elaboração de uma síntese do valor global a partir de vários domínios” (Faria, 2005, p. 362). Estes domínios incluem 1) aceitação social que avalia como o adolescente se perceciona em relação ao modo como é aceite pelos pares; 2) amizades íntimas, isto é, a capacidade para fazer amigos íntimos; 3) atração romântica, ou a capacidade de atrair aqueles por quem está romanticamente interessado; 4) aparência física, ou o modo como avalia a sua aparência e a satisfação em relação ao próprio corpo; 5) competência atlética, que se refere ao modo como avalia a sua própria capacidade para desempenhar a prática desportiva; 6) conduta no comportamento, que avalia o grau de satisfação relativamente ao seu comportamento; e por fim 7) autoestima, a qual se refere à componente avaliativa ou afetiva do autoconceito. Esta última dimensão é destacada pela autora por ser um domínio independente dos outros e que se refere ao julgamento de como o adolescente se perceciona quanto ao seu valor enquanto pessoa (Harter, 2012b).

O desenvolvimento do autoconceito inicia-se na infância. A criança recebe e organiza a informação acerca de si própria e começa a compreender a relação entre si e os outros. Neste período há uma evolução marcante no desenvolvimento cognitivo, nas relações interpessoais com a família e na influência dos pares (Papalia et al., 2009). No período

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do pensamento concreto, o autoconceito está pouco diferenciado e centra-se nos atributos físicos e na realização das AVD. Com o desenvolvimento, o autoconceito vai- se tornando mais integrado e diferenciado e a criança percebe mais claramente o self como uma caraterística interna e psicológica. No período do pensamento formal o autoconceito torna-se mais abstrato e complexo. É acompanhado por um aumento da introspeção que exige “integração, organização e estruturação” das experiências “teste” acerca de si próprio, para a distinção e separação do self em relação aos outros e através das suas escolhas, construir um self consistente nas várias situações da vida e no desempenho dos diversos papéis sociais (Faria, 2005, p. 363).

O autoconceito não resulta somente das perceções que a criança tem acerca de si própria, mas também das suas experiências e da opinião dos outros. Numa fase precoce da infância os pais têm uma influência preponderante, e aqueles que interagem positivamente tendem a desenvolver na criança um autoconceito e uma autoestima mais positivos. Na infância tardia outros fatores sobressaem pela relevância que assumem na construção do autoconceito. São exemplos, a aceitação pelos pares, o suporte social e o ambiente onde estão inseridos, quando permitem que a criança se destaque em determinada competência. Por esse facto são considerados preditores importantes para o autoconceito positivo e para uma vida adulta plena (Russell-Mayhew, Arthur, & Ewashen, 2007).

A autoestima é construída a partir das autoavaliações baseadas na competência ou nos atributos pessoais e que culturalmente são percebidos como valores positivos ou negativos. Esta fonte de autoavaliação possibilita ao jovem alguma influência na sua autoestima, ao desenvolver potencialidades que lhes trazem satisfação nas realizações pessoais (Bandura, 1997). Quando a desvalorização provém de múltiplas fontes (atitudes discriminatórias, incompetência), o mesmo autor alerta para a necessidade da implementação de medidas corretivas múltiplas e que devem focalizar-se em fomentar o valor próprio e orgulho nas caraterísticas pessoais e também no desenvolvimento de competências que incutam uma elevada sensação de eficácia pessoal no desempenho. As experiências negativas durante a infância podem provocar sequelas para toda a vida e comprometer a construção do self. Durante a adolescência, a experiência dos défices resultantes da SB podem determinar uma crescente consciencialização da superioridade dos pares, em termos de capacidades e competências que, associada às exigências

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diárias, tendem a provocar ansiedade, frustração, desilusão, medo do fracasso, fraca autoconfiança, baixa autoestima e autoconceito (Sandler, 2004).

Ao realizar uma avaliação dos elementos auto descritivos, é muito provável que o jovem com deficiência sinta a relevância das suas limitações físicas e necessidades especiais e este julgamento a leve a menosprezar o seu autoconceito e a sua autoestima (Bellin et al., 2007; Rodrigues, 2000; Shields, Taylor, & Dodd, 2008). O confronto com a sua deficiência é particularmente difícil, situação que muitas vezes leva à negação da incapacidade e à desistência dos tratamentos (Bellin et al., 2007; Sandler, 2004). São jovens que experienciam momentos de vulnerabilidade acrescida relacionada com o estigma e a consciência da deficiência e das dificuldades tem um impacto negativo no autoconceito percebido (Bellin et al., 2007).

Os inúmeros desafios que estes jovens encontram podem interferir no desenvolvimento normal da adolescência e na formação da identidade. Dependem não só da liberdade e acessibilidade para experimentar comportamentos e regras (sair com amigos, acampar, passear), mas também das oportunidades de interação social que são muitas vezes limitadas pelo próprio, e estão associadas ao receio de ter acidentes imprevistos relacionados com a incontinência urinária e intestinal (Ridosh, Braun, Roux, Bellin, & Sawin, 2011), ao estigma e ao bullying (sobretudo no ambiente escolar) (Ridosh et al., 2011; Soares et al., 2008). Os jovens reportam que são considerados pelos outros como infantis, frágeis e incapazes e que esses sentimentos influenciam o modo como se avaliam (Soares et al., 2008).

Apesar de parecer evidente que as limitações associadas à SB provocam um efeito consideravelmente negativo no autoconceito e na autoestima, não existe consonância na literatura e a evidência científica revela alguma inconsistência (Moore, Kogan, & Parekh, 2004).

Buran et al. (2004) procuraram identificar a perceção dos jovens com SB acerca de algumas dimensões do autoconceito e da autoestima. Os resultados permitiram concluir que os adolescentes com SB têm, no geral, uma autoestima positiva e uma elevada perceção de competência na habilidade para desenvolver amizades íntimas. Os autores relacionam estes resultados com os fatores protetores que influenciam positivamente o modo como os jovens percecionam o seu valor como pessoa tais como, os recursos

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familiares, os cuidados de saúde adequados, e Appleton e seus colaboradores (1994) acrescentam ainda, o suporte por parte dos amigos íntimos.

No entanto, os resultados do estudo de Appleton et al. (1997) revelaram que os jovens com SB apresentam valores mais baixos na autoestima quando comparados com os seus pares sem alterações. Os autores encontraram uma forte associação entre a autoestima e o domínio da aparência física, concluindo que a aparência física constitui um fator determinante na avaliação da autoestima, tal como já sugerido por Harter (2012b). Os jovens com SB revelam sentir-se menos competentes no domínio da aceitação social, têm menos amigos e experienciam um maior isolamento social associado às limitações funcionais, que dificultam a interação social (Appleton et al., 1994; Buran et al., 2004; Essner & Holmbeck, 2010; Holmbeck, DeLucia, et al., 2010). Têm menos expectativas no domínio da atração romântica (Buran et al., 2004) assim como na dimensão académica e atlética (Appleton et al., 1994) quando comparados com os seus pares sem alterações.

Outro fator que pode igualmente interferir na perceção da autoestima e do autoconceito em indivíduos com SB é a severidade da incapacidade e as repercussões ao nível funcional. Minchom et al. (1995) encontraram uma associação negativa entre a autoestima e a capacidade funcional e como tal, considerem não ser correto assumir que o impacto psicossocial da SB é menor na criança com menor grau de incapacidade. Clayton, Brock, e Joseph (2010) associaram a incontinência social (urinária e intestinal) a uma autoestima baixa. O impacto da incontinência urinária provoca alterações no autoconceito da criança com SB enquanto o controle da eliminação está associado a um melhor autoconceito (Antolovich & Wray, 2008) e maior autoestima (Moore et al., 2004). Acrescentam ainda que, quando os jovens são totalmente continentes apresentam valores do autoconceito similares aos dos seus pares sem alterações.

No que respeita ao impacto da incontinência de fezes, é descrito como o mais devastador a nível psicológico, por ser uma situação que interfere negativamente nas relações interpessoais e na qualidade de vida, provocando sentimentos de raiva, depressão e baixa autoestima (Di Lorenzo & Benninga, 2004; Leibold, 2010).

O estudo de Antle (2004) ao relacionar a idade de início da incapacidade (congénita ou adquirida) com a perceção do self e a qualidade de vida, concluiu que os jovens com SB

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apresentam valores de autoestima mais elevados do que os jovens com lesão medular adquirida. Os autores explicam esta discrepância com o facto de os primeiros aprenderem a lidar, desde cedo com as barreiras atitudinais associadas ao estigma. No entanto, na revisão sistemática da literatura com metanálise realizada porShields et al. (2008) para determinar se a criança com SB apresenta valores de autoconceito inferiores quando comparados com os seus pares sem alterações. Os resultados revelam que as crianças com SB apresentam valores no autoconceito significativamente inferiores nas dimensões aceitação social, aparência física, competência atlética e competência escolar, quando comparados com os seus pares sem alterações. Relativamente à autoestima os resultados revelam que os jovens com SB apresentam valores na autoestima inferiores aos seus pares sem alterações.