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3 REPENSAR AS METÁFORAS DUALISTAS

3.1 IMPLICAÇÕES DO PROBLEMA CORPO-MENTE

O dualismo corpo-mente além de fazer parte do ideário da grande maioriadas pessoas, desmembra outros pensamentos dualistas a respeito do corpo assim como algumas situações político-sociais, seja na vida bem como na arte, proveniente destes.

Podemos então partir da indagação:

De que modo um olhar que privilegia a mente, associando essa a algo imaterial como o espírito, em detrimento do corpo, pode refletir subjugações do/no corpo?

Apenas para exemplificar, se pensarmos nas grandes guerras mundiais e nas inúmeras guerras civis que aconteceram e estão acontecendo pelo mundo, e tentarmos imaginar os milhares de vidas perdidas sobre um parco índice que não as contabiliza, mas que conta apenas corpos, podemos perceber o quão perigosa pode ser essa separação entre corpo, mente e espírito. Pois quando convém, as pessoas podem facilmente ser ressignificadas a corpos perdidos, porém com suas almas intactas. De fato há uma desvalorização da vida ao separar o corpo e espírito, sendo este considerado o guardião da mente. Podemos também pensar, a partir desse duro e triste exemplo, quantas outras formas de manipulação da vida podem estar embasadas no antigoproblema ontológico.

O filósofo Roberto Esposito (2010) traz uma possibilidade de repensar a política através da biopolítica, “que se caracteriza por um conjunto de ações e estratégias políticas que tem por objetivo a promoção e proteção da vida e da subjetividade”, (2010, p. 65). Contudo Esposito se preocupa em decifrar o enigma de como a biopolítica pode decair em uma tanatopolítica, ou seja, na adoção de medidas que suprimem formas de vida tomadas como dispensáveis e perigosas à comunidade.

Qual o efeito da biopolítica? Chegado a este ponto a resposta do autor [isto é, Foucault] parece bifurcar-se em direções divergentes que levam em conta outras duas noções, desde o início implicadas no conceito de bios, mas situada nos extremos de sua extensão semântica: aquela de subjetivação e aquela de morte. Ambas – no que diz respeito à vida – constituem mais do que duas possibilidades. São ao mesmo tempo sua forma e seu fundo, sua origem e seu destino. Mas em cada caso, segundo uma divergência que parece não admitir mediação: ou uma ou outra. Ou a biopolítica produz subjetividade ou produz morte. Ou torna sujeito o próprio objeto ou o objetiva definitivamente. Ou é política da vida ou sobre a vida. (ESPOSITO, 2010, p. 54)

Não seria então possível estabelecer uma relação entre a tanatopolítica e o exemplificado anteriormente, sobre as implicações que o problema corpo-mente pode trazer à vida social, artística e afetiva das pessoas, utilizando discursos para justificar o genocídio? Não seria favorável a separação entre mente e corpo a esse discurso em que aquilo que precisa ser eliminado, de fato o é, retirando dele primeiro sua característica fundamental – ser humano, ser vivente – para em seguida massacrá-lo?

Com esses apontamentos apresentados, o intuito é argumentar que existe alguma relação entre o dualismo corpo-mente e a política que está inserida na vida. Do mesmo modo perceber outras implicações e dualismos desse problema em outras esferas, como a arte, e no caso específico, a dança.

A pesquisadora e professora Christine Greiner (2011) exemplifica alguns dualismos oriundos da separação corpo-mente: cognição/emoção, fato/valor, conhecimento/imaginação, pensamento/sentimento. E também aborda outros advindos da separação entre teoria-prática: teoria-política; opressor-oprimido; centro-periferia; imagem positiva-negativa, contudo afirma que mesmos esses, decorrentes da teoria X prática vêm do dualismo corpo-mente.

Gostaria de propor, para aprofundar um pouco mais essas noções de mediação e processos de tradução entre teoria e prática, palavra e ação, que será preciso enfrentar outro tipo de binarismo formulado antes de todos. Trata-se do binarismo corpo/mente e que está absolutamente relacionado a um problema característico da existência humana: as pessoas querem que sua vida seja significativa, e esta é uma vontade e uma necessidade que permeia toda e qualquer ação política. O filósofo Mark Johnson (2008) explica que esse desejo de significar é tão forte que é possível que se arrisque a própria vida buscando dar um sentido às experiências, testemunhar a nossa existência. A questão que nos interessa neste momento é que o significado é sempre corporal. Ou seja, discutir sua natureza corpórea pode ser uma forma de romper o binômio corpo/mente que, por sua vez, fundamenta as relações hierárquicas entre teoria e prática. (GREINER, 2011, p.6-7)

Greiner justifica nesse texto que se o problema corpo-mente acarreta outros problemas dualistas que reverberam na vida social e política (acrescento artística) das pessoas, então repensando corpo-mente poderemos promover mudanças efetivas.

Em outro texto Greiner (2003a, p.12) também questiona corpo-mente ao afirmar que:

[...] alguns cânones da filosofia precisam ser repensados com urgência, como, por exemplo, o imbatível dualismo cartesiano que entende a mente na perspectiva de uma natureza distinta do corpo. [...] No primeiro momento, este parece um problema que só diz respeito a questões filosóficas e análises do discurso. Porém, é muito mais do que isso. As novas investigações referem-se aos estudos da cultura, da arte, da história, da política, do acesso às novas tecnologias e assim por diante. [...] Uma tarefa importante é discutir o entendimento do corpo como instrumento. Muitas pesquisas das chamadas décadas do corpo chamam a atenção para a sua existência no mundo contemporâneo, mas são quase sempre apenas nova roupagem para antigos pensamentos e convicções como a de que o corpo é apenas uma máquina habitada por alguma substância hierarquicamente mais importante, e menos perecível do que a carne. [...] (GREINER, 2003a, P.12)

Denise Najmanovich (2009) também aponta a necessidade de repensarmos os dualismos que operam sobre o corpo e reverberam em várias instâncias da sociedade. A autora afirma que o homem isolou o corpo de seu meio, de sua comunidade e ainda o fragmentou em diversas áreas separadas de estudo. No entanto, criticar o dualismo e tentar unir essas separações não seria o melhor caminho, pois o que precisamos, conforme Najmanovich (2009), é elaborar outras metáforas e cartografias para criar um lugar em que as diversas formas de corporalidade coabitem.

Para a autora um primeiro passo seria nos abrirmos para a multidimensionalidade de nossa experiência corporal e compreender suas relações com os discursos sobre o corpo. Contudo, segundo Najmanovich (2009, p.6, tradução minha), “as dimensões da corporalidade não são ‘partes’ do corpo, são modos de focalizar a experiência que temos como seres corpóreos. E, essa experiência nos afeta globalmente [...]” 37

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37 “Las dimensiones de la corporalidad no son ‘partes’ del cuerpo, son modos de focalizar la

E, em contraponto ao dualismo, Najmanovich (2009) afirma que nas últimas décadas está começando a surgir uma estética de redes fluidas que permite experimentarmo-nos como partes indissociáveis do universo, entendido como uma infinita estrutura vital. Najmanovich (2009) traz o filósofo Baruch Spinoza como um dos primeiros a propor esse modo de pensar, já no Século XVII. Diferente de Descartes que concebeu um mundo mecânico rigidamente estruturado em coordenadas cartesianas, Spinoza nos oferece um universo todo enredado e ativo. A natureza seria, “[...] uma rede infinita de intercâmbios em que nada está isolado e, que cada entidade precisa das demais para existir” (NAJMANOVICH, 2009, p.9, tradução nossa)38. Todas as partes se afetam mutuamente e se transformam. Para a autora, se seguirmos as pegadas de Spinoza, poderemos começar a ter uma visão não dualista.

3.2 DANÇAS CONTEMPORÂNEAS : CONTRIBUTOS PARA OS NÃO