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3 REPENSAR AS METÁFORAS DUALISTAS

3.4 OUTRAS POSSIBILIDADES PARA REPENSAR OS DUALIMOS

3.4.2 Membrana como possibilidade à divisão dentro-fora

Será que a metáfora de um contêiner seria a melhor para explicitar a separação dentro-fora mais comumente pensada? A menos que não seja um contêiner hermeticamente fechado. Ao invés de um recipiente apartado do mundo, a ideia mais habitualmente concebida que se tem do corpo não seria de um recipiente que efetua algumas trocas com o ambiente? Aqui vale retornar que a intenção é compreender como o pensamento dualista acontece na dança, mas para isso é importante lembrar o entendimento acerca das percepções parciais descritas no primeiro capítulo. Se de um lado não se percebe as infinitas trocas de informações entre o corpo e o meio, por outro, também não se entende o corpo completamente separado do ambiente. Temos uma consciência parcial das informações que trocamos com o meio como, por exemplo, o alimento que entra pela sua boca, ou o ar que entra pelas narinas, do mesmo modo percebemos a saída dos excrementos como fezes e urina, a expiração do ar e a exalação do suor. Então não seria a metáfora do contêiner a mais adequada. Talvez alguma metáfora que compreendesse o fato do corpo perceber em si um lado de dentro e outro de fora, mas também a existência de entradas e saídas em sua relação com o meio. Contudo a percepção dessas entradas e saídas é parcial, apenas uma pequena parcela delas é apreendida. Outro fator relevante é que as informações que o corpo troca com o meio, agem em uma espécie de negociação entre aquelas que já

existem no corpo e as que estão no meio, existe uma relação entre essas informações que as transformam.

A metáfora do recipiente ou contêiner se fragiliza, se pensarmos que o corpo não é um lugar onde as informações se acondicionam, mas um fluxo inestancável que faz com que corpo e ambiente formem uma rede de conexões em vários níveis, envolvendo aspectos sensório-motores, emocionais, racionais, dentre outros. Estas operações entre o dentro e o fora têm particularidades, pois a cada vez que o corpo percebe algo de si mesmo ou do ambiente, consciente ou inconscientemente, ele se re- organiza. O corpo não é um meio onde uma informação entra impunemente, sem estabelecer quaisquer relações com as demais informações que lá já estão. (NUNES, 2009, p.107)

E, em acordo, Damásio (2004, p.204) alega que não existe uma fronteira tão definida entre o que está dentro e o que está fora do corpo, para tanto utiliza como exemplo o funcionamento da atividade cerebral que possui a função de “ajudar a regulação dos processos de vida do organismo, tanto através da coordenação interna das operações do corpo como pela coordenação das interações entre o organismo no seu todo e os aspectos físicos e sociais do ambiente”. Damásio (2011) ainda traz uma equivalência entre o corpo humano e o de um ser unicelular:

Em muitos aspectos, um organismo unicelular é uma amostra do que um organismo independente como o nosso viria a ser. Podemos vê-lo como uma espécie de abstração caricaturesca daquilo que somos. O citoesqueleto é a armação que sustenta o corpo propriamente dito, assim como o esqueleto ósseo é a nossa. O citoplasma corresponde ao interior do corpo, com todos os órgãos. O núcleo é o equivalente do cérebro. A membrana é o equivalente da pele. Algumas dessas células possuem inclusive o equivalente dos membros: os cílios, cujos movimentos combinados permitem que elas nadem. (DAMÁSIO, 2011, p.51).

Dessa comparação, o que mais interessa neste momento é a membrana ser equivalente a pele, órgão que reveste o corpo e é, em toda a sua extensão, sensível ao meio externo e não um invólucro impermeável. E, Katz (2010) se apropria do conceito de membrana para explicar a relação entre corpo e meio.

A membrana plasmática cumpre uma vasta gama de funções. A primeira, do ponto de vista da própria célula, é que ela dá individualidade, definindo meios intra e extra celular. Ela forma ambientes únicos e especializados, cuja composição e concentração molecular são consequência de sua permeabilidade seletiva e dos diversos meios de comunicação com o meio

extracelular. Além de delimitar o ambiente celular, compartimentalizando moléculas, a membrana plasmática representa o primeiro elo de contato entre os meios intra e extracelular, traduzindo informações para o interior da célula e permitindo que ela responda a estímulos externos que podem, inclusive, influenciar no cumprimento de suas funções biológicas. (DUTRA apud KATZ, 2010, p. 17)

Por analogia, compreendida como uma membrana resistente mais ao mesmo tempo flexível, a pele possui uma porosidade que possibilita a troca de informações como meio. Desse modo, deixa de ser pensada como um contorno impermeável do corpo. Ela também é corpo e faz parte de todo o processo de trocas com o meio, nessas trocas corpo e meio são modificados.

Os corpos vivos, porém não operam como máquinas processadoras, pois se transformam de acordo com as informações que trocam com o ambiente, que também se modifica. As mudanças passam a fazer parte constitutiva do corpo e do ambiente, e como não estacam, não param de transformar a coleção de informações que constituem cada corpo – uma coleção, portanto sempre transitória. (KATZ, 2010, p.19)

A pele também é afetada por essas trocas, entretanto essas modificações sempre mantêm certo grau de estabilidade nela e no restante do corpo, visto que as constantes alterações poderiam ameaçar a permanência deste. Sendo assim, ao passo que a pele possibilita uma troca de informações com o meio, ela protege o corpo contra a entrada de agentes nocivos, bem como a saída de elementos importantes para sua sobrevivência61. Vale lembrar também que além da pele o corpo humano possui outros modos de se relacionar com o meio, por meio do sentido do movimento e também através do que Damásio (2011) denomina de portais sensoriais, as regiões que contém os olhos, a boca, o nariz e os ouvidos. Podemos então pensar que a noção de dentro e fora do corpo possa ser relativizada e compreendida dentro de um viés de codependência, com trocas e mudanças constantes visto que não apenas o corpo se modifica como também o ambiente é modificado nesta troca de informações.

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Algumas dessas funções que a pele realiza para manter a sobrevivência do corpo são: “termorregulação, vigilância imunológica, sensibilidade e proteção do indivíduo contra agressões exógenas, de natureza química, física ou biológica, e contra a perda de água e de proteínas para o exterior” (CÂMARA, 2009).