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3. Os animais na construção do conhecimento médico-anatômico humano

3.4. A importância da obra de Claude Bernard

Um importante nome a ser citado, já no pós-Renascimento, e que teve grande impacto com sua atividade de investigação (toda ela alicerçada na vivissecção), é o do fisiologista francês Claude Bernard (1813-1878), considerado como o pai da fisiologia experimental

contemporânea28 (JUNIOR, 2002; TEIXEIRA, 2004). Mais de um século depois da sua morte, suas afirmações metodológicas básicas são centrais para a teoria e prática da biomedicina, segundo Lafollete e Shanks (1994). Para estes autores, Bernard era um cientista sofisticado que se utilizou do que havia de melhor na ciência do seu tempo. Sua principal obra foi Introdução ao estudo da medicina experimental, publicada em 1865. Nesta obra, o fisiologista lançou os princípios do uso de animais como modelo de estudo e transposição para a fisiologia humana, além de estabelecer as regras e os princípios para o estudo experimental da medicina. Ele provocou situações físicas e químicas que resultavam em alterações nos animais semelhantes à de doenças em humanos. Enfatizava a aplicabilidade da experimentação animal aos humanos (FAGUNDES e TAHA, 2004, p.59). Segundo o próprio fisiologista,

Experimentos em animais, com substâncias deletérias ou em circunstâncias prejudiciais, são muito úteis e inteiramente conclusivos para a toxicologia e higiene humanas. Investigações de substâncias medicinais ou tóxicas também são totalmente aplicáveis ao homem do ponto de vista terapêutico. (...) os efeitos destas substâncias são o mesmo em humanos e animais, a não ser por diferenças em grau (BERNARD, 1999. p.125) Nesta obra, Bernard também se dedica a legitimar o uso de animais para fins científicos. Ao questionar retoricamente se temos o direito de experimentar em animais, Bernard é enfático: ―Para mim, penso que temos este direito, total e absolutamente‖. E continua com a justificação:

Seria estranho se reconhecermos o direito do homem de fazer uso dos animais em vários âmbitos da vida, para serviços domésticos, comida, e proibir o uso para sua própria instrução

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Rupke (1987) acredita que outros fisiólogos franceses tiveram maior impacto sobre o estabelecimento e desenvolvimento da fisiologia da época, como Julien César Legallois (1770–1814), Jean Marie Pierre Flourens (1794-1867) e mesmo o mestre de Bernard, François Magendie (1783-1855). Rupke reconhece, no entanto, que Bernard foi o primeiro a sintetizar idéias sobre a natureza da ciência e da fisiologia, que culminou no seu livro publicado em 1865. A mesma opinião é compartilhada por Caponi (2001): Bernard ―expõe, com claridade e precisão até então inéditas, as condições de possibilidade e os marcos metodológicos mais gerais desse âmbito da biologia‖ (p.376).

em uma das ciências mais úteis para a humanidade. Nenhuma hesitação é possível; a ciência da vida só pode ser estabelecida pelo experimento, e podemos salvar vidas apenas após sacrificar outras. Experimentos precisam ser feitos, sejam em humanos ou animais. Penso que médicos já fizeram muitos experimentos perigosos em humanos, antes de os estudá-los cuidadosamente em animais. Não admito que seja moral testar remédios mais ou menos perigosos, ou ativos, em pacientes em hospitais, sem antes experimentá-los em cães; devo demonstrar, mais adiante, que os resultados obtidos de animais podem ser todos conclusivos para humanos quando sabemos como experimentar adequadamente. Se é imoral, então, realizar um experimento em um humano quando este for perigoso a ele, ainda que o resultado seja útil aos outros, é essencialmente moral fazer os experimentos em um animal, ainda que doloroso ou perigoso, se este for útil ao homem (p.102). Há uma preocupação, nesta passagem, com o uso de humanos em experimentos. Bernard afirma que os experimentos realizados em humanos são sempre os mais conclusivos, e que não há como negar isso. No entanto, para o fisiologista, ―nem a lei moral nem o Estado permite fazer no homem os experimentos que os interesses da ciência imperativamente demanda‖ (p.123). E continua, de forma enfática: ―do ponto de vista teórico, experimentos em animais de todos os tipos são indispensáveis, enquanto que do ponto de vista imediatamente prático, eles são altamente úteis à medicina‖.

Bernard reconhece que há diferenças entre homens e animais. Segundo ele, o homem possui faculdades inexistentes nos animais. Bernard oferece alguns exemplos: não podemos saber exatamente a sensação que os animais experienciam; animais possuem enfermidades desconhecidas ao homem; a suscetibilidade a inflamações de alguns órgãos não se dá no mesmo grau que no homem. Mas para o fisiólogo,

Longe de serem motivos para abandonar a experimentação e de aplicar as conclusões das investigações patológicas feitas em animais às diferenças observadas em humanos, estas diferenças fornecem razões convincentes do contrário (p.125).

Para Bernard, estas diferenças eram basicamente quantitativas. ―Ele pensava que as propriedades fundamentais das unidades vitais eram as mesmas para todas as espécies‖, afirmam Lafollete e Shanks (1994, p.202). Assim, ainda que o fígado varie de tamanho entre uma e outra espécie, elas respondem ao mesmo estímulo basicamente da mesma forma. A diversidade de respostas ao mesmo estímulo deve ser estudada ―e eventualmente trazidas para leis determinísticas universais‖ (p.202). Para Bernard (1999), ―apenas os estudos experimentais destas diversidades podem fornecer uma explicação para as diferenças individuais encontradas em homens, mesmo em raças diferentes ou em indivíduos diferentes da mesma raça‖ (p.125-126).

Bernard afirma, ainda, que há espécies de animais que podem ser mais apropriadas do que outras: ―Para cada tipo de investigação devemos ser cuidadosos na escolha apropriada do animal. Isto é tão importante que a solução de um problema fisiológico ou patológico depende unicamente da escolha apropriada do animal para o experimento‖ (p.123).

O fisiólogo também situou o campo da pesquisa biomédica dentro do laboratório, denegrindo a medicina clínica. Segundo Bernard, ―não podemos imaginar um físico ou químico sem o seu laboratório. Mas para o médico, não acreditamos ainda que ele precise de um laboratório; pensamos que hospitais e livros sejam o suficiente‖ (p.128). Segundo Lafollete e Shanks (1994), esta postura é condizente com o seu tempo, uma vez que ―a medicina clínica nos seus dias era um pouco mais do que alquimia‖ (p.196).

Na Inglaterra, onde os processos de expansão da área da fisiologia já vinham ocorrendo, a partir de 1870 (ou seja, cinco anos após a publicação da obra de Claude Bernard) passa a haver uma mudança completa na fisiologia (O‘CONNOR,, 1988). Segundo O‘Connor (1988), o influente fisiólogo inglês Burdon Sunderson (1828- 1905) tinha um busto de Claude Bernard em seu escritório, com quem teve aulas práticas em Paris. Este autor considera dois fatores fundamentais para a rápida expansão da fisiologia: a ideia de que ―a fisiologia deve ser ensinada através de aulas práticas, e de que os fisiólogos devem conduzir experimentos em animais‖ (p.130) (figura 7). Burdon Sanderson fazia parte de uma geração mais nova de fisiólogos, que observaram de perto o trabalho de Claude Bernard, e que reconheceram a necessidade da experimentação em animais. Segundo O'Connor (1988), foram estes fisiólogos, no contexto Britânico, que

―passaram a demandar laboratórios, equipamento e equipe para a pesquisa e para o ensino‖ (p.132).

Figura 7. Uma demonstração de fisiologia com vivisecção de um cachorro (pintura original a óleo de Emile-Edouard Mouchy, 1832)29.

29 Fonte da imagem: http://thechirurgeonsapprentice.files.wordpress.com/2011/08/fe063943110e6d5 2f7744e9c8391-1.jpg