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5. A complicação do EP vivisseccionista

5.2. A complicação do valor preditivo

5.2.2. O recurso da predição retrospectiva

O recurso da predição retrospectiva é também amplamente utilizado na literatura, como justificativa para se atribuir valor preditivo aos modelos animais, e consiste numa manipulação (ou seleção conveniente) de dados a partir do resultado de testes positivos de correlação (SHANKS e GREEK, 2009). Segundo Barlow e colaboradores (2002)

As respostas espécie-específicas em animais (...) são geralmente identificadas como tal depois de esforços intensivos de pesquisa, de forma que nosso conhecimento sobre elas permanece limitado, enquanto que nosso conhecimento sobre a possível insensibilidade de modelos animais deriva principalmente de pesquisas post-hoc a

partir de episódios ocasionais de intoxicação humana não previstos (p.150)

Um famoso manual sobre modelos para pesquisa biomédica entende o valor preditivo retrospectivamente, como neste fragmento:

Não é possível oferecer regras gerais confiáveis para a validade de extrapolação de uma espécie para outra. Isto deve ser acessado individualmente para cada experimento e pode ser verificado após os primeiros ensaios na espécie alvo (HAU, 2008, p.6, grifo meu)

Para Bailey (2005, p.236), os experimentos devem ser preditivos para a situação humana, para que sejam justificados cientificamente, de forma a ―oferecer informações possíveis de tradução para a clínica‖. No entanto,

Muitos estudos oferecem apenas ―confirmações experimentais‖ fortuitas de dados clínicos humanos previamente conhecidos, ou são agraciados quando se correlacionam retrospectivamente com estudos humanos (BAILEY, 2005. p.236)

Para entender esse recurso, o conhecido caso da talidomida merece análise, pelo papel histórico que representa. Alega-se que este medicamento, comercializado inicialmente com o nome de Grippex e logo após Contergan, não foi devidamente testado em animais para efeitos de natureza teratogênica, e que o exemplo deste medicamento está mais relacionado à má-ciência (especificamente às práticas desonestas da indústria farmacêutica). Sobre o primeiro aspecto, Saldanha (1994) comenta:

O conhecimento médico da ação teratogênica de substâncias químicas até 1961 se limitava a um certo número de medicamentos utilizados na experimentação teratológica de centros universitários e de investigação pura. Os animais utilizados pela ciência experimental daquela época quase que se restringiam a linhagens de ratos de laboratório e mais raramente aves, porcos e camundongos (p.452)

Segundo este autor, a dificuldade em detectar a teratogenicidade da talidomida decorreu de uma metodologia científica inadequada para a época. Ainda assim, o exemplo deste medicamento é válido para a discussão sobre o recurso da predição retrospectiva.

A talidomida foi introduzida no mercado ao final da década de 50 para tratar do enjôo de mulheres grávidas, e foi retirado em 1961, após vitimar dezenas de milhares de filhos das mulheres grávidas que consumiram o medicamento, com amelia (ausência de membros) ou focomelia (encurtamento dos membros junto ao tronco do feto, com ausência total ou parcial das mãos, pés e/ou dos dedos), além de problemas auditivos, visuais, cardíacos e outros. Após esta tragédia, muitos estudos foram realizados, e conseguiram de fato identificar ocasionalmente processos teratogênicos em algumas espécies de animais (SCHARDEIN, 1976), especialmente em primatas (ROGERS e KAVLOCK, 2008) - conforme exposto no quadro 8, abaixo. O caso da talidomida contribuiu para o reforço da regulamentação dos testes em animais - fato irônico para alguns autores (SHANKS e GREEK, 2009; ROGERS e KAVLOCK, 2008), uma vez que apresenta um padrão bastante complexo em várias espécies. De fato, a tragédia da talidomida provocou uma política que estimulou a ampliação dos estudos pré- clínicos em mais linhagens de animais, afim de se evitar que outras tragédias como esta ocorressem. A talidomida foi a última grande tragédia registrada na história da biomedicina. A lógica post hoc ergo prompt hoc (―depois disso, logo causado por isso‖), um argumento considerado falacioso por Shanks e colaboradores (2009), alega que estes testes foram os responsáveis pela eliminação de tragédias como a da talidomida. Uma relação simplesmente temporal não basta para que um fato seja comprovado. Outros fatores precisam ser considerados. No caso da talidomida, há que se considerar uma maior educação da sociedade em relação às conseqüências que drogas podem trazer aos fetos, e a derrubada do mito de que a teratologia ocorria dependente de sinais de toxicidade materna para os toxicologistas da época (SHANKS e colaboradores, 2009; FRANKOS, 1985).

Quadro 8. Respostas de diferentes espécies à talidomida. (a) Fratta e colaboradores, 1965; (b) Hendrickx e Sawyer, 1978; (c) Drobeck e colaboradores, 1965; (d) Lehman e Niggeschulze, 1971; (e) Newman e colaboradores, 1993. Espécie/linhage m Dose (mg/kg) Resultados Camundongoa CF1, ICR, SJL,CBA, C57

200 (-) sem mudanças fetais. Apenas remodelações fetais nos camundongos ICR tratados com placebo Ratoa Long-Evans e

Dunning-Fischer

150 (-) sem mudanças fetais significativas

Hamstera - 150 (-) sem mudanças fetais

significativas Coelhoa,d New Zealand

White/Himalaia

50, 150 e 300/50- 450

(+) anomalias fetais dose- dependentes Macacob,c Cercopithecus aethiops/Macaca mulatta (?)/150 (+) defeitos nos membros/artrogripose, micromelia, ausência de dedos

Humanoe Homo sapiens 0,5-1 (+) amelia, focomelia, problemas auditivos, cardíacos

Segundo Shanks e colaboradores (2009), o recurso da predição retrospectiva justifica a modelagem animal como prescritiva a partir da identificação apenas dos resultados positivos aos testes de correlação, tomando como base a resposta clínica já observada em humanos. É um recurso a posteriori, onde os animais das pesquisas do quadro acima foram utilizados para simular retroativamente os efeitos da talidomida. Como exemplificam os autores:

Espécies distintas demonstraram uma grande variedade de respostas à talidomida. (…) Se você aposta em vários cavalos você provavelmente encontrará um vencedor, ou se você seleciona os dados você encontrará um vencedor. No presente caso da talidomida, os efeitos humanos já eram sabidos, então selecionar os dados é fácil (p.10).

Os autores perguntam: sem o conhecimento prévio da resposta em humanos, qual das espécies acima seria preditiva para a talidomida, em humanos? Segundo os autores, não seria possível saber. Há muitos estudos que evidenciam diferenças inter-específicas significativas no metabolismo e na teratogenicidade da talidomida (TEO e colaboradores, 2000). Mas considerando a hipótese de que todas as espécies do quadro acima tenham sinalizado positivamente à talidomida, ainda assim não se poderia afirmar que estes animais são preditivos para a resposta em humanos, pois as mesmas espécies demonstraram variar suas respostas em função da substância que estava sendo pesquisada. A alternativa seria considerar os primatas como os modelos mais preditivos para os estudos sobre teratogênese, como várias pesquisas passaram a sugerir (SCHARDEIN e colaboradores, 1985). Neste caso, considerando hipoteticamente que todas as espécies de primatas tenham respondido positivamente à talidomida, ainda assim os testes com outras substâncias teratogênicas mostraram que o valor preditivo para os humanos é de aproximadamente 50% (SHANKS e colaboradores, 2009; BAILEY, 2005). Schardein e colaboradores (1985) alegam que, ainda que para algumas substâncias (incluindo a talidomida) os estudos com primatas tenham boa correspondência com a resposta em humanos, o mesmo não pode ser demonstrado para substâncias químicas que são teratogênicos em humanos. Segundo estes autores, ―apenas oito de quinze teratógenos humanos tiveram efeitos teratogênicos em uma ou mais espécies de primatas‖ (p.56).

Uma pesquisa realizada por Nau (2001) demonstrou que a isotretinoína, fármaco utilizado principalmente para o tratamento da acne, causa defeitos teratogênicos em coelhos, macacos e humanos, mas não em ratos ou camundongos56. Uma pesquisa de Brown e Fabro (1983, apud ISOHERRANEN e BURBACHER, 2007) revisou 165 drogas que eram reconhecidamente não-teratogênicas em humanos. Os testes com primatas identificaram corretamente 80% das drogas que não eram associadas a defeitos congênitos, seguidos dos testes com coelhos, ratos e camundongos. Na mesma pesquisa, 38 drogas que eram reconhecidamente teratogênicas em humanos foram também testadas. As espécies mais sensíveis foram: porquinho-da-índia, camundongo,

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O medicamento baseado neste fármaco e comercializado com o nome de Accutane (da farmacêutica Roche) foi retirado do mercado em 2009 por provocar uma doença inflamatória intestinal. No Brasil, porém, as formas genéricas continuam sendo vendidas normalmente.

rato, coelho e primatas, sendo estes dois últimos igualmente sensitivos. Segundo os pesquisadores, ―o modelo do camundongo identificou cerca de 85% dos teratógenos humanos, enquanto os primatas não-humanos identificaram aproximadamente 30%‖ (p.331). Isoherranen e Burbacher (2007) suspeitam que a baixa taxa de concordância dos primatas humanos se dê em função de uma baixa amostragem destes animais, nos experimentos descritos. Mesmo considerando esta suspeita, segundo Bailey (2005) existem escassas evidências de sucesso na extrapolação de dados obtidos de primatas não-humanos para humanos - como veremos mais adiante.