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Importância da oralidade na fronteira

A base da formação social e econômica de toda a região da fronteira está calcada nas estâncias, que foram e são, até hoje, locais onde a oralidade domina todos os aspectos da vida cotidiana. Para o historiador Dante de Laytano (1981, p. 22), “o falar também se abrigou de forma típica na estância”, dando origem às diversas formas narrativas utilizadas na região. Apesar de atualmente haver um processo crescente de alfabetização na zona rural, boa parte dos idosos, sobretudo aqueles pertencentes às classes mais baixas, permanece analfabeta. A grande maioria das informações circula de boca em boca ou pelo sistema de rádioamadores que comunicam uma fazenda com outra. Também as estações de rádio AM (ondas curtas) são fundamentais na transmissão das notícias, e os programas que transmitem “avisos” são aguardados por todos, tanto no campo quanto na cidade, pois informam desde o cancelamento de um rodeio até a solicitação de um parente da cidade: “Olha, a Dona Fulana mandou dizer

22 Essa parece ter sido uma prática que remonta a períodos bem mais antigos. Segundo Peter

Burke (1989, p. 53): “No século XVI, o sieur de Gouberville, cavaleiro normando, lia Amadis de Gaule em voz alta para os seus camponeses em dias de chuva”. Em Megalle (1996), também encontramos: “Ora, sabe-se que, na época (séc. XII), a leitura direta, ocular, era conseguida por muito poucos. A muito maior público atingia a leitura indireta, auditiva: um leitor, em voz alta, podia ter a ouvi-lo numeroso público”. Há ainda a obra de Zumthor (1993), inteiramente dedicada a esses encontros entre “a letra e a voz” na literatura medieval. Já o exemplo brasileiro mais conhecido é o dos folhetos de cordel, que estabelecem também, há muito, o percurso oral- escrito-oral (FERREIRA, 1980, 1991, 1995a, 1995b, 1999; CAVIGNAC, 1997, 1999).

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que pode mandar o casaquinho branco...”. O estilo peculiar e muitas vezes lacônico dos avisos, inclusive, funciona como um dos grandes motes para a criação de anedotas a respeito (LEAL, 1989).23

Graças a esses fatores, nessa região da fronteira, a imaginação e a capacidade criativa da população em geral estão bastante direcionadas para os eventos narrativos. Apesar de a música, a dança e a trova também possuírem fortes representantes e usufruírem de grande popularidade, a narração de causos parece ser a manifestação comunicativa e, por que não, artística, de maior abrangência.24 Isso se dá devido a aspectos como a flexibilidade de

horário e local para sua ocorrência e especialmente, creio, pelo fato de que não há um processo formal de aprendizagem, o que habilita todos a participarem, alternando, inclusive, seus papéis de ouvinte e narrador.25

Essa comunicação direta e democrática, que possibilita e até mesmo propõe a intervenção de todos os presentes, manifesta-se na forma com que se dispõe no espaço: a “roda” de causos, em que todos enxergam todos e o contador não se distingue de seus ouvintes, a não ser pela sua performance.26

Entendo que a oralidade na região, apesar de ter constantemente reforçado o seu caráter “tradicional” como sinônimo da manutenção de práticas antigas – “Eu fui me lembrando de alguns causos. Tu vai ver o que que tu pode aproveitar. [...] Isso foi passando de pai pra filho e tal, até que chegou na minha geração” (Seu Zeno, 64 anos, Caçapava/RS) –, está inserida

23 Seu José Ferrari, contador de Alegrete, dá exemplos desses avisos curiosos em um de seus

livros (1998, p. 96): “O rapaz adoeceu porque deram um banho, no guri, quente, depois comeu um arroz com espinhaço e saiu a cavalo, com canjica”.

24 Essa relação de valoração da fala em relação a outras manifestações culturais é abordada por

Sherzer (1992, p. 10), ao realizar uma etnografia da fala dos Kuna, do Panamá. Levando-se em conta todas as diferenças culturais, podemos verificar, em seu trabalho, alguns aspectos bastante semelhantes com a relação estabelecida entre fala e comportamento social na fronteira: “Resulta obvio para cualquier extranjero, después de la visita más corta que haga a San Blas, que a los Kuna les encanta hablar, que hay mucha conversación en el mundo kuna y que la lengua y el habla juegan un papel significativo y verdaderamente central en la sociedad y cultura kuna”.

25 Para Chnaiderman (apud GIRARDELLO, 1998, p. 58), “o narrar está na fundação de

qualquer intersubjetividade” e, mais do que uma transmissão de um emissor para um receptor, há uma partilha de imagens. Para Girardello (1998, p. 58), essa partilha de imagens só é possível porque a imaginação, ou o espaço do pensamento por imagens, “não age no vácuo, mas a partir do imaginário, entendido aqui como o repertório de imagens concebíveis pela cultura”.

26 Leal (1992a, p. 9), dirigindo-se exclusivamente à área rural da região, salienta a função

didática dos causos em relação ao trabalho cotidiano, eles representariam um corpo de

informações transmitido num tempo (não remunerado) de aprendizado e de planejamento da lida campeira. Segundo ela: “É também no galpão, e através das falas que ali se dão, que os gaúchos classificam as coisas ao seu redor e estabelecem significados e consensos a respeito do mundo e de si próprios”.

Capítulo 1 . Fronteiras narrativas | 51

num processo dinâmico, em que a estrutura das narrativas se mantém, mas o seu significado passa a adquirir novas conotações. Também para Colombres (1998, p. 20), o relato oral está sempre em transformação, o que lhe permite ser não só tradição, mas devenir, projeto. Considerando a literatura oral como a maior expressão da cultura popular, o autor lhe atribui não apenas uma função estética, mas ética, no sentido de que serve para tornar a sociedade coesa e reproduzir seus valores. Apesar de concordar com a afirmação de Colombres, creio que a função ética das narrativas prevê não apenas a reprodução dos valores da sociedade, mas também a negação ou a proposição de novos valores: como já foi dito acima, as narrativas não só refletem, mas também moldam a sociedade.

Capítulo 2

Entre causos e histórias de vida, a

transmissão de uma cultura

No quiero ser muy largo en mis cuentos [risos], pero ese nació con un pariente de este maestro que está aquí hablando.

Don Heber, 60 anos

Minas de Corrales/UY

Depois de justificar a região de pesquisa como pertencente a uma “cultura da oralidade”, farei agora uma passagem pelas múltiplas nomen- claturas que as manifestações orais recebem e discutirei os métodos por mim utilizados na pesquisa de campo para observação das narrativas e o posterior processo de transcrição e análise destas, à luz das teorias que se ocupam, através de perspectivas e de campos de estudo diferenciados, desse mesmo fenômeno. A abordagem específica sobre o registro audiovisual das narrativas e suas performances será realizada no capítulo seguinte.

Como venho argumentando, minha prioridade, neste trabalho, é fazer uma abordagem das narrativas orais desde a perspectiva de sua inserção e importância na vida cotidiana dos sujeitos em questão. Esses sujeitos, em sua maioria idosos, habitantes da zona rural da fronteira (“campanha”) entre Argentina, Brasil e Uruguai, são hábeis em contar e recontar suas histórias, transformando a experiência vivida ou recebida de outrem em narrativa. Entre seus causos e suas histórias de vida, informações, atitudes, éticas, posturas, subjetividades, regras sociais vêm à tona. Colocadas em gestos e palavras, são postas à prova.

Antes de partir para a análise do material recolhido em campo, apresentarei o ponto de vista de alguns autores-chave sobre a importância das narrativas orais para os seres humanos ou “por que se contam histórias”. Ainda neste capítulo, farei uma revisão dos estudos que tratam das narrativas como meio e ferramenta de expressão das subjetividades, como “moeda

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de troca” nas relações interpessoais e como uma das bases simbólicas que constituem a cultura de um grupo. No último item, enfocarei a importância das narrativas pessoais nesse processo de transmissão da experiência e de “tradução” da cultura.

2.1 Panorama introdutório dos estudos sobre oralidade: