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Os usos do audiovisual em antropologia e nesta pesquisa

De acordo com Piault (2000), é engano pensar que tenha havido uma antropologia antes e outra depois da imagem. Ao contrário, ele demonstra como o surgimento da disciplina vem colado à revolução tecnológica que permitiu a apreensão de imagens em movimento54 e como ambos – numa

relação de interdependência – estavam voltados, naquele momento, a explorar a alteridade do mundo. Segundo o autor (2000, p. 8), tanto cinema quanto antropologia desenvolveram, desde o final do século XIX, uma “obsessão inventorial”, em que o acúmulo de curiosidades e exotismos do planeta era utilizado em comparações e medidas que tomavam como parâmetro a normalidade ocidental. As formulações filosóficas da época viam o mundo como uma totalidade e essa totalidade aparecia inserida numa cadeia evolutiva em cujo topo se encontrava o mundo branco, europeu, civilizado, e era sob esse ponto de vista e para esse público que as imagens eram feitas. Grande parte da crítica construída por Piault dirige-se justamente à forma com que o registro através da imagem e do som era utilizado na época, pois, colocado a serviço das empresas colonialistas, realizava o desejo mascarado de dominação que o homem ocidental projetava no outro. Para ele, absorvia- se a distância material do outro o reduzindo em imagem.55 Na abordagem de

Piault, da qual compartilho, a antropologia audiovisual deve ser considerada não somente como um espaço de produção com e pela imagem e som, mas,

54 Na verdade, as imagens não estão em movimento, mas dispostas sequencialmente numa

determinada velocidade (inicialmente 16 e agora 24 fotogramas por minuto) dando a impressão de movimento.

55 Piault demonstra que etnografias como a de Boas, e posteriormente muitas outras, inseriam-

se nessa perspectiva de realização de uma coleção concreta de formas de sociabilidade, em que a imagem funcionava como um instrumento dessa “coleção da realidade do mundo” e de uma “objetivação” do olhar.

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acima de tudo, como o lugar em que os processos dessa produção serão problematizados, inserindo-a no seio de uma reflexão epistemológica sobre o próprio desenvolvimento da disciplina.

Se a utilização de imagens nas ciências sociais não é recente,56 em muitos

casos era-lhe (e o é até hoje em muitos casos) atribuída uma função meramente ilustrativa, aparecendo como um adereço ou um índice afirmativo do texto escrito. Essa forma de emprego das imagens relacionava-se também a um desejo de reafirmação da autoridade do antropólogo, funcionando como uma prova de “ter estado ali” (GEERTZ, 1989b). Isso se dava, em parte, porque a fotografia, por exemplo, por ser um meio de construção de imagens resultante de pesquisas científicas, era compreendida, até meados do século XX, como “espelho do real” (DUBOIS apud SANTOS, 1998, p. 33).

Uma outra perspectiva, no entanto, começa a ganhar espaço a partir da crise do texto: a fotografia e, mais recentemente, o vídeo passam a ser considerados também como um “recorte da realidade”, resultante do olhar de um sujeito que foi preparado e educado por uma cultura. Imagens, tais como os textos, são artefatos culturais, escreve Novaes (1998, p. 116).

Ao iniciar a pesquisa sobre os contadores de causos, chamou-me atenção uma gravura que retratava um gaúcho em pé, de costas, que usava um chapéu e um enorme poncho que lhe cobria todo o corpo e que apontava para algo. Com seu braço direito estendido perpendicularmente em relação ao tronco, ele apontava com o indicador para o objeto de seu olhar, ausente da gravura. A expressividade daquela figura, cuja ação, tão pequena, era ao mesmo tempo tão repleta de sugestões, alertou-me, por um lado, para a importância do corpo, da performance do contador na compreensão das histórias narradas, e por outro lado, para a dificuldade de tradução em palavras da complexidade do mundo sensível.

Embora inicialmente o audiovisual tenha servido mais como instrumento de registro do que como objeto de reflexão, eu estava atenta para as especificidades das relações estabelecidas a partir do uso desse tipo de equipamento em campo. Uma das questões que logo despontou foi a de que meu papel, em meio ao grupo,

56 Desde Haddon e Rivers, que levaram uma filmadora em sua expedição ao Estreito de Torres,

em 1895, passando por Flaherty (que não era antropólogo, mas que é considerado por muitos o “pai” do filme etnográfico) – que realizou, em 1922, o clássico Nanook of the North, sobre a vida dos Inuit do Canadá –, por Malinowski – com seus ainda pouco conhecidos mas importantes registros fotográficos –, e pelo casal Mead e Bateson – que no fim dos anos 30 realizaram um majestoso empreendimento de registro fílmico e fotográfico em Bali e na Nova Guiné (do qual constaram vinte e cinco mil fotos, seis mil metros de película) –, a história da antropologia vem sendo construída com imagens. Para maiores considerações sobre o papel desses registros nas obras de cada um desses autores/realizadores e para um histórico mais detalhado da relação da antropologia com a imagem, ver Novaes (1998), Piault (2000), Samain (1995).

Capítulo 3 . Imagem e autoimagem | 81

definia-se a partir justamente do manejo desse equipamento: vendo-me um dia sem a filmadora nem a máquina fotográfica em punho, um peão me perguntou “A senhora não vai trabalhar hoje, Dona Luciana?”.

Assim como minha presença ali se justificava, de certa forma, pelo meu interesse e dedicação à realização de registros, o produto desses registros também foi significativo para o fortalecimento dos laços com a comunidade e para a compreensão dos códigos e regras que organizam a cultura local. No caso das fotografias, elas serviam como uma forma de retribuição aos contadores e seus familiares, além de representarem um recurso de aproximação e legitimação da pesquisa diante de seus sujeitos. Foi o que ocorreu quando levei as fotos que havia realizado em minha primeira ida a campo e mostrei- as, num outro momento, a diferentes contadores, já em outras localidades. O material fotográfico levado nessa segunda incursão acabou expondo também novas facetas da “rede de contadores”, pois houve o reconhecimento de alguns participantes das fotos, revelando laços de amizade, parentesco e denotando o alcance da comunidade narrativa estudada.

Minha perspectiva envolve, desde então, uma combinação de diferentes formas e funções relativas ao uso da linguagem audiovisual na antropologia. Durante meu processo de pesquisa, melhor detalhado no item seguinte, os recursos audiovisuais são utilizados, em primeiro lugar, como meio de registro de eventos complexos, as performances narrativas, que apenas a linguagem verbal não dá conta de apreender:57 “Ao que é impossível descrever, torna-

se indiscutível a prioridade da imagem, por sua capacidade de reproduzir e sugerir, por meios expressivos e artísticos, sentimentos, crenças e valores.” (LEITE, 1998, p. 44). Em segundo lugar, uma seleção representativa dos registros fotográficos – e, quando há oportunidade, dos registros videográficos também – é mostrada aos participantes da pesquisa, que fazem a exegese das imagens. Comentários e interpretações a respeito dessas imagens/sons contribuem para a compreensão das peculiaridades do contexto: atitudes, posturas corporais, vestimentas, o uso de objetos, que identificam os habitantes de cada microrregião e que são utilizados como importante fonte de informações sobre a relação que os sujeitos estabelecem entre a visão do outro e visão de si mesmo (autoimagem), especialmente em se considerando que a região pesquisada envolve a zona fronteiriça de três países. Em terceiro lugar, esses registros permitem que a análise das expressões vocais e corporais especialmente e dos eventos narrativos como um todo, incluindo o local, a audiência, os ruídos, as luzes, as cores, etc., seja realizada detalhadamente, através da possibilidade de manipulação ilimitada desse material, já fora da

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situação de campo. Em quarto lugar, as melhores fotos de cada contador e de suas famílias foram distribuídas a eles, como forma de retribuição por sua colaboração. Finalmente, uma seleção desses registros foi utilizada na construção deste livro e na produção de um vídeo etnográfico, que foi apresentado em conjunto com minha tese de doutorado.

3.2 Dialogismo e interpretações da cultura através da