• Nenhum resultado encontrado

A região de fronteira aqui enfocada tem sua economia historicamente calcada na produção agropecuária. A maior parte dessa produção é ainda hoje desenvolvida em grandes propriedades de terra chamadas, nos três países igualmente, de “estâncias”. O historiador Moacyr Flores (apud ALBORNOZ, 2000, p. 13) faz uma bela descrição do processo de formação da região e do surgimento das estâncias nesse contexto:

Pode-se aproveitar a imagem do mar Mediterrâneo para examinar a Campanha com suas verdes coxilhas onduladas onde os rio- grandenses republicanos navegam com suas carretas morosas e seus fletes rápidos, traçando rotas em direção à periferia formada por brasileiros monarquistas que defendem o império absolutista, e por forças de caudilhos argentinos e uruguaios que buscam o poder político.

Ao longo destas rotas surgem as estâncias como portos de arribação na imensidão da verde Campanha, percorrida por gaúchos, desertores, quilombolas e índios gaudérios, que iguais a piratas de terra, pilham e matam os viajantes.

Estância é uma denominação que serve para designar propriedades de terra de extensões variáveis. Uma das maiores estâncias onde estive possuía cerca de sessenta quadras,117 já outras atingiam entre sete e trinta quadras.

Propriedades menores, com 300 hectares, por exemplo, são chamadas de “estanciolas” e suas dimensões são consideradas pequenas para os padrões da Campanha. A dinâmica de funcionamento de todas guarda bastante semelhança, e talvez a maior diferença entre elas se encontre no número de empregados e na distribuição de suas funções, nas estâncias maiores há

dessa zona de fronteira, Chindemi (2000, p. 94) escreve: “El fin de las guerras civiles ya no habilitaba el juego de alianzas facciosas que a través de movimientos separatistas, montoneras y indefinición de límites complicaron los procesos de constitución de los estados nacionales, pero el mantenimiento de circuitos de bienes desterritorializados determinó la supervivencia de una dinámica fronteriza que diluía la percepción del no-ciudadano como extranjero y legitimaba las relaciones de dominación oligárquicas en la frontera”. Para maiores informações históricas sobre a região ver: César (1970), Castello (2001), Ferreira Filho (1965), Palermo (2001), Sala (1991), Silva (1968).

117 Quase que invariavelmente, as maiores estâncias são também aquelas pertencentes às

famílias mais tradicionais da região e, no caso brasileiro, muitas ainda são heranças de sesmarias doadas no período colonial brasileiro. “Sesmaria”, inclusive, é um termo utilizado por vezes como medida semelhante à “quadra”, ou seja, 87 hectares de terra (1 hectare = 10 mil metros quadrados).

164 | Gesto, palavra e memória

maior especialização e nas menores poucos empregados acumulam várias atividades.118

Foram nas estâncias, com sua divisão hierárquica de trabalho e sua organização social, que as sociedades de fronteira se estabeleceram e se desenvolveram. As pequenas aglomerações urbanas da região cresceram em função das necessidades de abastecimento e de comercialização da produção das estâncias. Os locais privilegiados para o surgimento das cidades foram aqueles junto aos “passos” de rio, por onde podiam cruzar tanto as carretas carregadas de mercadorias (tecidos, louças, perfumes, facas, etc.) como as tropas que eram vendidas ou compradas pelos estancieiros (localidade de Passo da Guarda, entre Quaraí/BR e Livramento/BR, por exemplo); junto às estações de trem, através do qual os moradores podiam deslocar-se mais rapidamente e os produtos locais também podiam ser transportados (como Villa Indarte/UY); e finalmente junto aos grandes rios, como o Uruguai, propensos à navegação e consequentemente ao transporte de pessoas e mercadorias (cidades de Uruguaiana/BR e Paso de Los Libres/AR, entre outras). As cidades daí oriundas, portanto, sempre estiveram, e permanecem na atualidade, fortemente vinculadas ao campo, sofrendo influência do modo de vida que aí se desenvolveu e tendo inclusive seu ritmo de funcionamento demarcado pela sazonalidade da produção rural. Os comerciantes das cidades, por exemplo, preparam-se para o maior consumo nos períodos que sucedem à colheita do arroz ou à tosa das ovelhas; se o preço da carne cai no mercado, os banqueiros têm de se prevenir para conceder novos empréstimos; se o dólar sobe, os insumos importados ficam mais caros, logo carne e derivados também chegam com preço mais alto ao consumidor, etc. As cidades da região recebem tão constantemente os reflexos da vida no campo que, segundo comentários de vários interlocutores, pode-se perceber se a safra do ano foi boa pelo aumento de caminhonetes novas que passam a circular pelas ruas ou pelo aumento na frequência de bares e restaurantes.

A ruralidade, desta forma, exerce um peso tão forte na região que mesmo aqueles que não possuem vínculo direto com o campo recebem ou percebem suas influências. É graças a isso que, como será abordado na sequência deste trabalho, nas narrativas que circulam pela fronteira, o fator “campo” – ou “campanha”, como é referida no discurso local – está sempre presente, seja no evento narrado (como locus de atuação dos protagonistas, como cenário de ocorrência do fato narrado, como tema das narrativas), seja no evento narrativo (como quando o próprio

118 Faço uma descrição detalhada do cotidiano de trabalho e da organização social nas estâncias

Capítulo 5 . As relações de fronteira através dos relatos orais | 165

narrador é um gaúcho/gaucho e sua performance está relacionada às suas características e comportamentos).

O modo de vida das estâncias, suas relações sociais e o tipo de trabalho aí executado são, como vimos, importantes fatores de identidade entre os povos da fronteira, e a figura do gaúcho é a grande representante desse universo.119 Há

gaúchos ou gauchos nos três países em questão e, quando a população se refere a esses sujeitos, está se remetendo ao trabalhador rural, em geral ao homem120 (sim,

a figura simbólica do gaúcho é majoritariamente referida no masculino, ainda que saibamos que muitas das características atribuídas aos homens também possam ser identificadas entre as mulheres), peão ou trabalhador de estância, que tem um modus vivendi específico, relacionado à sua própria formação, a determinados comportamentos, hábitos, maneiras de vestir e mesmo a posturas éticas e corporais. Apesar de, nas conversas com os contadores da fronteira, eu nunca ter questionado sobre esse aspecto, alguns, em meio às suas narrativas, faziam comentários dos quais se pode depreender parte da concepção local do “ser gaúcho”, como o faz Don Heber, de 60 anos (Minas de Corrales/UY):

[...] que os costilhares do Prata significa: Buenos Aires, Banda Oriental e parte do Rio Grande, que era nosso também, né? Que o gaúcho, passando de Porto Alegre pra diante, assim já em Santa Catarina, não são mais gaúchos. Ainda algum toma chimarrão, mas são poucos.

Tomazito Berruti, de 80 anos (Rivera/UY), também comenta a respeito da formação do gaucho:

Bueno, eso del gaucho hay que hablar mucho, porque el gaucho tampoco es sólo la cruza del indio con el español, el gaucho es un tipo, un producto de un ser que vivió en un determinado medio ambiente, condicionado a ciertas costumbres impuestas por la naturaleza...

Já Simone Loss, de 49 anos (Livramento/BR), relaciona o ethos gaúcho com a questão da violência e mais especificamente da violência contra a mulher:

119 Numa perspectiva que vai ao encontro do que pretendo discutir neste trabalho, Leenhardt

(2002, p. 28) comenta sobre a unidade cultural que transcende as fronteiras inscritas sobre os mapas da Argentina, do Brasil e do Uruguai: “Aquilo que [...] caracteriza este território, culturalmente, é a unidade simbólica do universo ‘gaúcho’ tal como ele foi construído na prática e na literatura, ao passo que, politicamente, é a consequência de três entidades geopolíticas, uma zona de conflitos entre três soberanias”.

120 Sobre a constituição da masculinidade entre os sujeitos gaúchos ver a tese de Leal (1989),

Gauchos: male culture and identity in the Pampas, além de artigos da mesma autora (1992a,

166 | Gesto, palavra e memória

Olha, na verdade violência contra a mulher só havia numa situação, porque tem a ver com quem era o gaúcho, quem é o ser gaúcho. Pra vir pra cá, pra se meter nessas escaramuças, pra aguentar esse clima que é bem, vamos dizer, bem desgastante, tinham que ser homens duros, porque senão não aguentavam. Então eles se juntavam em bandos e ora brigavam pelos brasileiros, ora brigavam pelos uruguaios. Na verdade, a grande parte do exército era de homens que tinham como emprego brigar. Se engajavam ora de um lado, ora de outro. Patriotas mesmo havia sim, uma grande quantidade. Esses não cometiam nenhuma violência contra as mulheres. Agora esses bandos sim. Então por exemplo, assaltavam, tavam brigando com as bandas do Uruguai, tomavam aqui, por exemplo, duas ou três estâncias de Livramento, aí eles violentavam todas as mulheres.

No entanto, quando questiono Ruben, de 56 anos (Rivera/UY), sobre essa forma de violência, ele reproduz uma narrativa, corrente na região, na qual a mulher não é vitimizada, ao contrário, ela está imbuída do mesmo

ethos (corajoso, destemido, guerreiro, ...) em geral relacionado ao homem e é a

principal agente na resolução de um conflito violento:

Yo te cuento que una de las estancias más famosas de allí fue atacada por bandoleros. Era un número importante de bandoleros – según ellos y según todos los relatos que hacen. Y que, como habían muerto peones, habían quedados muy heridos los hijos del estanciero, herido el estanciero, la mujer del estanciero ha podido vencer a los bandoleros. Según cuenta ese relato, no? Que ella en ese momento era la que cargaba las armas y alcanzaba las armas, y que después ella a dos manos tiraba también y con las dos manos hería y mataba a bandoleros. A los bandoleros que habían llevado creo que una semana de asedio a la estancia, en un par de minutos la señora pudo liquidar con todos ellos y los que quedaran [faz gesto indicativo de fuga com as mãos] se fueran. A partir de ahí la estancia, en honor de esa señora, va tomar el nombre de ella.

Outro aspecto também recorrente nos discursos dos habitantes da fronteira diz respeito à profunda relação dos gaúchos/gauchos com o cavalo, motivo pelo qual receberam a alcunha de “centauros dos Pampas”:121

121 “Centauro” teria sido a denominação dada aos gaúchos que nas revoluções lutavam a cavalo

(NUNES; NUNES, 2000, p. 102). A referência, portanto, é bastante antiga e constantemente reiterada tanto na literatura quanto nas obras antropológicas produzidas sobre a região. Bastide (1980, p. 177), por exemplo, comenta dos gaúchos que acompanhavam os enterros a cavalo: “como se esses centauros não soubessem mais andar a pé”; Leal (1989) intitula um dos capítulos de sua tese de “The gaucho as the centaur of the Pampas”.

Capítulo 5 . As relações de fronteira através dos relatos orais | 167

O meu filho nasceu quase arriba de um cavalo, desde cinco anos andando a cavalo. Nas Criollas ele gineteia com outros ginete. Gineteia em potro, gineteia em vacuno... Quatro prêmio ele já tem. (Margarita, 50 anos – Cerro Pelado/UY).

Eu nasci e me criei em estância. Com cinco ou seis anos eu andava no campo, eu andava a cavalo campereando. (Seu Luiz M. Leão, 100 anos – Uruguaiana/BR).

Hay un viejito, vive ahora en un hogar de ancianos, acá lo mandaron. Porque claro, primero él es invalido... Y la mayor amargura del viejo es que no pueda montar a caballo. La mayor tortura, la mayor tristeza de él es por no poder subir en su caballo y salir. (Alejandro, 32 anos – Rivera/UY).

A minha mãe saía a assistir [realizar partos] looonge! Olha, ela às vezes tinha compromisso com três, quatro. Saía de um lado, ia pra outro, saía de um lado, ia pra outro... Olha, ela tinha 80 anos e ela andava de a cavalo sentada! E ela correu uma carreira [corrida] com um ermão mais veio meu por cinco litro de vinho, numa égua baia, e ganhou! (Dona Nair, 69 anos – Cerro Pelado/UY).

O meu pai sempre dizia que pra domar, pra enfrear um cavalo era muito difícil... mas ele falava que ele aprendeu desde jovem a conhecer o animal, ser amigo do animal, aprendeu todo o trabalho de campo, que era obrigação do peão saber.” (Seu Santos Reis, de 63 anos – Uruguaiana/BR).

Bastide (1980, p. 177) também atentou para esse “amor profundo [que] une o gaúcho ao seu cavalo”. Para o sociólogo, o cavalo, como meio de transporte privilegiado no Pampa, permitia usufruir as características geográficas favoráveis desse ambiente (planície), além de exercer importante papel no alargamento do círculo de sociabilidade, pois diminuía as distâncias, aproximando vizinhos.

Com base nesses comentários, extraídos de um universo bem mais extenso, é possível verificar a existência de alguns referenciais que servem para identificar o ethos gaúcho/gaucho – que pode, como vimos, ser associado tanto a homens quanto a mulheres: a ideia de formação a partir do cruzamento de culturas, o comportamento moldado pela relação com o ambiente (aqui a importância da ruralidade), o hábito, comum nos três países, de tomar chimarrão ou mate, o desprendimento em relação a uma determinada nacionalidade (antes de tudo eram da fronteira/da campanha), a convivência com diversas formas de conflitos violentos e a relação com o cavalo. Estas são algumas das características que aparecem com maior constância nos causos e cuentos da fronteira e sua abordagem aqui vem no sentido de considerá-las

168 | Gesto, palavra e memória

como aspectos importantes na análise da cultura da região. Devo lembrar, entretanto, que a cultura da fronteira não se resume à cultura gaúcha/gaucha, ainda que, no contexto investigado (meio rural), esta seja preponderante.

Atualmente percebe-se uma crise no modo de viver e de pensar da região. Dois séculos depois de seu domínio absoluto na região, os herdeiros das antigas sesmarias e dos grandes fazendeiros são compelidos a fracionar suas terras e, com isso, perdem poder econômico e político. Num processo que mais uma vez aproxima as sociedades da fronteira, nos três países irmanados no Pampa, as grandes propriedades, calcadas no latifúndio e em formas tradicionais de manejo com o gado, entram em declínio, e junto com elas um modo de ser, de pensar e de viver na fronteira, como veremos a seguir.

5.5 Transformação da paisagem – e da sociedade –