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Impossibilidade de criação de obrigação propter rem por ato de autonomia privada

No documento Da obrigação propter rem (páginas 119-122)

Capítulo III – Eficácia das obrigações propter rem

1. Impossibilidade de criação de obrigação propter rem por ato de autonomia privada

A autonomia privada, entendida como aspiração a fins práticos e possibilidade de criação dos meios necessários a alcançá-los325, é tema que perpassa as ciências humanas em geral, e o Direito em especial.

Porém, a extensão da autonomia privada é algo extremamente controvertido, havendo tanto quem a julgue algo ínsito ao homem, como quem a entenda uma concessão do direito positivo326. Seja qual for a posição – ideológica, é certo – adotada, a operabilidade da categoria autonomia privada requer o estabelecimento e, mais do que isso, a explicitação de, pelo menos, duas premissas fundamentais que, embora possam parecer truísmos, são úteis para assegurar uniformidade de linguagem: sua eficácia e seu conteúdo.

Quanto à eficácia, a autonomia privada é balizada pelo princípio da relatividade dos efeitos, sem que se ignorem suas vicissitudes, entre as quais se destaca seu abrandamento, entre outros, pelos princípios da função social e boa-fé objetiva. Mas, seja como for, é quase que axiomática a conclusão de que, em se tratando de exercício da liberdade, só há possibilidade de vincular, por ato de autonomia privada, quem a exerceu.

Quanto ao conteúdo, a autonomia privada pode ser encarada como liberdade de preenchimento dos vácuos normativos heterônomos. Assim, onde não houver imposição normativa heterônoma cogente, os agentes serão livres para autorregulamentar seus interesses.

Pode-se, então, perceber que a autonomia privada pode assumir papel criativo ou supletivo, conforme a maior ou a menor presença de normas imperativas

325 Cf., nesse sentido, E. BETTI, Teoria cit. (nota 313.supra), p. 45.

326 Cf., a esse respeito, I. KANT, Kritik der Praktischen Vernunft, trad. port. de V. Rohden, Crítica da

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reguladoras das situações sociais normadas, mas em todo caso exige a existência de espaço para atuação do agente.

Ora, adotado o pressuposto de que a obrigação propter rem tem por função a conservação da coisa que constitua o objeto da situação jurídica que a ensejou, perde sentido a investigação sobre a possibilidade de criação, por ato de autonomia privada, de obrigações assim funcionalizadas, afinal a necessidade de conservação surge de uma situação de fato, e não de um ato criativo.

À autonomia privada, quando se trata de obrigação propter rem, reserva-se apenas a possibilidade de transferir a dívida a sujeito de direito distinto do devedor primitivo, sem que isso, pelas razões já vistas, implique sua irresponsabilidade.

Contudo, a maioria da doutrina, embora concorde com a impossibilidade de instituir-se obrigação propter rem por ato de autonomia privada, adota como fundamento desta impossibilidade serem os direitos reais numerus clausus. O raciocínio é simples: se as obrigações propter rem têm por fonte os direitos reais e estes são estabelecidos por lei em rol fechado, as obrigações propter rem, consequentemente, seguem a mesma lógica.

Quanto a isso, considerações de duas ordens distintas devem ser realizadas. Primeiramente, como se crê ter demonstrado, a premissa maior adotada é falsa, na medida em que a fonte das obrigações propter rem não é necessariamente uma situação jurídica de direito real, mas antes uma situação jurídica de direito das coisas que, mais do que incluir, exige a posse. Assim, há direitos reais que não têm por eficácia o surgimento de obrigações

propter rem a cargo de seu titular, como a hipoteca e a servidão altius non tollendi, ao mesmo passo em que há situações jurídicas pessoais que as podem ensejar, por exemplo, locação e comodato.

Em segundo lugar, há de se levar-se em conta uma tendência de parte da doutrina327 de sustentar a abertura do catálogo de direitos reais por ato de autonomia privada, o que estimulará a discussão sobre a possibilidade de, da mesma forma, criar-se obrigações propter rem.

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L. C. PENTEADO, em defesa do rol fechado dos direitos reais, afirma que:

“Longe de ser trava à atividade econômica, o numerus clausus é garantia da circulação das situações sobre bens sem ônus e pendências que permitam concentração progressiva de capital, tomado em seu sentido econômico. Deferir espaço de preenchimento para a autonomia privada no campo dos direitos das coisas seria permitir que o acordo entre partes viesse a obrigar futuros proprietários à observância de determinado regime, sempre, nas transmissões futuras. O sistema de legalidade, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo a não ser em virtude de lei, impede que o negócio jurídico seja fonte de normas para além das partes, exceto quando em benefício de terceiro, preservada a faculdade de renúncia”328.

Às ponderações do autor não há reparos a fazer, porém a elas pode-se acrescentar argumento de matiz social.

O Direito tem como uma de suas principais funções a de evitar e solucionar conflitos sociais. Tendo em mira que uma das maiores, – senão mesmo a maior – fontes de conflitos sociais é a escassez de bens, o Direito normatiza as hipóteses em que, licitamente, é permitido a alguém apoderar-se de dado bem da vida e, em sequência lógica, atribui a ele interditos aptos à defesa da situação constituída em face de quem quer que queira a ela opor-se.

A principal forma pela qual o Direito legitima a aquisição, aproveitamento exclusivo e conservação de bens da vida é o reconhecimento dos direitos subjetivos reais. Contudo, os direitos subjetivos reais têm como característica a exclusividade, é dizer,

328 Direito das Coisas cit. (nota 14.supra), p. 93. Acerca do que chama de caráter in rem do direito das

coisas, F. ARAÚJO leciona: “não deve ser subestimado, já que é ele que confere às pessoas as condições para desenvolverem recursos e planearem o futuro com alguma segurança, presas que elas estão da noção de poder direto sobre a materialidade das suas posses e dos frutos do seu esforço económico presente e futuro – uma razão que igualmente recobre a tipificação e o numerus clausus, um modo de informação a baixo custo acerca da presença de alcance destes direitos erga omnes”. Cf. A Tragédia dos Baldios e Anti-Baldios – O

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permitem ao seu titular aproveitar, com a exclusão de todos os demais sujeitos de direito, as vantagens que proporciona sobre a coisa que constitui seu objeto.

Por meio da atribuição a alguém de um direito subjetivo real, o Direito opta por excluir – e a exclusão nada tem a ver com relação passiva universal- todas as demais pessoas de, ao mesmo tempo e sobre mesma coisa, obter igual aproveitamento.

Assim, a livre criação de direitos subjetivos reais por ato de autonomia privada, além dos inconvenientes apontados por L. C. PENTEADO e F. ARAÚJO, restringiria

de maneira antissocial o acesso jurídico-econômico às coisas, algo que parece contrário ao programa político-constitucional posto pela Constituição Federal de 1988.

Conclui-se, então, que as obrigações propter rem, tendo a função de conservação da coisa, não podem logicamente ser criadas por ato de autonomia privada. Porém, caso se as entenda com função diversa, tampouco podem ser originadas por negócio jurídico, haja vista a cláusula de reserva legal na criação de direitos subjetivos reais.

No documento Da obrigação propter rem (páginas 119-122)