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5.2 O resultado da crítica histórica

5.2.2 Inês de Roma

De todas as virgens mártires de Roma, nenhuma tem uma honra tão elevada, desde o século quarto, como santa Inês. No antigo calendário Romano das festas dos mártires (Deposito Martyrum), incorporado na coleção de Furius Dionysius Philocalus150, datado de 354 EC e reimpresso muitas vezes151, a sua festa é assinalada em 21 de Janeiro, tendo sido referido em documentos muito antigos o nome da estrada junto da qual existia o seu túmulo (Via Nomentana).

Desde o século quarto os Padres da Igreja e os poetas cristãos cantaram os seus louvores, exaltaram a sua virgindade e o seu heroísmo sob a tortura. É claro, contudo, que a diversidade das primeiras lendas que surgem nos finais do século quarto, não são

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Furius Dionysius Filocalus, copista e caligrafista do Papa Dâmaso I (366-384 EC).

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narrativas fidedignas, pelo menos na descrição pormenorizada do seu martírio. Num único ponto todas as versões estão de acordo: a idade e a juventude da heroína cristã.

Santo Ambrósio atribui-lhe a idade de doze anos152, Santo Agostinho refere treze anos153, o que se harmoniza com as palavras de Prudêncio154. Dâmaso afirma que ela saiu diretamente do colo da mãe ou perceptora155 para o martírio. Não há razão para duvidar de que esta tradição possa ser verdadeira. Na verdade, isto pode explicar a grande reputação da jovem mártir.

Os três mais antigos testemunhos do martírio de santa Inês são: De virginibus, I, 2 de Santo Ambrósio; a inscrição do Papa Dâmaso gravada no mármore, cujo original ainda se pode ver na base das escadas que conduzem ao sepulcro e igreja de santa Inês (Sant’Agnese fuori le muri); e o Peristephanon, Hymn 14. A narrativa retórica de santo Ambrósio, além da idade do martírio, não dá mais nenhuma informação de interesse exceto que a execução foi por decapitação com espada.

O panegírico métrico do Papa Dâmaso diz-nos que imediatamente a seguir à promulgação do édito imperial contra os cristãos, Inês se declarou voluntariamente cristã e sofreu corajosamente o martírio pelo fogo, preocupando-se apenas com a proteção do seu corpo casto do olhar da multidão pagã156.

Prudêncio, com a sua descrição do martírio de Inês, coincide com o que foi dito por santo Ambrósio, acrescentando um novo episódio: o juiz ameaçou-a de a internar numa casa de prostituição, o que veio a acontecer; mas, quando um jovem pôs a vista libidinosa sobre a virgem, ele caiu no chão como morto e ficou cego. É isto que Dâmaso e Ambrósio referem ao dizer que a pureza de Inês estava em perigo. Dizem que apesar de ser vítima dupla do martírio, pela sua modéstia e pela sua religião, ela permaneceu

152 De virginibus, I, 2; P. L., XVI, 200-202: Haec duodecim annorummartyrium fecisse traditur 153 Agnes puella tredecim annorum; Sermo CCLXXIII, 6, P. L., XXXVIII, 1251

154 Peristephanon, Hymn XIV, 10 in Ruinart, Act. Sinc., ed. Cit 486

155 Nutricis gremium súbito liquisse puella; in St. Agneten, 3, ed. Ihn, Damasi epigrammata, Leipzig, 1895, 43, n. 40

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virgem e obteve a coroa do martírio. Prudêncio pode ter copiado a substância deste episódio de uma lenda popular anterior com alguma fiabilidade.

Uma outra fonte de informação anterior aos Atos do Martírio, é um hino, Agnes

beatae virginis, que, provavelmente não saiu da pena de Ambrósio, visto que a narrativa

aproxima-se mais do texto de Dâmaso. Os Atos do Martírio de Inês pertencem a um período posterior e existem três versões, duas gregas e uma latina.

O texto mais antigo é o mais curto dos textos gregos no qual a versão latina foi baseada mas que foi aumentado bastante de uma forma totalmente arbitrária. O texto latino e a versão grega são da primeira metade do século quinto, quando São Máximo, bispo de Turim (ca. 450-470 EC), usou estes textos num sermão. Aqui o episódio do bordel é ainda mais elaborado e confirma que a virgem foi decapitada depois de permanecer intocável pelas chamas.

Não é conhecida a data da perseguição em que a virgem corajosa ganhou a coroa do martírio. Antigamente costumava atribuir-se a sua morte à perseguição de Diocleciano (ca. 304 EC), mas os argumentos mais recentes que têm por base as inscrições de Dâmaso provam que ela ocorreu durante as perseguições do século III a seguir às de Décio.

O corpo da virgem mártir foi colocado num sepulcro na Via Nomentana e, à volta do túmulo cresceu uma grande catacumba que tinha o seu nome. A laje original, que cobria os seus restos mortais, com inscrições de Agne sanctissima, é, provavelmente, a que hoje se encontra preservada no Museu de Nápoles. Durante o reinado de Constantino, através dos esforços de sua filha Constantina, foi construída uma basílica sobre o túmulo de Inês, que mais tarde foi totalmente remodelada pelo Papa Honório (625-638 EC) e ficou como ainda hoje se mantém. Na abside existe ainda o mosaico mostrando a mártir entre as chamas, com uma espada a seus pés.

Na Idade Média santa Inês foi representada com um cordeiro, o símbolo da sua inocência virginal. No dia da sua festa dois cordeiros eram solenemente abençoados e da sua lã era feito o pallium enviado pelo papa aos arcebispos. Esta tradição ainda se mantém hoje.

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A falsa interpretação duma inscrição de Dâmaso fez nascer uma lenda pela qual orientais vieram a Roma levantar as relíquias dos apóstolos Pedro e Paulo. Dâmaso considera que esses orientais eram os discípulos de Cristo que vieram do oriente para trazer o evangelho aos Romanos. A inscrição no túmulo de santa Inês e muitas outras revelam os pormenores da imaginação dos hagiógrafos. A versão da paixão de Dâmaso tem incontestáveis semelhanças com a de santa Eulália. Assim, as lendas começam a ser consideradas um bem sem dono. Pertencem ao “comum dos santos” e a transferência destas lendas entre os santos exerce-se cada vez em maior escala. No século IV circulavam versões discordantes da lenda de Inês que, provavelmente contradiriam a história verdadeira se ela não ficasse infelizmente muda. Referências à jovem santa apareceram posteriormente em muitos escritos de Ambrósio, Dâmaso e Prudêncio.