• Nenhum resultado encontrado

Virgindade “por amor do Reino do Céu”

Voltemos à citação de Mateus 19 para avaliarmos o seu significado:

“Há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino do céu. Quem puder compreender, compreenda”48

.

Estas palavras de Jesus sobre a continência “pelo Reino do Céu” seguem-se à resposta que deu a uma questão colocada pelos fariseus sobre o matrimónio e o divórcio (Mt 19, 3-9).

Contrariamente a um certo maniqueísmo, o matrimónio e a continência, embora correspondam a escolhas e vocações diferentes, não se opõem. Sobretudo, não se pode privilegiar a continência pelo facto de ela pressupor a abstenção do exercício da sexualidade e isso ter sido pretexto de muitos Padres da Igreja, ao longo dos séculos, para desvalorizar a vocação do matrimónio.

“Ainda que a continência pelo Reino do Céu se identifique com a renúncia ao matrimónio, este que dá origem a uma nova família na vida do homem e da mulher, nunca poderíamos ver nela a negação do valor essencial do matrimónio; pelo contrário, a continência serve, indiretamente, para evidenciar o que é eterno e mais profundamente pessoal na vocação esponsal que corresponde à dignidade do dom pessoal, ligada ao significado nupcial do corpo, na sua masculinidade ou feminilidade”49.

João Paulo II revela aqui uma grande firmeza no que toca à maneira correta de abordar as relações entre o matrimónio e a castidade; também aprofunda a compreensão da expressão “estado de perfeição”, correntemente utilizada para designar a condição daquele que segue os conselhos evangélicos e fez o voto de castidade. Procura eliminar qualquer vestígio de maniqueísmo nas interpretações de “superioridade” da continência e do celibato em relação ao estado do matrimónio: “nas palavras de Cristo sobre a

48

Mt 19, 12.

42

continência por amor do Reino do Céu não há nenhuma alusão à inferioridade do matrimónio no que diz respeito ao corpo ou à essência do matrimónio”.

“As palavras de Cristo referidas em Mateus 19, 11-12 (assim como as de Paulo na primeira Carta aos Coríntios, capítulo 7) não apresentam nenhum motivo para sustentar nem a inferioridade do matrimónio nem a superioridade da virgindade e do celibato, pelo facto de estes consistirem, pela sua natureza, numa abstenção da união conjugal do corpo. Sobre este ponto, as palavras de Cristo são absolutamente claras”, diz João Paulo II.

“Se, de acordo com uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição

(status perfectionis), não é por causa da continência em si, mas sim devido a uma vida

fundada nos conselhos evangélicos (pobreza, castidade e obediência), pois ela corresponde ao apelo de Cristo à perfeição50. A perfeição da vida cristã é aferida pela caridade. Por isso, uma pessoa que não viva num instituto religioso mas no mundo, pode alcançar de facto um grau mais elevado de perfeição, que nasce da caridade, quando comparada com uma pessoa que vive num estado de continência institucionalizado. Essa perfeição é possível e está acessível a qualquer homem ou mulher, quer num instituto religioso, quer no mundo”51

.

O que justifica a escolha do caminho da continência? Esta opção não deve ser feita com base numa renúncia ao matrimónio, mas por um valor positivo, o do Reino do Céu, ao qual a pessoa se sente chamada a entregar-se. Para esclarecer o que representa o Reino do Céu, para aqueles que fazem dele o motivo da sua continência voluntária, tem um particular significado a relação esponsal de Cristo com a Igreja. Entre outros textos, é decisiva a Carta de Paulo aos Efésios:

“25

Vós, maridos, amai as vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela. 31Por isso deixará o homem o seu pai e

50

Mt 19, 2121Jesus respondeu: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.»

43

a sua mãe, e se unirá à sua mulher; e serão dois numa só carne. 32Grande é este mistério; digo-o, porém, a respeito de Cristo e da igreja”52.

Ao contrário de posições anteriores de Paulo, é neste texto que vemos concretizado aquilo que Cristo disse aos seus discípulos quando os convidou à continência voluntária por amor do Reino do Céu.

No caso do matrimónio, tal como no da continência, estamos perante um convite ao dom de nós próprios, pelo qual também nos é possível realizar plenamente a nossa vocação de pessoa. De certo modo, mesmo podendo haver vários estados de vida, isto é apenas uma única vocação: a do dom do esponsal de si próprio, seja no matrimónio seja na castidade. “Em definitivo”, diz João Paulo II, “a natureza de um e de outro amor (no matrimónio ou na continência) é esponsal, ou seja expressa-se mediante o dom total de si. Um e outro amor tendem a exprimir o significado esponsal do corpo inscrito desde o princípio na própria estrutura pessoal do homem e da mulher”53

.

“Enquanto sacramento”, diz o Papa, “o matrimónio é contraído mediante a palavra, que é um sinal sacramental em razão do seu conteúdo: ‘Aceito-te para minha esposa – para meu esposo – e prometo ser-te fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amar-te e respeitar-te todos os dias da minha vida’. Todavia esta palavra sacramental não é mais do que um sinal da realização do matrimónio. A realização do casamento depende da sua consumação, ao ponto de, na ausência dessa consumação, o matrimónio não ficar constituído na sua plena realidade. A constatação de que um matrimónio foi juridicamente contraído, mas não foi consumado (ratum – non

consummatum) equivale à constatação de que ele não se constitui plenamente como

matrimónio. Com efeito, as palavras ‘aceito-te para minha esposa – para meu esposo’ referem-se a uma determinada realidade, mas só podem ser realizadas através do ato conjugal”54 . 52 Ef 5, 25.31-32. 53

João Paulo II – Audiência de 14 de Abril de 1982, §4. 54 João Paulo II – Audiência de 5 de Janeiro de 1983, §2.

44

Comparando a cerimónia do matrimónio com o rito da consagração das virgens55 verifica-se uma coincidência cenográfica que já tem origem nos primeiros séculos do cristianismo. Cabe-nos aqui questionar: se o matrimónio só fica consumado através do ato conjugal e não na cerimónia propriamente dita, em que momento fica consumada a consagração de uma virgem a Cristo?

O Pontifical Romano é bem claro na associação que faz entre o matrimónio e a consagração das virgens:

“A santa virgindade reconheceu em Vós o seu autor, E, aspirando à integridade angélica,

Quer consagrar-se ao tálamo e à câmara nupcial D’Aquele que é, ao mesmo tempo,

Esposo da virgindade perpétua, E Filho da perpétua virgindade.

… Recebei, filhas caríssimas, o véu e a aliança, Insígnias da vossa consagração.

Guardai intacta a fidelidade ao vosso Esposo E nunca vos esqueçais

Que fostes consagradas para o serviço de Cristo E do seu Corpo, que é a Igreja.

… Estou desposada com Cristo a quem servem os Anjos, e de cuja beleza se admiram a lua e o sol.”56

Podemos deduzir, em paralelo com o matrimónio, que a consumação dos esponsais sagrados não se verifica com esta cerimónia. Mais tarde, quando a virgem se dedicar às atividades que se propõe realizar, poderá consumar-se (ou não) a sua consagração.

55 Consagração das Virgens - Pontifical Romano, que foi reformado por decreto do Concílio Ecuménico Vaticano II e promulgado por autoridade de S. S. o Papa Paulo VI – Conferência Episcopal Portuguesa.

45

Já foi dito que não basta aceitar os conselhos evangélicos (pobreza, castidade e obediência) para atingir a perfeição, pois a avaliação desta terá sempre por base a caridade. Talvez aqui se possa utilizar a metáfora do evangelho: "O que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos e irmãs, a mim o fizestes" 57. Desta forma, a virgem, quando se dedica a colaborar e apoiar o seu próximo, está a fazer isso mesmo a Cristo. Talvez seja aceitável considerar que é este o momento da consumação da consagração.

Paulo utilizou insistentemente a metáfora matrimonial no sentido cristológico- eclesiológico. Reconhece, no entanto, o exagero da sua loucura:

1

Quisera eu me suportásseis um pouco na minha loucura! Suportai-me, porém, ainda. 2 Porque estou zeloso de vós com zelo de Deus; porque vos tenho

preparado para vos apresentar como uma virgem pura (esposa) a um marido, a saber, a Cristo. 3 Mas temo que, assim como a serpente enganou Eva com a sua

astúcia, assim também sejam de alguma sorte corrompidos os vossos sentidos, e se apartem da simplicidade que há em Cristo”.58

A utilização das metáforas, frequente neste tema, tem que ser bem entendida. Por definição, metáfora59 é a utilização de uma afirmação real com um sentido figurativo.

Por exemplo, "o meu pensamento é um rio subterrâneo" (Fernando Pessoa), significa que o pensamento tem algumas características semelhantes às de um rio subterrâneo. Assim, as relações marido-mulher têm uma certa analogia com as relações Cristo-cristão, a ponto de os cristãos serem apresentados a Cristo como uma virgem ao

57 Mt 25, 40. O ensinamento análogo diz respeito só aos discípulos, chamados pequeninos, enquanto aqui se refere a todos os necessitados: os meus irmãos, os mais pequeninos.

58

II Cor 11, 1-3. Como que influenciado pela falta de senso dos adversários, Paulo também vai correr esse risco. Pois está animado por um ciúme, que é o de Deus em relação ao seu povo. Qual amigo do esposo, preparou os esponsais que unem os coríntios a Cristo e que se transformarão em definitivo enlace, na glória celeste, quando os apresentar como virgem pura. Mas há o perigo da sedução de Satanás, como aconteceu com Eva.

59 Metáfora: é uma palavra ou expressão que produz sentidos figurados por meio de comparações implícitas. Deriva do grego μεταφορά, "transferência, transporte para outro lugar", composto de μετά (meta), "entre" e φέρω (pherō), "carregar". Em seu sentido literal, o verbo grego metaphorein seria traduzido pelo verbo latino transferire.

46

futuro marido: “porque vos tenho preparado para vos apresentar como uma virgem

pura (esposa) a um marido, a saber, a Cristo”. Desta afirmação não se pode concluir

que uma virgem tem qualquer privilégio ou prioridade sobre os casados ou leigos nas relações com Cristo.

Os textos de João Paulo II parecem afastar-se bastante dos Padres da Igreja e do espírito da Carta Encíclica Sacra Virginitas do Papa Pio XII. Nesta encíclica, é defendida a excelência da virgindade sobre o matrimónio: “É sobretudo por esse motivo que se deve afirmar como ensina a Igreja – que a santa virgindade é mais excelente que o matrimónio; isso vem em primeiro lugar de ela ter um fim mais alto pois contribui com a maior eficácia para nos dedicarmos completamente ao divino serviço, enquanto o coração das pessoas casadas sempre estará mais ou menos dividido"60.

No entanto, mais à frente diz-nos: “ Primeiramente, deve-se conceder sem rodeios que, por ser a virgindade mais perfeita que o matrimónio, não se segue que seja necessária para alcançar a perfeição cristã. Pode-se chegar a ser santo mesmo sem fazer voto de castidade, como o provam numerosos santos e santas, que a Igreja honra com culto público, os quais foram fiéis esposos e deram exemplo de excelentes pais ou mães de família; além disso, não raro, encontram-se pessoas casadas que buscam com todo o empenho a perfeição cristã. A castidade é consequência duma escolha livre e prudente”61

.

Fiquemos com João Paulo II: “Com base nas palavras de Cristo, pode-se afirmar, não só que o matrimónio nos ajuda a entender a continência por amor do Reino do Céu, mas também que a própria continência ilumina particularmente o matrimónio considerado no âmbito do mistério da Criação e da Redenção”62.