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A (IN) DEFINIÇÃO DE GÊNERO EM NOVE NOITE, DE BERNARDO CARVALHO

Claudeci da Silva Ribeiro

Este artigo teve origem durante as aulas de Tópicos Especiais em Teoria da Literatura, no Programa de Pós Graduação em Literatura e Interculturalidade da UEPB, no período 2014.1. Diante das discussões realizadas em sala de aula sobre a literatura atual e sobre as formas como o texto literário tem se apresentado nos livros publicados, nas últimas décadas do século XX, e início do XXI, percebe-se uma litera- tura que vem descortinando muitas regras estabelecidas pelo cânone e que compõem um novo modo de escritas e, neste artigo, enfatiza- remos a questão de gênero textual, tendo por base a configuração da prosa brasileira e o papel do autor. Assim, estamos incomodados com a permanência de uma ‘homogeneidade literária’, que engessa a obra literária em predefinidos gêneros, em vez de descortinar a importância dos diversos gêneros que compõem certas narrativas contemporâ- neas, a título de exemplo são as obras de Santiago Nazarian, Ivana Arruda, Marcelino Freire, Bernardo Carvalho e entre outros, sendo a obra deste último o objeto do presente estudo.

Neste artigo, problematizo a discussão sobre o conceito de gênero e sua aplicabilidade às narrativas contemporâneas com base na pers- pectiva dos estudos de teoria Pós-autônomas de Josefina Ludmer, as

Escritas de si, de Diana Klinger, nos estudos da Beatriz Resende sobre a literatura contemporânea entre outros autores. Meu objetivo será analisar a relação entre a literatura e a história na narrativa Nove noites, de Bernardo Carvalho (2006) e, a partir da análise textual de fragmentos do texto, identificar como estes gêneros textuais com- põem a narrativa e de que modo contribuem para a linearidade ou não do texto, além de problematizar as questões sobre a especificidade de uma classificação da obra literária em um único gênero ao qual o texto literário se enquadre.

Diante de um quadro de incertezas sobre a predominância e/ou alternância de gêneros textuais presentes na literatura contempo- rânea, deparamo-nos com a obra Nove Noites, de Bernardo Carvalho, na qual, o escritor toma, como ponto de partida para a escritura do romance, uma notícia lida em um jornal sobre a morte de um antro- pólogo americano, ocorrida 62 anos antes do início do processo de escrita do romance. A narrativa apresenta um misto de gêneros tex- tuais que vão desde as entrevistas feitas pelo escritor com a intenção ou não de desvendar pistas que o levassem a descobrir uma possível causa para o suicídio do personagem Buell Quain, às cartas escritas por ele a amigos e às escritas antes de sua morte, o texto também se apresenta nas formas de memória, testemunho e depoimentos que se justapõem numa variedade de momentos e locais diferentes para compor a ficção.

Ainda que apresentado na contracapa como romance, Nove Noites apresenta-se de forma fragmentada e segundo João Alexandre Barbosa (1983, p.29-30), o livro só é romance na medida em que ficcionaliza uma escritura em constante autodevoração, ou seja, há um constante deslocamento do eixo da fala do narrador-personagem na apresenta- ção do testamento para relatos da experiência do escritor, “ninguém nunca me perguntou. E por isso nunca precisei responder”, fala do narrador (p.11); e, logo em seguida, a fala do escritor: “Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome Buell Quain pela primeira

vez num artigo de jornal...” (p.11), impondo ao romance uma lingua- gem de rupturas entre realidade e representação.

Já para Benedito Nunes (1983), esse desajuste entre realidade e representação se mostra estampado na forma ou na estrutura da obra e ele complementa com a seguinte possibilidade de conceituarmos o romance:

Se considerarmos o romance como obra, seria pela forma da história ou do discurso, pela posição do narrador ou pela do personagem, ou, ainda, pelos desdobramentos internos da narrativa, que o desajuste ou a nova articulação com a rea- lidade podem declarar-se, realidade significando aqui um certo “modelo de realidade” e, portanto, de uma espécie datada de realismo, que as obras modernas transgridem (NUNES, 1983, p.45-46).

Diante do que foi atribuído ao romance, percebemos em Nove Noites uma literatura que se caracteriza pelo fenômeno de hibri- dização, que segundo Nestor García Canclini (2002), é quando a presença de vários gêneros em uma narrativa põe em discussão as formas múltiplas da criação literária contemporânea, isso nos faz questionar se pode haver a supremacia de um único gênero que integre toda uma narrativa, quando percebemos uma multi- plicidade de gêneros que se inter-relacionam na construção das narrativas contemporâneas. Assim, Nove Noites se configura em uma narrativa híbrida, seja pela alternância dos narradores-perso- nagem Manuel Perna e o Jornalista Bernardo Carvalho, o gênero epistolar pelas cartas do antropólogo Buell Quain e pela compilação das cartas de Manuel Perna que formam um testamento, e também pela presença de meios históricos: o suicídio de um antropólogo americano no Brasil em 1939; literários: por se tratar de uma nar- rativa ficcional de tipo textual romance; e jornalísticos, este último percebido em entrevistas feitas pelo escritor Bernardo Carvalho a

pessoas que conheceram Quain, uma delas feita com o professor Luiz Castro Faria de 88 anos.

Fazendo-me de tonto perguntei sobre a aparên- cia física dele, sobre o que no geral eu já sabia, na verdade mais interessado nas impressões que havia deixado e nas reações que sua figura podia ter provocado do que na imagem real: “Não tinha nada de especial. Ele era moço, bastante moço”. Gordo ou magro? “Gordo ele não era, de jeito nenhum. Nem muito magro. Era uma pessoa de aspecto comum, digamos.” Louro ou moreno? “Não era louro claro, não. Era mais para o moreno. Não tinha nenhuma marca especial (CARVALHO, 2006, p.29).

De acordo com Beatriz Resende (2008, p.79), para o autor construir esse romance, “ele apropria-se do enigma em que se transformou a morte de Quain e sai em campo buscando compreender por meio de pesquisa e investigações-chave as razões ou os segredos que cercaram seus últimos momentos”; com isso, nota-se que o trabalho do autor requer não apenas criatividade e imaginação sobre o fato a ser nar- rado, mas, nesse caso, da experiência do escritor Bernardo Carvalho por visitar e conviver por um tempo com uma tribo indígena e pelo contato com pessoas que por algum motivo tiveram alguma ligação com essa história. Tudo isso foi feito pelo escritor para procurar deci- frar os enigmas que cercam essa história e para encontrar possíveis verdades sobre a causa da morte do antropólogo Buell Quain, em 02 de agosto de 1939, entre os índios Krahô no interior do sertão brasi- leiro, para então poder utilizar essa personagem vinda de um mundo real para ficcional, através do processo de criação do escritor, que ao tomar conhecimento de um fato real se apropria dele e o transforma em objeto de sua ficção, alterando a teoria que temos sobre a reali- dade e a nossa percepção sobre ela.