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São vários os desafios daqueles que trabalham com a leitura do texto literário em sala de aula, seja na educação básica ou superior, seja tão somente na qualidade de leitor diletante. O que Alfredo Bosi diz é um apontamento, 40 anos atrás, sobre o que, àquela época, já se indiciava como outra dinâmica a exercer fascínio e estrangeiridade no âmbito do pensamento-produção, mercado, público leitor, casa edi- torial, crítica literária. O “quase” documento, crônica, drama, poesia reitera um aspecto da literatura que se sente movida e motivada a alçar outros voos a partir dos 1800: a hibridização de gêneros, a mis- tura de textos, a con-fusão de linguagens e intenções, interface com outros suportes e, por extensão, a eleição de outras sintaxes, analisa- das no momento em que Alfredo Bosi discute a contemporaneidade do conto, reverberada nos dias de hoje, de forma mais aprofundada, com textos de igual quilate dos que estão sendo expostos neste artigo. Para continuarmos com o ambiente culinário, outro texto de impacto para o estudioso da literatura é Receita para comer o homem amado, de Ivana Arruda Leite, ficção que abre o livro Falo de mulher:

Pegue o homem que te maltrata, estenda-o sobre a tábua de bife e comece a sová-lo pelas costas. Depois pique bem picadinho e jogue na gordura quente. Acrescente os olhos e a cebola. Mexa devagar até tudo ficar dourado. A língua, cortada em minúsculos pedaços, deve ser colo- cada em seguida, assim como as mãos, os pés e o cheiro-verde. Quando o refogado exalar o odor dos que ardem no inferno, jogue água fervente até amolecer o coração. Empane o pinto no ovo e na farinha de rosca e sirva como aperitivo. Devore tudo com talher de prata, limpe a boca com guardanapo de linho e arrote com vontade, pra que isso não se repita nunca mais (LEITE, 2002, p.13).

Este texto já foi objeto de estudo por alguns pesquisadores da área, inclusive por mim mesmo, em publicação resultante do meu pós-douto- rado. Sempre que o texto vem à tona, aparece classificado como conto, até porque, conforme o raciocínio usado aqui desde o início da discus- são, a extensão textual, a fala da autora e os estudos feitos sobre a obra assim realizam e legitimam este gesto semântico de poder (esta expres- são é de Flávio René Kothe, lá em O cânone colonial, 1997). Bem, Fábio Lucas, em texto sobre o conto (1983), deixa à mostra, dentro da tradição literária do Ocidente nas épocas que antecedem a sua fala, apenas dois tipos de contos que conseguiram com mais desenvoltura firmar-se no contexto brasileiro, são os contos de enredo e os contos de atmosfera.

Do primeiro, afirma tratar-se do mais fiel modelo de ficção curta, porque os contistas parecem seguir à risca, salvaguardando-se os esti- los de época e individuais, é evidente, a “cartilha” em que o conto nasce, desenvolve-se e vai para as vistas e gosto do leitor. É aquela narrativa em que uma ação se desenvolve rapidamente como em um flagra, relacionada a um número exíguo de personagens que atuam no tempo e no espaço narrativos; geralmente exibe as características tradicionais como uma apresentação, um conflito, um clímax e um desfecho baseado no efeito “piada”: lê-se o conto para se saber o final, ou seja, toda a leitura da narrativa é induzida para se chegar ao desfe- cho, momento em que os “segredos” da narrativa ou os não-ditos são revelados rapidamente.

Do segundo, então, diz tratar-se daquele tipo de narrativa curta cuja linguagem e modo de narrar são voltados não para uma ação envolvendo personagens no tempo e no espaço, mas um texto no qual se projeta uma reflexão sobre o si mesmo da voz que narra, encontrando espaço de viabilização existencial na dinâmica interior ou psíquica deste persona- gem ou narrador que fala. O texto, então, ao invés de exibir conflitos ou pontos de tensão entre interlocutores ficcionais, é construído na base de uma linguagem implodida, restrita ao universo psicológico, exibindo tensões entre o sujeito e o seu modo de ser e de estar no mundo que habita, nas relações entre ele e os outros personagens, nem sempre mencionados ou fazendo parte da composição textual.

Por este ângulo interpretativo, podemos afirmar certeiramente que Receita para comer o homem amado, de Ivana Arruda Leite, não pertence ao gênero conto por nenhuma das acepções dadas por Fábio Lucas. O texto não passa de uma receita. Isto é óbvio, se os traços que definem o gênero são trazidos à tona pelo olhar do leitor. Há o nome do prato (comer o homem amado), o indicador do gênero textual no próprio título (receita), a mistura das duas partes obrigatórias de uma receita: 1) a listagem dos ingredientes (homem picado, cebola, cheiro verde, água fervente, farinha de rosca, gordura) e 2) o modo de preparo (sovar o homem, picar o corpo, depois acrescentar os olhos e a cebola; mexer devagar até dourar para, depois, misturar a língua cortada em peda- ços...); se o leitor ainda quiser ver traços do gênero receita no texto leitiano, ainda há, ao fim do mesmo, 3) o modo de servir (sugestão de servir o pinto empanado como aperitivo e o prato principal com talher de prata, guardanapo de linho acompanhado de arroto).

Apesar da seleção lexical con-fundir o gênero receita com a ironia própria da linguagem metaforizada; da inverossimilhança quanto à feitura do prato principal, se fosse lido numa chave literal, visto que nem mesmo em ato canibalesco o preparo do prato obedeceria a um requintado esquema; da brevidade do texto, típico daquele que está assentado em pressupostos culinários, o texto não se compromete e não se aproxima, conceitualmente, nem do conto de enredo nem do conto de atmosfera. Por não contar uma história envolvendo per- sonagens no tempo e espaço, logo, não é narrativa, distancia-se da primeira acepção; por não demonstrar uma acurada reflexão da voz que fala sobre si mesma, seu modo de existir e de sentir os conflitos e tensões da vida em relação aos outros culturais ou a fatores que pos- sam funcionar como “antagonistas” da voz que fala, distancia-se da segunda acepção. Na verdade, como afirma o crítico:

O conto de atmosfera [é] mais adequado ao “herói da consciência” do que à personagem de ação. A situação dramática requer, quase sem- pre, ambientes íntimos, espaços circunscritos

– uma alcova, um terraço, um restaurante, um vagão de trem-de-ferro, por exemplo –, dentro dos quais se pode penetrar na intimidade psi- cológica da personagem. Tal como prescinde de exórdios, circunlóquios, etapas preparatórias da ação narrativa, contenta-se com a exigüidade de palavras, embora nele, frequentemente, prolife- rem observações lírico-filosóficas, jogos verbais e sutilezas psicológicas (LUCAS, 1983, p.111).

Como se deduz, o texto de Ivana Arruda Leite não atende aos requisitos clássicos do gênero reivindicado: o conto. Não conta uma história, não há, logo, um narrador nem personagens que vivem uma ação que se desenvolve no tempo-espaço. O ato de contar-narrar é um aspecto impensável no texto dado. O que temos, pode-se dizer, é um texto em que a voz que fala se apropria do gênero receita para construir seu “ponto de vista” (sem ser foco narrativo) acerca de cer- tos homens que desenvolveram o (mal) hábito de “maltratar” as suas mulheres. Trata-se de uma voz de dicção feminina (não uma narra- dora) que se dirige a interlocutoras, endereçando-se a um tu: os verbos usados pela voz que fala em relação ao tu interlocutor apresentam-se numa espécie de modo imperativo, duplamente significando a pessoa a quem se endereça o discurso e também dando uma espécie de mote para conselho, ordem, desejo: pegue, estenda, comece, pique, jogue, acrescente, mexa, empane, sirva, devore, limpe, arrote.

Mesmo que o leitor se confunda na leitura apressada e afirme tra- tar-se de um conto de atmosfera, lembro o fato de os críticos aqui trazidos à tona reiteradamente tomarem como elemento básico e fun- damental para se definir um conto quanto à perspectiva de gênero literário o fato de se tratar de um texto em que se conta algo, em que há uma voz que narra uma ação ou uma experiência da e na cons- ciência de um personagem ou do próprio sujeito que (se) narra. O texto de Ivana Arruda Leite, por assim dizer, escorrega nesta defini- ção, não se enquadrando nem como conto de enredo nem como conto de atmosfera. Não é receita, pode ser dito de imediato, pois o livro é

comercializado, foi escrito, estudado e está acomodado dentro de uma logística que o tem como ficção. A que gênero, afinal, pertenceria este texto? Importa saber o grupo de pertença do gênero literário-textual ou vale tão somente a visada interpretativa que os leitores podem dele ter? Trata-se de um texto que não quer passar pelo crivo do con- ceito de literatura (in)conscientemente reivindicado pela autora ou pela concepção de conto de ficção com a qual estamos dialogando? Esqueceu-se de dizer que há contos em que não se conta nada, apenas adiantam situações fictícias? Trate o leitor de também tirar suas pró- prias conclusões.