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É evidente que toda essa discussão em torno dos hibridismos tex- tuais já vem sendo pensada por críticos, leitores, teóricos. Sobretudo desde quando as pessoas perceberam que os objetos mudam, sofrem alterações, adquirem outras envergaduras a partir dos investimen- tos e intenções autorais. Centremo-nos no texto abaixo e vejamos para que direção discursiva ele nos aponta. O texto é um dos 101 que Cristiane Lisbôa escreve em Papel manteiga para embrulhar segredos – cartas culinárias.

BisAna

Os papéis estão cada vez mais raros. Penso em usar papel-manteiga nas próximas cartas, mas temo que Senhorita Virgínia dê por falta. Ela estranha as longas cartas, diz que nunca viu uma bisneta tão amorosa. Mal sabe do nosso segredo. Se sou- besse, seria capaz de jogar-me no rio. Só para que eu bata a cabeça. Ela insiste em odiar os livros de receitas. Imagina quem os compra. Será que fazem exatamente igual ao que a receita manda? Será que as despensas das casas têm sempre

todos os ingredientes? Será que nunca hesita- ram sobre medidas estranhas? Ela pergunta e eu não respondo. Penso em todos os meus livros de culinária comprados às escondidas, e bem tran- cados no fundo falso do armário. Comecei lendo como se fossem ficção, e acabei em uma paixão proibida, alimentada pelo fogo e os aromas. Estas idéias pegam as rédeas do meu subconsciente e ando tendo sonhos esquisitos. Noite dessas jantei em alma com um estranho. Tinha testa larga, cor de cabaça e um sorriso branco. Comprava minha pele à lua e às estrelas, queimava meu rosto quando chegava bem perto. Havia murmúrios em volta como se fosse uma música cantada repetida- mente. O estranho pegava com as mãos bocados de comida, que estavam em pratos pequenos à nossa frente. Esfregava meus pulsos para sentir os odores do meu corpo e, quando levou o licor aos meus lábios, acordei.

Na hora do almoço, usei rum no frango. E tive cer- teza de que sonhara com um pirata.

Com suspiros, Antônia

FRANGO PIRATA (COM RUM E NOZES)

2 peitos de frango desossados 1/2 xícara de nozes picadas

1 colher de farinha de trigo bem cheia meio copo de rum

um punhadinho de tomilho 1 colher de queijo ralado bem cheia 2 dentes de alho esmigalhados raspas de limão

sal e pimenta

Corte o frango, misture o alho, o rum, o tomilho e as raspas de limão e coloque em um recipiente com tampa, ou em um saco plástico. Deixe marinar por duas horas. Em uma tigela, misture a farinha

com as nozes e o queijo ralado. Passe o frango na mistura e asse em forno quente por 25 minutos, ou até ficar assado, porém macio. Dá tempo de colher flores no jardim para enfeitar a mesa.

Lembrança de Virgínia

Não esqueça de tomar um copo inteiro de rum enquanto cozinha. Pode dançar se quiser (LISBÔA, 2004, p.24-25).

Diante do texto, e de todos os outros textos que compõem a obra citada, um leitor, avisado ou não, poderia colocar-se diante de outro embate: o que compraria ou leria? A capa, conforme visualizada nas ima- gens 2 e 3, pelos signos dispostos e com os quais o leitor primeiramente entra em contato, sejam eles imagéticos ou verbais, indica tratar-se de um livro de receitas: pela xícara com a colherinha, pelo título “Papel manteiga”, típico de situação de cozinha e pelo termo “culinárias”.

Imagem 2: Foto da capa do livro Papel manteiga para embrulhar segredos – cartas culinárias. Capa e projeto gráfico de Mariana Newlands.

Imagem 3: Foto da capa aberta do livro Papel manteiga para embrulhar segre- dos – cartas culinárias. Capa e projeto gráfico de Mariana Newlands.

(Disponível em http://www.memoriavisual.com.br)

É verdade que em um livro de cozinha ou receita, “cartas culiná- rias” não sugere ou não remete o leitor para este contexto (tratar-se-ia, então, de um texto relacionado ao gênero epistolar pelo uso do termo cartas?), bem como “para embrulhar segredos” entra em disforia, do ponto de vista da construção de sentido, se fôssemos querer alocar, por estes elementos pré-textuais, o livro em um gênero específico de texto: embora o contexto culinário ou de cozinha envolva segredos de receitas, o verbo “embrulhar” só funcionaria, assim, como metáfora para esconder, guardar; logo, um aspecto semântico não objetivo, não claro, não direto, contrariando a clareza e precisão que uma receita ou toda a atividade envolvendo o preparo de pratos requerem.

Novamente, a imagem da ficha catalográfica torna-se importante balizador do gênero textual a que um leitor poderia recorrer para diri- mir sua dúvida, para confirmar o que imaginava no momento em que tomava o livro em mãos.

Imagem 4 - Foto da ficha catalográfica do livro

Papel manteiga para embrulhar segredos: cartas culinárias

Fonte: Antonio de Pádua Dias da Silva.

Gastronomia-ficção é a primeira entrada catalográfica e semântica a que o leitor tem acesso. Isso é evidente porque, no mesmo contexto da ficha, somos informados que o livro é de autoria de Cristiane Lisbôa e as receitas são assinadas pela gastrônoma Tatiana Damberg. Mas como seria gastronomia-ficção, um novo gênero, um texto híbrido? Híbrido de quê? Poemas e receitas? Está dito tratar-se de ficção brasi- leira, terceira entrada da catalogação. Pela brevidade dos escritos, pela autonomia dos textos e receitas, podemos falar em contos, uma vez que não há uma história que envolve um herói, narrada por uma voz que exibe as ações no tempo e no espaço? O termo “cartas” remete o lei- tor para o gênero epistolar: trata-se de um romance epistolar? Mas os textos, conforme o recortado e transcrito acima (BisAna), mostram-se autônomos, interdependentes, salvo, depois de lidos, a relação epis- tolar em que um remetente endereça cartas ao seu interlocutor, sua bisavó!

Estamos diante de um livro de receitas, vez que uma gastrônoma assinou as receitas? Estamos diante de uma prosa poética? Se pensar- mos que ao final de cada modo de preparo das receitas a voz que fala no texto emite opinião, sintéticos pensamentos e reflexões, suges- tões românticas sobre o modo de esperar e servir o prato-comida em preparo: “Dá tempo de colher flores no jardim para enfeitar a mesa”. Não se trata de um “toque poético”, mas de um estranhamento da expectativa que a voz falante vinha manifestando ao leitor: o modo de preparo, em sua textualidade, é quebrado com a intromissão, o ruído (afirmativo) que a sugestão da voz falante dá ao leitor. Para além dessa questão, ainda há, ao fim de cada receita, uma parte fixa do texto: Lembrança de Virgínia. No caso específico do texto em tela, lê-se: “Não esqueça de tomar um copo inteiro de rum enquanto cozinha. Pode dançar se quiser”. Como vemos, um texto de difícil classificação pelo uso frequente de um conceito preso a toda uma tradição literária que engessou os gêneros em formas literárias, em protótipos hoje incon- sistentes, diante de toda uma produção e estilos que se distanciam dos já de domínio público.

Pode ser que as escritas literárias de hoje não queiram ser induzi- das a se fixarem em gêneros, catalogadas em formas fixas, vez que é próprio da literatura o estranhamento da(s) linguagem(ens) para sur- tir os efeitos de sentido de cada texto em particular.

Esses questionamentos estão longe das discussões “professorais” talvez porque o acesso aos textos críticos não tenha sido oferecido a professores e professoras em formação, acumulando-se, desta forma, um déficit de conhecimento crítico quanto aos modos de ler e inter- pretar os textos literários, sobretudo nos contextos de salas de aula da educação básica. Digo isto porque Alfredo Bosi, já em 1974, assim se coloca frente aos textos da contística brasileira que ele apresenta em O conto brasileiro contemporâneo:

O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea. Posto entre as exigências da narração realista, os apelos da fantasia e as

seduções do jogo verbal, ele tem assumido formas de surpreendente variedade. Ora é o quase-do- cumento folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês, ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa voltada às festas da linguagem (BOSI, 1974, p.7, grifo nosso).

O posicionamento do crítico frente ao conto brasileiro que ele chama, no momento da enunciação, de contemporâneo soa bas- tante diverso, convergindo para os modos de produzir literatura atualmente, segundo o pensamento de Beatriz Resende (2008), especificamente quanto ao fato dos ficcionistas tomarem a cidade, a urbanidade temática que projeta seus sujeitos e modos de vida a servirem como modelos nas vidas literárias. Também como já apontou Josefina Ludmer (2010), ao questionar uma tradição crítica literária com os novos arranjos textuais, linguísticos e imagéticos que povoam as escritas ditas literárias. Estas, diante de conceitos rígidos como os de conto e romance, motes desta discussão, minimi- zam o literário, estabelecendo outra visada sobre as produções que nem sempre querem ser literárias, mas tão somente escritas, reivin- dicam o direito à existência como ficção, independentemente do modo particular ou estilístico de cada sujeito que assume a função autor (perspectiva de Michel Foucault, 1997). Depois de publicado, o livro de Cristiane Lisbôa foi classificado também como romance10

por Marina Oliveira.

10 Dado publicado em http://www.saboremmovimento.com.br/livro-papel-man- teiga-para-embrulhar-segredos, capturado em 11 de junho de 2014, às 10:46h.