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3.5 SINTHOMA E LALÍNGUA

3.5.1 Incidências do Conceito de Sinthoma

A concepção de sinthoma, promovida na época do uso que Lacan faz dos ensinamentos que a escrita de Joyce lhe possibilita, tem incidências clínicas e práticas para a doutrina da psicanálise. Para Jacques-Allan Miller, o conceito de sinthoma é a chave do último ensino de Lacan. Mas, com uma ressalva: esse conceito não anula as outras leituras da clínica lacaniana clássica – que reformulam a clínica freudiana em termos linguísticos –, mas, antes, acrescenta-se a elas. Assim, “sinthoma é um termo que se acrescenta, supera clivagens e multiplicidades de conceitos precedentes, e adquire seu sentido a partir daquilo que supera” (MILLER, 2011, p. 70). A incidência deste termo vem apagar as fronteiras entre

sintoma e fantasia, neurose e psicose, visto que essas clivagens só seriam operatórias no nível da articulação significante e, quando estamos no nível do sinthoma, estamos no Um sozinho, sem articulação.

A orientação dada pelo sinthoma nos coloca frente a uma questão irremediável: não estamos no nível do particular da clínica, estamos no singular em seu absoluto28. Quando Lacan vem nos dizer que Joyce encarnou o sinthoma, isso é

o mesmo que dizer que ele encarnou o singular; “ele fez vê algo que a clínica dissimulava”, isto é, “o modo de gozar absolutamente, singular e como tal irredutível”, isso que “não pode ser reduzido mais além”. (MILLER, 2011, p. 85, 86).

Assim, podemos dizer que o conceito de sinthoma, inventado por Lacan para um desabonado do inconsciente, comporta, como nos orienta Miller, um ensinamento para aqueles que não o são e que, através da experiência analítica, torna-se um “assinante do inconsciente”. Em cada um há algo que é, absolutamente, do singular de lalíngua, que vem demarcar um modo de gozo irredutível. Porém, essa singularidade está recoberta. Assim, na perspectiva do sinthoma,

[...] trata-se de reconduzir a trama do destino do sujeito da estrutura aos elementos primordiais, fora de articulação, quer dizer fora do sentido e, por ser absolutamente, separados, podemos dizê-los absolutos. Trata-se de reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente. (MILLER, 2011, p 82)

Podemos dizer que, com esse termo pivô de seu último ensino, o sinthoma, Lacan buscava outro modo de o analista operar diferentemente da interpretação entendida classicamente, pois, nessa nova perspectiva, como afirma Miller, “a interpretação é uma operação de desarticulação”, pois “visa [sic] desfazer a articulação do destino para mirar o fora-do-sentido”. (MILLER, 2011, p. 82). Ou, se quisermos ser mais preciso, a interpretação analítica visa à lalíngua, isto é, os equívocos que marcam o regime de gozo de um sujeito. Nesse sentido, é preciso seguir a recomendação de Miller: “É o incurável inscrito na porta de entrada: [..]. Olhe para o que não muda!” (MILLER, 2011, p. 87).

Assim podemos dizer que a orientação dada pelo sinthoma faz ressoar uma nova prática da psicanálise mais em consonância com o que é de lalíngua. Com

28 Ideia trazida por Mille

r que se utiliza da lógica e da sua teoria do juízo, onde “a quantidade dos juízos distribui-se por três registros: o singular, o particular e o universal” (MILLER, 2011, p. 90). A clínica se faz no nível do particular; pois recorre à estrutura para acrescentar à classificação uma articulação entre fenômeno e causa.

Miller, destacamos alguns pontos que nos parecem fundamentais se seguirmos a orientação dada pelo sinthoma. Em primeiro lugar, quando pensamos em termos de sinthoma, não estamos ao nível da dedução do inconsciente a partir de um saber, nível “onde isso fala”. Em contraposição ao inconsciente, o singular do sinthoma é o que não fala a ninguém: “isso goza ali onde isso não fala”. Em segundo lugar, o sinthoma é um acontecimento de corpo substancial cuja consistência é de gozo. Em terceiro lugar, o ponto de vista do sinthoma consiste em pensar o inconsciente a partir do gozo. (MILLER, 2011, p. 97).

Miller é contundente ao afirmar que “o próprio inconsciente é uma defesa”, uma defesa “contra o gozo em seu status mais profundo, isto é, seu status fora de sentido” (MILLER, 2011, p. 94). Essa torção traz consequências para a prática da psicanálise, sobretudo para a interpretação, pois, como afirma Miller, do ponto de vista do sinthoma, a interpretação “não é apenas a decifração de um saber, é fazer ver, elucidar a natureza de defesa do inconsciente”. (MILLER, 2011, p. 97).

A seguir, será abordada, de forma mais detida, uma das incidências do ponto de vista do sinthoma que permite, conforme dito, pensar o inconsciente a partir do gozo. Vimos, anteriormente, que, com o seu objeto a, Lacan pensa o gozo a partir da cadeia significante do inconsciente. Agora, com o sinthoma, seria possível dar, ao inconsciente, uma nova formulação?

3.5.1.1 Inconsciente Real

Interessa-nos avançar, nesse tópico, sobre o novo estatuto do inconsciente quando é o gozo que está no comando. Tomaremos, como referência, a cisão de sentido proposta por Miller (2011) entre inconsciente real e inconsciente transferencial, o que não está formulado em Lacan, mas apenas indicado. Essa orientação que Miller deduz, do último escrito de Lacan, Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, que é um texto onde Lacan faz um retorno à teoria do passe, às questões sobre o final de análise. Tomando como referência o que Lacan solta nos últimos momentos, Miller29 assinala que a “fórmula levitadora” de Lacan “o

29 MILLER, Jacques-Alain. Curso de Orientação Lacaniana. O Ser e o Um. Departamento de

inconsciente é estruturado como uma linguagem”, só pode ser tomada no sentido lacaniano sob a condição de se apreender que o inconsciente é real.

Certamente que a formulação do inconsciente transferencial e a do inconsciente real, não estão desvinculadas, respectivamente, da concepção do sintoma como formação do inconsciente e do sinthoma tal como pensado a partir de Joyce. Assim, podemos dizer que a primeira acepção do sintoma está em consonância com a ideia de inconsciente transferencial. Nessa perspectiva, o sintoma comporta uma mensagem desconhecida para o sujeito que dele padece; vem do recalcado e, como tal, está repleto de desejo, de modo a promover revelações pela decifração. É, pois, um terreno fértil para a interpretação do analista. Quando se faz referência ao inconsciente real o que se apresenta é o ponto de vista do sinthoma e, por assim, dizer, ficamos diante do “desabonamento” do inconsciente, aquém da articulação significante, nos recônditos de lalíngua, por assim dizer.

Sabemos que, desde Freud, o inconsciente tem o estatuto de uma hipótese que se atualiza na transferência, ou ainda mais, que se constrói na experiência de análise, e com o qual o analista tem a ver. O analista intérprete se aloja na lógica da cifração-decifração do inconsciente. Como afirma Miller, “esta é a maravilha com que Freud soube nos deslumbrar: a partir de uma palavra salva do naufrágio de um sonho tem-se uma fábula que se desdobra e deslumbra”. (MILLER, 2011, p. 119). Seguindo, assim, os rastros freudianos, Lacan concebe o inconsciente como um saber, uma articulação (S1 – S2) e, como tal, situado no registro do simbólico.

Porém, no final do ensino de Lacan, “a definição de inconsciente passa por uma virada: o inconsciente é real, quer dizer, o inconsciente não é simbólico, ou ainda, quando ele se torna simbólico, torna-se outro”. É a operação analítica que promove uma mudança de estatuto do inconsciente: “o inconsciente passar do real para o simbólico, da verdade para a mentira”. No final da experiência analítica, há a passagem do inconsciente transferencial, que cifra e não cessa de decifrar, ao indecifrável do inconsciente real. (MILLER, 2011, p. 120).

Nesta perspectiva, podemos dizer que o inconsciente real é aquele que não se deixa interpretar, é, antes, uma interrupção da cifração e da decifração, ruptura de conexão, S1 // S2, que Lacan expressou com o matema S(Ⱥ), com o qual quer

equipe de tradução para o português dos Cursos de Jacques-Alain Miller, da Escola Brasileira de Psicanálise.

dizer que não há Outro. Esse inconsciente, “delineado em filigrana”, foi vislumbrado por Miller no texto de Lacan Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, conforme já o dissemos, do qual destacamos a seguinte passagem:

Quando o esp de um laps – ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso – já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só assim temos certeza de estar no inconsciente. O que se sabe consigo.

Mas basta prestar atenção para que se saia disso. Não há amizade que esse inconsciente suporte.

Restaria o fato de eu dizer uma verdade. Não é o caso: eu erro. Não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta.

O que não impede que se corra atrás dela. [...]

Notemos que a psicanálise, desde que ex-siste mudou. Inventada por um solitário, teorizador incontestável do inconsciente (que só é o que se crê – digo: o inconsciente, seja, o real – caso se acredite em mim), ela é agora praticada aos pares. Sejamos exatos, o solitário deu o exemplo. Não sem abuso quanto a seus discípulos (pois discípulos eles só eram pelo fato de ele não ter sabido o que fazia).

O que traduz a idéia que Freud fazia dela: peste, mas anódina ali aonde ele supunha levá-la; o público se vira.

Agora, ou seja, no crepúsculo, introduzo minha pitada de sal: feita de histoeria, o que equivale a dizer de histeria [...]. (LACAN, 2003 [1976], p. 567) (Grifos nossos).

Nesta citação, Lacan revela algo até então não formulado nesses termos: só há a certeza de se estar no inconsciente quando o espaço de um lapso não tem impacto de sentido ou de interpretação. Isso nos parece muito tênue, pois, como diz Lacan, “basta prestar atenção para que se saia disso”. Esse inconsciente, ainda dirá Lacan, é “o que se sabe consigo”. Tudo isso parece ser bem diferente do que dissemos anteriormente no tocante ao inconsciente herdado de Freud, esse que Miller vem nomear de inconsciente transferencial, visando a demarcar, com isso, que o inconsciente opera a conexão transferencial ligada ao par S1 – S2.

Miller observa que Lacan “aloja o inconsciente no Outro e, ao contrário, para fazer simetria, ele aloja o sinthoma no Um”. Com isso, Miller faz referência à oposição que há entre sinthoma e inconsciente, assinalando que é só “num segundo tempo pelo menos em um tempo lógico, que o inconsciente vem se atar a esse sinthoma pertencente ao Um” (MILLER, 2009 137). Com o seu L’une-bèvue, termo que faz assonância com Unbewusst de Freud, e que está expresso no título do Seminário 24, Lacan se desloca do Outro como “tesouro dos significantes” para o registro do Um, reduto de lalíngua. Assim, a orientação dada no derradeiro ensino de Lacan repousa na introdução do Um em sua anterioridade ao Outro.

Pelo exposto, podemos dizer que o derradeiro ensino de Lacan faz vacilar os semblantes da psicanálise, como aqueles de 1953, cujos meios são os da fala, em um campo, o da linguagem, concebido como aquilo que estrutura o inconsciente. Tudo que era louvado, enaltecido, bascula para o registro da verdade mentirosa, como vem frisar Miller (2009, p.123). Tratamos, agora, da construção de um saber que guarda proximidade com a estrutura da verdade enquanto ficção, tendo nesse sentido, o estatuto de elucubração. Se, como visto na abordagem da noção de lalíngua, “a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua”, nesse último momento, Lacan estende a questão e diz que o saber é uma elucubração. O saber é uma elucubração posta à prova para resolver a opacidade do gozo, que como visto anteriormente, é o que está fora do sentido. Essa questão será melhor apreciada no terceiro capítulo, o qual é dedicado a alguns fragmentos de testemunho de passe.