• Nenhum resultado encontrado

4.1 O PASSE NA ESCOLA DE LACAN

4.1.2 Passe e Final de Análise

Bernardino Horne, no texto, A doutrina do passe, nos diz que “o passe, entre as várias formas de contribuição e sentido que pode oferecer, poderia proporcionar a uma Escola elementos para se fazer a teoria da clínica” (2005, p. 44). Nesse sentido, propõe que o passe sirva, efetivamente, para que se trabalhe a teoria da clínica dos finais de análise.

A doutrina do passe vem responder à questão de como se podem conceber os destinos de uma análise. Para ele, a análise seria uma experiência que estaria sob o regime de ser terminável e interminável, ou seja, de tempos em tempos, seria preciso a ela retornar, pois há obstáculos que são intransponíveis. Sabemos que, para Freud, trata-se do “rochedo da castração”, o qual se apresenta de forma diferenciada para o homem e para a mulher. Lacan propõe ir mais além de Freud, ao conceber que uma análise pode, de fato, chegar ao seu término; talvez tenha sido o que o animou para inventar um dispositivo, o passe, que pudesse demonstrar esta possibilidade.

Durante o seu ensino, Lacan vai mudando sua concepção de final de análise a partir da própria teoria da clínica retirada dos depoimentos de passe. Jacques Alain-Miller (2010) observa que, na doutrina clássica do passe, o desejo do analista aparece como pivô de uma análise e de seu final. A solução de um x, do x do desejo indestrutível, como observa Miller, não é uma solução de gozo. É a solução do que no gozo faz sentido. Assim, o analisante, ao termo da análise, é aquele que sabe o que causa o seu desejo:

Ele sabe a falta na qual se enraíza seu desejo e sabe o mais-de-gozar que vem obturar essa falta. [...]. À medida que desaparece o sujeito que ignora seu desejo, emerge o sujeito sabedor. É esse saber que o passe tenta extrair do sujeito. Tenta obrigá-lo – com seu consentimento a partilhá-lo com uma comunidade reunida em uma Escola e também com o público. E Lacan indica que ele deseja sua publicação. (MILLER, 2010, p. 34).

Assim, seguindo Miller, tem-se que o sujeito do início da experiência é um saber suposto, ao passo em que o sujeito do final é um saber efetivo. E é isso que ele consente e deseja partilhar com a comunidade analítica. Vemos que, desde a sua Proposição, Lacan indica esta transmutação do saber no final da experiência: “o ser do desejo une ao ser do saber para renascer, no que eles se atam, numa tira feita da borda única em que se inscreve uma única falta” (LACAN, 2003 [1967], p. 260).

Miller propõe que o último escrito de Lacan, Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, seja considerado um retorno ao passe em uma perspectiva completamente diferente. O conceito de saber é posto em questão e ganha, assim, outro estatuto, o de elucubração. No lugar de um saber com formação consistente, Lacan passa a falar apenas de verdade, mas “trata-se da verdade com as cores da mentira” (MILLER, 2010, p. 35).

Em seu Prefácio, Lacan recupera a proposição de que o analista só se autoriza de si mesmo, reescrevendo-a – “o analista só se historisteriza6 [hystorise]

por si mesmo” –, e insiste com a questão: “do que pode levar alguém, sobretudo depois de uma análise, a se historisterizar [hystoriser] de si mesmo” (LACAN, 2003 [1976], p. 568). Se ele retoma, quase uma década depois, uma proposição feita aos analistas em 67, o faz dando uma nova definição do passe e do testemunho:

Donde eu haver designado por passe essa verificação da historisterização da análise, abstendo-me de impor esse passe a todos, porque não há todos, porque não há todos no caso, mas esparsos disparatados. Deixo-o à disposição daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira

possível sobre a verdade mentirosa (LACAN, 2003 [1976], p. 569) [grifos

nossos]

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o testemunho introduz uma “pitada de sal: feita de histoeiria [hystoire]” (LACAN, 2003, p.567). Assim, através de uma histoeiria que é contada, a verdade se faz mentirosa para estreitar sua distância do real. Pode-se, então, dizer que não é sem razão que Lacan usa o neologismo histoeiria, para qualificar a experiência analítica, e histoerização, para dizer do que ocorre no passe.

Lacan estabelece, assim, uma aliança da verdade com a mentira, forjando a expressão “verdade mentirosa”, para dizer disso que é testemunhado no dispositivo

6 Histoeiria (hystoire) e seus derivados usados neste texto, são neologismos cunhados por Lacan,

do passe. O que o passe ensina, nesse sentido, é que a prática da psicanálise deve estar referida a um novo uso do significante que não tenha compromisso com o sentido, mas com um efeito de sentido que alcançaria o real, promovendo, pois, um efeito de furo.

Podemos dizer, então, que há uma distância prodigiosa entre a doutrina da Proposição de 67 e esta do Prefácio de 1976, a qual é expressa de forma elucidativa por Miller:

O passante da doutrina clássica do passe é suposto dar testemunho de um saber, ao passo que aquele trazido por Lacan no final de seu ensino – no momento em que ele está preparando, elucubrando o conceito de sinthoma, isto é, o momento de se defrontar sem medição com o estatuto do gozo -, esse passante só pode dar testemunho de uma verdade mentirosa. (MILLER, 2010, p. 35).

Como assinala Miller, nessa citação, o passe trazido por Lacan, em seu momento final, refere-se à teorização do conceito de sinthoma, o qual traz, em seu cerne, o indizível do gozo, tendo o passante que recorrer ao universo da ficção, ou como já dizia Lacan, à histoeiria. Nesse sentido, Miller irá lembrar que não há como não recorrer a “semblantização da experiência”.

Quando a orientação é dada pelo sinthoma, que traduzimos como o mais singular de cada um há, nesse ponto, uma evocação: “‘nomear analista’, ’designar como analista’ apenas sujeitos que não tenham predicado comum, isto é, sujeitos que nenhuma semelhança pode reunir” (MILLER, 2010, p. 41).

Por fim, anunciemos que os testemunhos têm dado provas de que é preciso reconfigurar a prática da psicanálise tendo como norte a recuperação do semblante, nos termos que propõe Miller: “articular uma dialética do sentido e do gozo na experiência analítica, e evidenciar em nossos trabalhos a borda de semblante que situa o núcleo de gozo” (MILLER, 2008, p, 15). Os testemunhos pretendem, pois, através do uso do semblante, transmitir como o sujeito se virou com o gozo próprio do sintoma, que é opaco por excluir o sentido e, como visto, tem a ver com lalíngua. Nas palavras de Jimenez:

Só o analista, a partir do lapso do nonsense, se permite ficcionalizar a sua própria história e, ao transmitir essa história aos outros, se histeriza. Ele percebe que todo recurso ao Outro da fala implica um protopseudos, uma maneira necessariamente ficcional de se falar da sedução da lalíngua. (JIMENEZ, 2010, p. 162).

Então, desde já, podemos dizer que os testemunhos de passe e seu modo singular de dizer da “sedução da lalíngua” são, para nós, terreno fértil para nele recolher o que é da lalíngua de cada um, após uma experiência analítica chegada ao seu término.