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3.4 A NOÇÃO DE LETRA E SUA RELAÇÃO COM LALÍNGUA

3.4.3 O Significante e seu Efeito de Gozo

O aparato da linguística permite, a Lacan, construir sua teoria do significante e tomar, como central, seus efeitos de significado, pondo em primeiro lugar a função da fala e o modo como essa função se inscreve no campo da linguagem. Lacan inclui a instância da letra, como aquilo que vem, nesse momento, aproximar-se mais de uma concepção que apontaria para certa materialidade do significante e seus efeitos de gozo.

Pretendemos, nesse tópico, problematizar, exatamente, a assertiva de que o significante não só tem efeitos de significado, mas também de gozo. Essa hipótese, central no Seminário 20, ocorre no contexto em que Lacan depara com os limites da estrutura da linguagem buscada antes em Saussure e na antropologia de Lévi-

Strauss. Como temos visto ao longo dessa investigação, é nesse contexto que a noção de lalíngua aparece em seu ensino.

É a partir dos anos 70 que Lacan vai privilegiar o efeito de gozo do significante, a ponto de questionar a palavra significante, visto que ela sempre se refere a uma perspectiva relacional. Nesse sentido, no Seminário 20, ele estabelece uma diferença entre duas questões: de um lado, nos deparamos com a questão “o que é o significante?”, questão que nos remete ao efeito de significado do significante, e, de outro, com a questão “o que é um significante?”. Lacan esclarece:

Um posto antes do termo e com uso de artigo indeterminado. Ele já supõe

que o significante pode ser coletivizado, que se pode fazer coleção, falar dele como de algo que se totaliza. Ora, o linguista seguramente teria muita dificuldade, parece-me, em fundamentar essa coleção, em fundá-la sobre um o, porque não há predicado que o permita. (LACAN, 1985b, [1972- 1973], p. 29). (Grifos nossos).

Como esse Um indeterminado pode funcionar em relação ao significante para coletivizá-lo, a essa questão, Lacan propõe uma reversão de perspectiva: em lugar de Um significante, é preciso interrogar o significante Um (LACAN, 1985b, [1972- 1973], 31).

Assim, ao propor que o significante seja interrogado enquanto Um, parece- nos, com isso, que Lacan estabelece um novo estatuto para o significante. Até então não substancial, pois que sempre relacionado a outro, o significante passa a ser pensado, por Lacan, em uma dimensão substancial. Nesse sentido, ele introduz o que chama de substância gozante, que seria uma propriedade do corpo vivo. Assim nos diz:

Não é lá que se supõe propriamente, a experiência psicanalítica? – a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Propriedade do corpo vivo, sem dúvida, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza.

Isso só se goza por corporizá-lo de maneira significante. (LACAN, 1985b, [1972-1973], p. 35). (Grifos nossos).

Situando o significante no nível da substância gozante, Lacan concebe, desse modo, uma tese que será central em suas últimas formulações: “o significante é a causa do gozo”. Esta tese tem, como fundamento, a questão: “como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material?” (LACAN, 1985b, [1972-1973], p. 36). Com isso, ele propõe um novo uso do significante, concebendo

que esse não tem somente efeito de significantização, mas tem efeito de afetar um corpo, vivificá-lo.

Tomar o significante nessa nova perspectiva faz Lacan “passar do conceito de língua ao de lalíngua, quer dizer, colocar que o significante como tal, não trabalha para a significação, mas para a satisfação” (MILLER, 2004, p. 33). Conforme anunciado desde o primeiro capítulo, com lalíngua, o que se apresenta é o aspecto substancial, o gozo, e não o relacional que é próprio à significação.

Quando o efeito corporal do significante é a referência, podemos dizer que o significante faz sua entrada no corpo, deixando uma marca que não faz parte daquilo que seria da estrutura de linguagem. Essa marca “vale como uma insígnia, solitária, absoluta, que identifica um corpo como objeto de gozo” (MILLER, 2011, p. 188). A fórmula freudiana de “Bate-se em uma criança” é ilustrativa dessa questão, pois como afirma Miller, “ali, na cena da flagelação, temos a relação mais direta, mais imediata entre o significante e o corpo, temos a matriz da incidência do Outro sobre o corpo: ele o marca como carne para gozar” (MILLER, 2011, p. 188).

Ao introduzir uma nova função do significante, a de causa de gozo, na qual está, em voga, um significante apenas e não uma cadeia de significantes, Lacan postula a tese de que o significante, nessas condições, recai no signo. Esse último é tomado por Lacan, como definido por Pierce, lógico americano: o signo é o que representa alguma coisa para alguém. O que quer dizer, então, esta tese enigmática de que o significante recai no signo?

Em seu Seminário 20, Lacan tenta esclarecer no que o signo se diferencia do significante:

O significante, eu disse, se caracteriza por representar um sujeito para outro significante. Do que é que se trata no signo? Desde sempre, a teoria cósmica do conhecimento, a concepção do mundo, vem brandir o exemplo famoso da fumaça que não há sem fogo. E por que não colocaria eu aquilo que me parece? A fumaça bem pode ser também o signo do fumante. E mesmo ela o é sempre, por essência. Não há fumaça senão como signo do fumante. Todos sabem que, se vocês vêem uma fumaça no momento em que abordam uma ilha deserta, vocês dizem logo para si mesmos que há todas as chances de que lá haja alguém que sabe fazer fogo. Até nova ordem será um homem. O signo não é portanto signo de alguma coisa, mas de um efeito que é aquilo que se supõe, enquanto tal, de um funcionamento do significante.

Este efeito é o que Freud nos ensina, e que é o ponto de partida do discurso analítico, isto é, o sujeito.

[...] Não conhecemos outro suporte pelo qual se introduza no mundo o Um, se não o significante enquanto tal, quer dizer, enquanto aquilo que

aprendemos a separar de seus efeitos de significado. (LACAN, 1985b, [1972-1973], p. 68-9).

Observamos, então, que não há como considerar o retorno que Lacan faz ao signo, sem levar em conta que o signo não é simplesmente sinal de alguma coisa, como a fumaça seria do fogo, mas a presença do significante no corpo, o que é separado de seus efeitos de significado. Assim, é na perspectiva do Um sozinho que Lacan passa a conceber seu significante. O significante como suporte do Um é “no antro da lalíngua que ele repousa”. De acordo com as palavras de Lacan:

É porque há o inconsciente, isto é alíngua no que é por coabitação com ela que se define um ser chamado falante, que o significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir signo. Entendam esse signo como lhes agradar, inclusive o thing do inglês, a coisa.

O significante é signo de um sujeito (LACAN, 1985b, [1972-1973], 195-6).

É na coabitação com lalíngua que se define um ser chamado falante, e é nesse nível que o significante é convocado a se constituir signo. O significante, como signo, Um encarnado na lalíngua, é o que vem introduzir a presença de um ser de gozo. Podemos dizer que se trata, nesse contexto, de uma conexão do sujeito e do corpo como lugar do gozo, pretensão que Lacan tenta assegurar com a criação de um novo neologismo, falasser (parlêtre).

O termo falasser é cunhado por Lacan no âmbito da discussão sobre o que é a condição humana de “ser falante”, articulando-a com a questão que se coloca quando se deduz que não se é um corpo, mas que se tem um corpo. O que interessa a Lacan, com esse neologismo, é pensar o sujeito dividido, marcado pelo falta-a-ser, mais o corpo substancial, cuja essência é gozo.

Na experiência do parlêtre, a modalidade própria do gozo tem a ver com o choque da linguagem sobre o corpo. Anteriormente discorreu-se que esse encontro contingencial do sujeito com o gozo é da ordem do troumatisme, pois deixa traços que desorganizam o corpo. Nesse sentido, Lacan define os efeitos desse encontro de “acontecimento de corpo”, e o nomeia de sinthoma, algo que está para além do sintoma pensado na perspectiva freudiana. Nessa direção, tentaremos interrogar sobre a relação do sinthoma com lalíngua.