psicanalítica e sua prática clínica.
Inconsciente e pulsão
A história da psicanálise está diretamente ligada à emergência das noções de inconsciente e pulsão dentro da produção freudiana. A obra canônica de Freud, Traumdeutung (A interpretação dos sonhos), publicada em 1900, ano da virada do século e escolhido propositalmente pelo autor para publicação desta obra, demarca historicamente o ato fundador deste campo de saber, hoje conhecido como psicanálise. Esta obra, junto com outras duas, ambas do início da primeira década do século XX – A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e O chiste e sua relação com o inconsciente (1905) – conformam a trilogia que vai estruturar as bases da noção de inconsciente na teoria freudiana. Lacan se refere a esta trilogia em seu seminário de 1968, Meu ensino, sua
natureza e seus fins (publicado em português na coletânea Meu ensino), onde
coloca as expressões “isso sonha”, “isso falha” e “isso ri”, relacionadas
respectivamente às três obras supracitadas. Essas expressões correspondem às formações do inconsciente, que emergiram deste primeiro momento do ensino freudiano: o sonho, o ato falho ou os lapsos de fala e os chistes . Vale 10
notar o caráter eminentemente linguístico, simbólico, da empreitada freudiana, caráter sempre intensivamente demarcado por Lacan.
9 Segundo Lacan, a teoria psicanalítica tem sua base em “quatro dos termos introduzidos por Freud como conceitos fundamentais, nominalmente o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão” (Em “Seminário Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, Zahar, 2008);
Qualquer um minimamente informado acerca do que falamos [psicanálise] sabe que se trata em Freud de três coisas. A primeira é que isso sonha. É um sujeito, isso, não? Que diabos fazem todos aqui? […] Depois, isso rateia, falha. Ver o lapso, o ato falho, o próprio texto de sua existência. […] Em terceiro lugar, isso sonha, isso rateia, fala, isso ri. Pergunto à vocês, essas três coisas, isso é subjetivo ou não? (LACAN, 2006, p. 88-89)
O psicanalista francês deixa patente a relação irrevogável entre as noções de inconsciente e sujeito, relação esta, fundamental para as articulações que os arquitetos farão com a psicanálise. O sujeito para Lacan é sujeito do
inconsciente, imerso no campo da linguagem. Destacamos a partir da leitura que Lacan faz sobre o inconsciente freudiano, com a emergência da noção de linguagem em seu ensino, as duas máximas do psicanalista francês que
articulam as noções de inconsciente, linguagem e sujeito: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 2008, p. 199); e “o significante é aquilo que apresenta o sujeito para outro significante”.
Em Freud, vale apontar que o inconsciente emerge teoricamente como parte do aparelho psíquico humano e aparece no que se convencionou chamar de a primeira tópica freudiana, ao lado das noções de consciente e pré-consciente. A noção de aparelho psíquico receberá uma formalização posterior,
denominada segunda tópica, formada pelas conhecidas instâncias psíquicas do Isso, Eu e Supereu . Pode-se dizer que Lacan, a partir do alistamento das 11
teorias linguísticas para seu retorno à Freud, acaba por forjar uma terceira tópica, estruturadora do sujeito do inconsciente e diretamente ligada à noção de realidade psíquica em Freud, que é a tríade formada por Real, Simbólico e Imaginário, geralmente escrita como RSI. Cabe ressaltar que tanto a noção de linguagem em Lacan, como a tríade RSI e seu suporte topológico do nó borromeano recebem destaque em subitem específico neste capítulo. Seguimos nosso vôo panorâmico sobre a teoria psicanalítica em direção à noção de pulsão. Proposta por Freud também nos primeiros anos de sua
11 Isso, eu e supereu também foram traduzidos na coleção Standard das Obras Completas de Freud como Id, ego e superego.
produção , teve sua formalização mais rigorosa no primeiro trabalho de uma 12
série de escritos que compõem sua obra metapsicológica, remontando ao ano de 1915. Em As pulsões e seus destinos, Freud vai cravar as bases conceituais da noção de pulsão e definir seus atributos e características principais.
A pulsão, segundo o criador da psicanálise, é o que demarca, dentro da teoria psicanalítica, a passagem do homem regido pelo instinto para um sujeito pulsional. Este sujeito é atravessado pela linguagem e, portanto, faltoso (castrado), ou seja, à margem das operações instintuais características dos animais em geral. É através da ideia de pulsão que Freud articula o
pressuposto biológico do homem às operações de seu psiquismo (de sua vida anímica), dando a este conceito um estatuto de fronteira dentro da trama psicanalítica. Segundo Freud, partindo do lado biológico para a observação da vida anímica (psíquica),
Nos aparece a pulsão como um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma, como uma medida de exigência do trabalho imposto ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal (FREUD, 2015, p. 25).
A partir desta passagem freudiana, pode-se depreender a primeira
característica da pulsão: a de ser uma força motriz de origem interna e de constituição autônoma – independente da incidência de estímulos externos para se constituir. Partindo desta característica inicial, Freud vai formular outros dois atributos para a pulsão: sua constância e sua consequente irrefreabilidade. Nas palavras de Freud,
Encontramos primeiramente a essência da pulsão em suas principais características, ou seja, sua origem em fontes estimuladoras no interior do organismo e sua ocorrência como força constante, o que nos induz a outro de seus traços distintos: sua inexpugnabilidade. (FREUD, 2015, p. 21).
12 Marco Antônio Coutinho Jorge vai demarcar que “o conceito de pulsão foi por ele [Freud] mesmo antecipado no ‘Projeto para uma psicologia científica’ (1895), ao mencionar a ocorrência de estímulos endógenos na sexualidade” (Em Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – Vol. 01 – Bases Conceituais, Zahar, 2005);
Freud (2015) constrói a noção de pulsão e a vincula a quatro atributos: a pressão, a meta, o objeto e a fonte da pulsão. Neste momento nos interessa o entendimento sobre o objeto da pulsão, que poderíamos postular como aquilo que a pulsão buscará para obter sua satisfação. Segundo o autor, o objeto da pulsão “é aquele junto ao qual, ou através do qual, a pulsão pode alcançar sua meta . É o que há de mais variável na pulsão” (FREUD, 2015, p. 13
25). Sendo esta satisfação sempre parcial, na medida em que há uma
impossibilidade fundadora de uma satisfação completa da pulsão, seu objeto terá o estatuto de uma forte volatilidade, variabilidade, podendo ser,
literalmente, qualquer objeto, aquele que irá satisfazer parcialmente a pulsão.