Lacan começa o SEM. 22 fazendo uma pergunta que envolve problemas acumulados ao longo de sua produção teórica. Esses problemas se referem ao esforço de formalização do saber psicanalítico, mais especificamente, sobre o aporte topológico fundamental do nó borromeano como “escrita” de parte tão importante de seu ensino. Lacan nos diz:
A que registro pertence o nó borromeano? Será ao do Simbólico, ao do Imaginário ou ao do Real? Adianto desde hoje que no
prosseguimento demonstrarei. Adianto o seguinte: o nó borromeano, enquanto se sustenta pelo número três, é do registro Imaginário. (LACAN, SEM. 22, p. 06)
“[…] Quando se traz à baila o Imaginário, tem-se todas as chances de se atolar.” (LACAN, SEM. 22, p. 3). Evitar um atolamento no imaginário sendo este o próprio registro que sustenta o nó é um empreendimento lacaniano: fazer uma leitura do nó como escrita que suporta o real e nesta medida, abrir as questões acerca da própria ideia de representação que o nó borromeano comporta. Se ele é primordialmente Imaginário, como postula Lacan no início do SEM. 22, ele comporta o Simbólico, na medida em que nos colocamos a falar dele, a pôr palavra nele (como fazemos aqui); e ainda, carrega um Real, na medida em que o nó contém a lógica que estrutura o sujeito, sujeito do inconsciente, e consequentemente, a lógica que estrutura a estrutura, ou seja, a estrutura da própria linguagem.
Após este pequeno preâmbulo sobre a questão lacaniana que abre o SEM. 22, outras questões surgem a nossa frente: a utilização do nó não seria uma imagem da estrutura e consequentemente apenas mais uma representação imaginária do sujeito? Com a negativa dessa questão, surge outra, se não podemos tratar o nó borromeano como um modelo ou representação imaginária, como atribuir valor real a isso?
Lacan tentará dar contorno à sua questão supracitada e consequentemente a estas questões subsequentes. Dizendo de outro modo, Lacan colocará o ponto de interrogação simbólico com um buraco no meio, fazendo uma
aproximação dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário, às respectivas noções de ex-sistência, buraco e consistência:
Podemos, então, atualmente, sob uma forma interrogativa, pôr aqui o buraco com um ponto de interrogação e não outra coisa. Está aqui em questão o que é do Simbólico, enquanto que aqui o Real, é a
ex-sistência, e que a consistência é aqui correspondente ao Imaginário. (LACAN, SEM. 22, p. 36)
A existência, ou como Lacan grafará ex-sistence , termo que evidencia a 23
opacidade da demarcação entre interno e externo, corpo e mente, aparece ao longo de seu ensino e de maneira evidente no já citado SEM. 22. Em
contraponto temos a noção de consistência . O psicanalista francês afirma 24
que a consistência do nó é imaginária, e só poderia ser, ao mesmo tempo que refuta o conceito de modelo , na medida em que este recorreria a um 25
“imaginário puro”, visando uma aplicação na realidade. Assim, temos a primeira noção, ex-sistência, referenciada ao registro do Real e a segunda, consistência, ao registro do Imaginário. Segundo Lacan, “Os modelos recorrem ao Imaginário puro, os nós recorrem ao Real e tomam valor por terem alcance no mental e no Real, mesmo que seja o mental Imaginário, pela boa razão de terem seu alcance em ambos” (LACAN, SEM. 22. p. 53). Com esta distinção aparece a torção empenhada por Lacan ao afirmar que tendo sua consistência garantida pelo registro imaginário, é a partir do real que podemos pensar a ex-sistência do nó como contenedor da lógica que estrutura o sujeito inconsciente. Entre a consistência Imaginária e a
ex-sistência Real, o Simbólico se inscreve como único mediador operacional possível entre os dois outros registros. Lacan vai problematizar a noção de consistência na medida em que este termo faz supor a possibilidade de uma demonstração. E o que poderia demonstrar o Real? Lacan neste momento se 23 Nas traduções para o português encontramos tanto a ocorrência de ex-sistência com a de ex-istência. Optou-se por utilizar a forma ex-sistência;
24 Lacan vai nos dizer que a consistência das argolas deve ser pensada sob a égide do furo, do buraco, daquilo que falta. Ideia engenhosa para apontar de saída para a formulação algébrica lacaniana, do S barrado, que formaliza a estrutura do sujeito atravessado por linguagem.
utiliza da metáfora da corda: “A corda aqui é, se posso assim dizer, o fundamento do acordo. […] diria que a corda se torna assim o sintoma daquilo em que o Simbólico consiste”. O autor, deste modo, aponta para a linguagem e a impossibilidade da metalinguagem. “O tecido de algo é o que, por um nadinha, faria imagem de substância, o que, aliás, é de emprego usual. Trata-se, nessa fórmula de ‘mostrar a corda’, de que falei, de perceber que não há tecido que não seja tecido” (LACAN, SEM. 22, p. 21).
Olhar para o nó borromeano — figura topológica onde cada registro se encontra numa relação com os outros dois na medida em que ao se retirar qualquer um deles de cena, os demais também se desvinculam entre si —, onde se enlaçam os registros RSI, nos permite, através de Lacan, fazer uma leitura de que neste nó temos a estrutura do sujeito inconsciente, e
consequentemente, a possibilidade formal do que está sujeito àquilo que se estrutura como linguagem.
Aqui emerge a imagem das estruturas materiais, seja em terra, pedra,
concreto, metal ou madeira. Um sistema estrutural possui algo que de partida deve ser sustentado, qual seja, seu peso próprio. Por exemplo, o complexo laje-viga-pilar além de sustentar as cargas acidentais — como os móveis (sofás, mesas, cadeiras, etc), os equipamentos (eletrodomésticos, máquinas de ar-condicionado, etc) e as pessoas que habitarão o edifício —, deve sustentar seu peso próprio, ou seja, o peso daquilo que possibilita a existência do próprio complexo (neste caso, o peso do próprio material formador destes elementos, lajes, vigas e pilares).
O conceito do peso próprio nos serve aqui para pensar o real do nó
borromeano, como aquilo que, para além do que tem potência de desdobrar num depois a trama de significações entre os três registros, sustenta de partida algo que diz da própria estrutura, da própria possibilidade do discurso, ou seja, algo da estrutura da linguagem que sustenta a própria linguagem.
Este algo, vai nos dizer Lacan, é a impossibilidade de uma metalinguagem (“não há Outro do Outro”) que se evidencia exatamente na estrutura nodal,
em que de partida percebemos que não se dá conta pelo simbólico e/ou pelo imaginário, daquilo de real que comporta a linguagem, haja vista o
enodamento fundamental que se faz em 3 registros ou dimensões. Aqui fica-se diante do impossível que nos atravessa o tempo todo em que estamos manejando, tecendo, criando, fazendo com a linguagem, e ao mesmo tempo não podemos prescindir deste fazer para ter notícias deste real, para esbarrar, resvalar, tropeçar no peso próprio da experiência subjetiva, no peso próprio de habitar este mundo. Para concluir, cito Lacan,
No momento em que digo mundo, não deveria ter dito nosso Real? Com apenas a condição de que nos apercebamos de que o mundo, aqui como representação, depende da junção dessas três consistências que denomino como Simbólico, Imaginário e como Real, as
consistências, aliás, sendo-lhes supostas. Mas que se trate de três consistências e que seja delas que dependa toda representação, eis aí algo bem feito para nos sugerir que há mais na experiência que necessita essa, diria eu, trivisão, essa divisão em três, de consistências diversas, que é daí, sem que possamos fugir, que se pode supor que a consequência seja nossa representação do espaço, tal como ele é, ou seja, em três dimensões. (LACAN, SEM. 22, p. 21)