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INDEPENDÊNCIA FINANCEIRA FEMININA

No documento javerwilsonvolpini (páginas 194-200)

4 O PROJETO LITERÁRIO DE DÉLIA E A CRÍTICA FEMINISTA

4.3 INDEPENDÊNCIA FINANCEIRA FEMININA

Desde que o casamento não seja um negócio, a mulher emancipada trabalhará, ajudará o marido a sustentar o peso doméstico e terá posição definida na sociedade. Por seu turno, ele irá buscar um arrimo, um consolo e não um encargo: será uma companheira resoluta e forte, tanto para os dias bonançosos como para os da adversidade. Cairá a mulher coquette que só pensa em ofuscar os semelhantes nos bailes, nos teatros, e em sua própria casa, com prejuízo do marido que geme sob o jugo das dívidas. Mas surgirá uma figura distinta e imaculável... Não queremos a mulher pedante, fruto evidente da exceção, nem tão pouco a de salão – boneca automática: votamos pela independência e liberdade femininas. Somos partidárias do trabalho e do amor (LEMOS, 1893, p. 4).

Elisa Lemos62, mineira da cidade de São João del-Rei, também ofereceu sua colaboração para o periódico A Família, no Rio de Janeiro, criticando a futilidade da mulher abastada e

62 Sobre Elisa Lemos não encontramos muitas informações nas antologias de escritoras do século XIX

nem nos dicionários biobliográficos mais conhecidos. Encontramos que se trata de uma escritora mineira do final do século XIX, residente em São João del-Rei, que colaborou em periódicos como A Patria

defendendo a independência financeira feminina por meio da oportunidade de trabalho para as mulheres. Essa será uma das grandes pautas do movimento feminista desde o século XIX, que irá adentrar o século seguinte, principalmente no que tange à sua valorização em equidade profissional com o universo masculino.

Nessa citação de Lemos (1893), também observamos uma crítica na condição expressa pela frase: “Desde que o casamento não seja um negócio”. Como já vimos pontuando, a maioria dos casamentos burgueses representava uma negociação em que a mulher normalmente era a “moeda de troca”: ou eram muito ricas ou eram belas e jovens; sem um desses atributos, dificilmente o “negócio” se concretiza. Isso expunha ainda mais a fragilidade feminina nessa sociedade. Para a mulher de classe alta, havia poucas possibilidades de conquistar e manter a sua independência financeira. As de famílias abastadas geralmente se viam presas a uma situação contraditória: muitas vezes provinha de seu dote a estabilidade financeira da família, mas elas não podiam administrá-lo. As de famílias menos favorecidas poderiam ascender socialmente por meio do casamento com um homem de posses, mas também mantinham a dependência financeira do marido. A relação da mulher com as finanças, portanto, estava majoritariamente sob a tutela de uma figura masculina.

Conforme já apresentamos nessa pesquisa, foram poucas as oportunidades em que as mulheres adquiriam independência financeira. Os principais casos ocorriam geralmente quando da morte dos maridos e elas conseguiam romper com a tutela masculina, assumindo a administração dos negócios. Reafirmamos, entretanto, que esses casos representavam a exceção, conforme os exemplos de “matriarcas” oferecidos por Freyre (1977). A ausência de uma atuação financeira para a mulher também pode ser entendida como o reflexo de sua limitada educação na cultura patriarcal. Nessa cultura, ela era considerada um ser frágil, incapaz intelectualmente, sendo preparada, portanto, para se tornar um ser dependente, emocional e financeiramente. Estava sempre sob a regulação da família, da Igreja e da sociedade. Sua vida fora da sombra de um homem dificilmente lhe traria reconhecimento. Isso potencializava cada vem mais sua dependência e dominação.

Nesse pensamento patriarcal, a mulher não contribuía para o sustento da casa; ao contrário, ela deveria atuar publicamente como a vitrine do sucesso financeiro do marido. Isso ficou ainda mais evidente com o advento das sociedades industriais do século XIX. Para essa atuação a favoreciam as modas e o exercício dos costumes sociais. Uma mulher refinada e bem

começou a escrever nesses periódicos, seus textos já possibilitavam entrever uma percepção crítica acerca do papel ocupado pela mulher na sociedade brasileira no final do século XIX.

vestida oferecia o status necessário para a família ser bem recebida na sociedade. Sua boa figura e traquejo contribuía para enobrecer o nome da família. Em contrapartida, a mulher não poderia trabalhar, sua função era gerenciar a casa, os criados, educar os filhos e zelar pelo conforto e bem-estar da família.

Essa imagem da mulher de posses e toda a submissão a que estava submetida foi a grande temática da obra de Délia, abordada em suas diferentes nuances. As narrativas de seus romances oferecem ao público leitor um panorama da realidade dessas mulheres em seus espaços de atuação, fossem eles na intimidade do lar, ou na vivência pública, onde experimentavam as máscaras sociais, legitimando e denunciando o lugar reservado para o feminino na sociedade de sua época.

Nessa perspectiva, a personagem Angelina expressa fielmente o retrato de mulher que acabamos de apresentar. Pela época do casamento, a moça possuía uma fortuna estimada em cinco mil contos de réis. Era milionária, mas suas finanças sempre foram movimentas pelo padrasto. Não lhe faltava nada, obviamente, mas ela não tinha o controle real da administração dos bens e das aplicações financeiras. Depois do casamento, embora em regime de separação de bens, seu marido administrava parte dos recursos que o padrasto liberava para os dispêndios do casal. Qualquer decisão que dependesse de recursos financeiros, o padrasto precisa ser consultado.

Aurélia também se tornou uma mulher abastada após receber uma considerável herança do padrinho que faleceu sem deixar herdeiros naturais. A narrativa do romance, porém, sugere que a administração de suas finanças sempre esteve a cargo da figura paterna.

Já a personagem Deia alcançou mobilidade social ao se casar obrigada pelo pai com um homem de posses. Conforme já comentamos, as moças sem posses, mas dotadas de beleza podiam contar com essa possibilidade. Foi a isso que o pai de Deia se apegou para lhe arranjar um bom casamento. “Você não é feia, pode e deve fazer melhor escolha e tenho alguém em vista. Cabe-me o direito de ser severo pela sua conduta. Fecho, porém, os olhos e procuro melhorar-lhe a sorte; já vê que deve obedecer ou será muito ingrata!” (BORMANN, 2011, p. 22).

Com o casamento, Deia teve acesso a uma vida abastada de mulher da alta sociedade da Corte do Segundo Reinado, patrocinada pelo marido.

Tinha sofrido, vestindo essas custosas roupas, adornando-se com essas joias, sentindo-se arrebatada pela magnífica parelha de alazões, olhando a seda mauve, que forrava o elegante coupé, e que achava fúnebre, porque tudo isso lhe vinha do marido, para quem era uma estranha, porque essas comodidades

lhe pareciam uma usurpação e a humilhavam. Muito recebia e nada havia dado! (BORMANN, 2011, p. 54).

Viver nesse luxo, totalmente dependente do marido, fazia com que Deia se sentisse envergonhada. Primeiro por não corresponder, inicialmente, ao homem com quem se casou; depois por sentir-se desonrada por ter cedido à sedução do primo que a abandonou, acreditando não ser merecedora do amor do esposo. Sua formação moral e cristã a induzia a cultivar esse sentimento de inferioridade. Até a mesada que oferecia à irmã para lhe socorrer em suas dificuldades financeiras era patrocinada pelo esposo. Apesar de ter todos os desejos atendidos, sua situação financeira era de total dependência.

Em outra perspectiva, a personagem Celeste nunca teve uma vida de muito luxo, embora nada lhe faltasse. Quando casada, teve uma vida mais modesta e totalmente dependente do marido, um médico recém-formado. Após a separação, sua situação financeira ficou mais delicada, precisando contribuir com os pais, continuando financeiramente dependente de uma modesta pensão que seu ex-marido lhe enviava.

Madalena, dentre as personagens mais tradicionais de Délia, foi a única que gozava de certos privilégios quanto à dependência que as demais heroínas apresentavam em relação aos homens com quem se relacionavam. De família muito abastada, percebemos que ela dispunha de independência financeira, sendo capaz de gerenciar sua herança fora do dote, sabendo administrá-la, além de circular entre banqueiros, com fortes relações sociais nesse meio. Isso evidencia que a personagem recebeu uma educação complementar, pouco comum para o universo feminino da época.

Refletindo sobre essa educação especial oferecida a Madalena, lembramos de uma referência feminina histórica do século XIX no Brasil que também representou uma exceção em relação às mulheres aristocratas, recebendo uma educação privilegiada. Trata-se da herdeira de um rico financista dos negócios oriundos do café sul-fluminense, Eufrásia Teixeira Leite63. Sendo educada pelo pai como se educava os filhos do sexo masculino, Eufrásia soube administrar a herança recebida, conseguindo multiplicá-la significativamente. Ao se ver órfã, para se livrar da tutela masculina de seus tios, rompeu com o sistema patriarcal e, quase fugindo, mudou-se com a irmã para Paris, conquistando a independência financeira. Com tino

63 Eufrásia Teixeira Leite (Vassouras, RJ, 1850 – Rio de Janeiro, RJ, 1930) foi criada pelo pai para ser

gestora de sua imensa fortuna, totalmente em desacordo com os padrões da época. Tendo prometido ao pai no leito de morte que nunca iria se casar, para não se submeter à tutela masculina, condenou seu conturbado romance com o abolicionista Joaquim Nabuco, com quem Eufrásia noivou e rompeu por três vezes, por não aceitar suas traições amorosas.

administrativo, variou bastante suas aplicações e foi considerada a primeira mulher a frequentar uma bolsa de valores, tornando-se uma das mais ricas mulheres do Brasil do século XIX. Era conhecida como a “dama dos diamantes negros”. Importante pontuar que essa autonomia de Eufrásia só foi possível ao abandonar o Brasil e, principalmente, devido à educação diferenciada recebida por seu pai, desenvolvendo habilidades para as finanças, algo inimaginável para uma mulher no contexto brasileiro de sua época.

A personagem Lésbia, no entanto, será a grande representante na obra de Délia que conseguirá alcançar independência financeira e, além disso, se realizará profissionalmente, obtendo reconhecimento social. Embora tenha sido agraciada com a sorte de ganhar na loteria, o que mais suscita reflexões nessa heroína não é o fato de ter posses, mas a possibilidade da mulher transitar socialmente sem o amparo de uma figura masculina. Nesse romance, percebemos o projeto literário de Délia se concretizando quando, por meio dessa construção, ela suscita outras questões importantes para a pauta feminista que se consolidará mais fortemente a partir da década de 1920, com a escritora inglesa Virgínia Woolf.

Em Um teto todo seu (1929), Woolf realiza uma reflexão sobre a mulher e a literatura. Expõe o pensamento patriarcal e como ele tolhia as mulheres, fazendo com que elas precisassem provar sua capacidade intelectual. Defendia que a função social da mulher a impedia de realizar-se como escritora e que, para tal, era necessário independência financeira e um lugar para desenvolver seu processo criativo – um teto todo seu. Curiosamente essas afirmações sobre o universo feminino discutidos por Woolf em 1929 já estavam presentes na literatura de Délia, com Lésbia, escrito em 1884, no Brasil.

Telles (2015) afirma que Délia antecipa as escritoras inglesas em algumas décadas e, mesmo não tendo uma longa tradição de escritoras anteriores a ela, como as inglesas tiveram, se torna pioneira na abordagem da temática da mulher escritora.

Délia estabelece a ligação entre a busca da protagonista por desenvolvimento artístico, independência financeira e amorosa e a noção de um local de trabalho próprio, e com um toque local de excesso, a personagem escritora realiza sua arte solitária, não em um “quarto todo seu”, mas num palacete todo seu (TELLES, 2015, p. 384).

Délia defende exatamente a atuação da mulher escritora, as dificuldades para ser reconhecida no universo literário e para publicar suas obras. O sucesso da personagem escritora desponta finalmente após conquistar sua independência financeira, quando pode financiar suas publicações e, principalmente, conquistar um espaço de criação, expresso no romance pelo seu escritório, santuário sagrado, especialmente preparado em sua casa. As semelhanças observadas

com Woolf (1929) são muito claras e isso corrobora mais uma vez com o trabalho de vanguarda da escritora brasileira.

A obra de Délia foi ambientada na corte brasileira do Segundo Reinado, com personagens oriundas da elite burguesa e aristocrática de sua época, por isso nossa abordagem não abarca a participação de mulheres das camadas mais baixas. Outras pesquisas, porém, trazem informações de que a situação dessas mulheres oscilava para uma representação com um pouco mais de autonomia, por estarem mais distantes da vigilância social. Suas lutas, no entanto, vieram a somar à causa feminista, pois sofriam o mesmo desamparo e marginalidade das demais mulheres.

Sobre as experiências das mulheres do universo social mais abastado percebemos que, embora pudessem ter uma vida confortável, elas geralmente não ser realizavam e seu espaço de atuação estava sempre limitado, sofrendo com a regulação dos valores patriarcais, da Igreja e, principalmente, da sociedade. Faltava-lhes antes de independência financeira, autonomia sobre o seu próprio ser mulher, seus sentimentos mais íntimos deviam ser mascarados para atender as convenções sociais. Esse sentimento foi reflexo de séculos de opressão e o movimento feminista que se inicia na sociedade brasileira a partir de 1850 oferece a oportunidade para um pensamento de vanguarda em defesa de reconhecimento da mulher enquanto ser social. Assim, constatamos que a escritora Délia, por meio de suas personagens e de sua literatura, deixou importante contribuição para essa página da história das mulheres, a qual buscamos resgatar com esta pesquisa.

No documento javerwilsonvolpini (páginas 194-200)

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