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Histórias em Quadrinhos: magia real, realidade mágica

1.7. Independência ou morte

Para a distribuição de gibis, a autoridade eram as empresas responsáveis pela distribui- ção de revistas nos EUA. Essas companhias fa- ziam a ponte entre as editoras e os pontos de venda, entregando semanalmente cargas de quadrinhos para bancas, farmácias, postos de gasolina, barbearias, entre outros pequenos co- mércios, que vendiam HQs 13.

O sistema se baseava totalmente na

possibilidade de reembolso. As revistas não vendi- das eram devolvidas para o distribuidor, que por sua vez as devolvia para a editora, que reembolsava os valores de toda a cadeia. Aliás, com um agravan- te: as revistas nem precisavam ser fisicamente re- tornadas. Era só dizer que se perderam ou não fo- ram vendidas para receber o reembolso. Funcionan- do assim, as fraudes eram constantes e era bas- tante comum encontrar revistas ainda novas sendo vendidas abaixo do preço de capa, como encalhe.

Esse sistema também distribuía de maneira errática as revistas. Como não havia um controle mais forte por parte das editoras e nem pressão por parte do público, as distribuidoras deixavam praças sem receber material ou não entregavam todos os títulos em todos os locais possíveis.

Para as revistas de humor, por exemplo, isso não era um grande problema. Mas para as de super -heróis, que tinham na continuidade um de seus pi- lares, essa distribuição falha era um golpe fortíssi- mo. Na década de 1970, a situação chegava ao pon- to de quem trabalhava na área acreditar que o mer-

cado de HQs desse gênero poderia se extinguir. Tudo muda com a iniciativa de um pro- fessor de inglês e vendedor de gibis chamado Phil Seuling. É ele que percebe que aquele mode- lo de negócios iria acabar com o mercado mais cedo ou mais tarde. Seuling então se aproxima das editoras e oferece um novo negócio. Nada mais de pagar por revistas devolvidas. Por um desconto de 50% no preço de capa (que, poste- riormente chegou a 60%), ele diria exatamente quantas revistas seriam vendidas e ficaria com todas, mesmo as não comercializadas, para vender aos fãs que perdessem algum número.

A mudança para as editoras era muito forte. Elas poderiam estimar melhor sua produ- ção, teriam um ganho financeiro considerável evitando pagar reembolsos e teriam a garantia de que seu público-alvo efetivamente receberia seus produtos.

Assim nasce o Direct Market (mercado direto), que é a base até hoje do sistema de

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14 Processo similar ocorre no ano de 2012 no Brasil. A principal editora de quadrinhos de super-heróis, a Panini Comics, para o relançamento do Universo DC no país, dentro da iniciativa chamada de “Os Novos 52”, comercializa alguns títulos apenas nas comic shops brasileiras, para ter maior controle da tiragem e distribuição.

Informações disponíveis em http://www.osnovos52panini.com.br 15

No Brasil, “O Cavaleiro das Trevas”.

distribuição de HQs nos EUA 14. Começou com as

revistas de super-heróis, mas acabou sendo o modelo de distribuição padrão de todos os gê- neros de quadrinhos.

Baseadas firmemente nesse sistema é que proliferam as comic shops, lojas especiali- zadas em quadrinhos e demais produtos relaci- onados, como pôsteres, camisetas e brinque- dos. Nessas lojas, os fãs tinham a certeza de que encontrariam as revistas que desejavam, visto que as mesmas faziam pedidos às edito- ras confiando justamente na presença desses compradores fiéis.

Para os donos dessas lojas (a imensa maioria deles fãs de quadrinhos como seus cli- entes), o importante era fazer as produções chegarem ao público. Por isso, ter ou não um selo de aprovação de um órgão censor na capa da revista pouco importava. O importante era satisfazer o desejo constante dos espectado- res – o que acabava auxiliando, ao mesmo tempo, aos criadores que estavam dispos-

tos a ousar.

Assim, o mercado de quadrinhos de super- heróis que agonizava nos anos 1970 ganha um novo ânimo na década seguinte, com um número cres- cente de compradores de revistas surgindo a cada dia, auxiliado pela imensa rede de lojas surgida e também por uma renascença no gênero, que evolui para a além das histórias rasas de seres superpo- derosos inevitavelmente vencendo engenhosos vilões. Obras como “The Dark Knight Re-

turns” (1986)15 de Frank Miller, e

“Watchmen” (1986) de Alan Moore e Dave

Gibbons, já citados aqui, resignificam os gibis de super-heróis, trazendo-os para a atualida- de e dando a eles mais uma vez a relevância que possuíam em outros tempos, colocando- os na trilha que percorrem até os dias de hoje.

Por outro lado, o sistema de distri- buição via comic shops criou um tipo de intera- ção entre consumidores e produtores de conte- údo que alterou profundamente a maneira de ser das HQs de Super-Heróis: sabendo que ha- veria um público fiel e interessado na continui- dade, pois esse era um elemento de identidade, catalisador daqueles fãs, os editores cada vez mais aprofundavam suas narrativas – ao ponto

Figura 9 — Capas de Watchmen #1 e “Batman—The Dark Knight Returns” #1, ambas de 1986. Nas imagens, já se denota a te- mática mais adulta: o sangue em Watchmen e a noite tempes- tuada de Batman.

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de nas décadas de 1990 e 2000 ser praticamen- te impossível para alguém que quisesse come- çar a acompanhar as aventuras de um super- herói qualquer fazê-lo sem ter que procurar pelo menos algumas histórias dos cinco anos anteri- ores. Somente assim era possível entender o que estava acontecendo àquela determinada personagem.

Como será visto no Capítulo 3, o fã é fundamental para o processo transmidiático, pois é ele que abre o caminho para os demais espectadores no consumo das produções em outras mídias, notadamente quando concorda com a tradução realizada sobre seu objeto de adoração quando da transposição para outros meios. E essa cultura de fãs é reforçada com- pletamente com as comic shops. Ali surge o que alguns chamam de superhero ghetto16. Quem

não era um visitante assíduo das lojas especia- lizadas, raramente colocava as mãos em um gi-

bi, não só de super-herói, mas principalmente deste gênero.

Assim, o que antes eram algo extremamente popular, distribuído até como brinde de lojas de de- partamento começa a se fechar em um mundo pró- prio, acessível apenas aos seus iniciados. É verdade que na década de 1990 houve um aumento do inte- resse do público fora desse “mundinho”. A edição número 1 da revista “X-Men” (1991) escrita por Chris Claremont e desenhada por Jim Lee vendeu espan- tosos 8 milhões de cópias, tornando-se recorde ab- soluto na História do gênero. Esse sucesso faz sur- gir para além da DC Comics e da Marvel, as maiores referências em produção de narrativas nesse tema, a Image Comics, editora fundada por artistas dis- sidentes dessas duas casas (entre eles o próprio Jim Lee).

Mas ainda que aquele momento fosse bom comercialmente, em termos de acessibilidade, as narrativas continuaram demasiadamente intrinca- das e, dessa maneira, afastando as pessoas em geral daquelas personagens.

Essa situação começa a mudar apenas quando a indústria cinematográfica busca a fonte super-heróica dos quadrinhos para ten- tar encantar as massas sedentas por figuras que preenchessem o vazio mitológico de suas existências.

Os super-heróis despertam o homem moderno para o confronto com sua fragilidade frente à realidade da Máquina e do Sistema, tão característicos no pós Revolução Industrial.

É por meio de super-homens de capa e cueca por cima da calça que o fantástico se apresenta, multiplicando capacidades e possi- bilidades. O super-herói consagra o conceito de heroísmo e o amplifica tornando-se, pela via da cultura de massa emergente, o ícone da moder- nidade, na qual o tempo imaginário que compre- ende tanto o tempo histórico como o dos qua- drinhos e as experiências decorridas dentro de- les ganham uma amplitude global.

Chega o tempo de voar: para o alto e avante!

16 Como visto em matéria do The Comics Journal¸ disponível em

http://classic.tcj.com/history/a-comics-journal-history-of-the- direct-market-part-one/8/

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CAPÍTULO 2

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