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Indeterminismo em termos de propensões

PARTE II – INDETERMINISMO

1. Análise conceitual do indeterminismo causal

2.2. Indeterminismo em termos de propensões

Outra maneira de expressar ‘indeterminação’ é recorrendo à noção popperiana de propensões: “existe uma relação próxima e íntima entre propensões e indeterminações” (MILLER, 1995/1997, p. 149). Segundo Popper (1956/1988), o abandono do determinismo, por um lado, e adoção do indeterminismo, por outro, abrem a possibilidade para uma interpretação da probabilidade nas ciências físicas em termos de propensão.

Popper (1956/1988) explica esse conceito fazendo uma analogia com a noção de força. ‘Força’ é um constructo hipotético não observável, mas passível de ser testado por meio de hipóteses que envolvam essa noção. Por exemplo, testa-se a presença de uma força eletrostática por meio de seus efeitos previsíveis, como a direção e magnitude da aceleração de um dado corpo. Suponhamos, prossegue Popper, que em uma seqüência de testes cada um deles dá o mesmo resultado. Podemos, então, conjeturar que a força é constante. Em outra situação, verifica-se que os resultados com respeito à direção da força permanecem constantes, porém, variam com respeito à magnitude. Nesse caso, podemos conjeturar que a direção da força é constante, e que sua magnitude oscila. Como explicar a idéia de forças oscilantes?

Acompanhando o raciocínio de Popper (1956/1988), podemos dizer, em conformidade com uma interpretação determinista, que a oscilação da força, mais especificamente, da sua magnitude, é devido a perturbações desconhecidas, ou interferências que escaparam ao controle preciso e rigoroso das condições experimentais. Em suma, em uma

perspectiva determinista as variações na força são devido a oscilações ocultas nas condições iniciais (POPPER).

Por outro lado, Popper (1956/1988) sugere, em consonância com uma visão indeterminista, que interpretemos essas oscilações como propensões: as condições experimentais mantidas tão constantes quanto possível especificam propensões4. Isso significa que “a mesma situação pode produzir resultados oscilantes” (p. 99). É nesse ponto que fica patente a relação entre indeterminismo e propensões. A idéia de propensões só pode ser aceitável mediante o abandono do determinismo, pois se admite, segundo essa noção, que a mesma situação ou estado pode produzir, na evolução temporal de um sistema, diferentes estados subseqüentes. Esse quadro, por sua vez, é incompatível com o determinismo – embora seja empiricamente equivalente com ele.

Um contexto em que podemos aquilatar a importância da teoria das propensões é justamente naquelas ocasiões em que condições iniciais idênticas geram seqüências de resultados aleatórios (POPPER, 1956/1988). Consideremos uma máquina de lançar moedas que foi construída de modo a repetir com precisão e exatidão os seus movimentos. Como explicar o fato dessa máquina gerar seqüências de lances de moeda aleatórios? (POPPER). Não poderíamos alegar que a moeda foi introduzida de maneira diferente, pois a máquina foi construída para corrigir qualquer imprecisão quanto à posição da moeda, assegurando a igualdade das condições iniciais (embora, a rigor, isso não pareça ser possível). Em suma, a principal questão é como explicar, a despeito do caráter aleatório dos eventos, a estabilidade estatística, isto é, o fato de o resultado ser uma freqüência relativa de 50% “cara” e 50% “coroa”.

Em tese, a situação desafiaria tanto deterministas quanto indeterministas. Os deterministas teriam o ônus de explicar a aparente irregularidade, ao passo que aos indeterministas ficaria a tarefa de dar conta da regularidade do sistema. O que Popper (1956/1988) pretende mostrar é que os deterministas não conseguem sequer explicar o que, a princípio, seria da sua alçada: como a ordem surge da desordem aparente. Talvez isso fique mais claro adiante.

2.2.1. Limitações da interpretação determinista da probabilidade

Uma maneira usual de explicar a probabilidade de ocorrência de um evento é em termos de freqüência relativa ou freqüência estatística dos resultados em uma seqüência de

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Semelhantemente à noção de força, a hipótese da presença de propensões só pode ser verificada mediante testes estatísticos (POPPER, 1956/1988, p. 99).

eventos (POPPER, 1956/1988). Nessa perspectiva, a probabilidade de 50% de ocorrência de “coroa” significa que a freqüência relativa dos resultados (“coroas”) em seqüências de eventos em longo prazo é ½. Em poucas palavras, a probabilidade, aqui, é entendida em termos de freqüência. Para o determinista, a freqüência observada provê informação relevante para encorajar apostas razoáveis sobre a ocorrência futura de um evento semelhante.

Cabe lembrar, contudo, que em uma interpretação determinista, a probabilidade é uma medida de nossa informação incompleta sobre as condições do sistema. Seguindo nosso exemplo, se as informações sobre o lançamento da moeda fossem suficientemente precisas, não teríamos dificuldade em prever o resultado com certeza, e a noção de probabilidade tornar-se-ia supérflua.

Com efeito, o resultado estatístico poderia ser atribuído a diferenças diminutas ou ocultas no estado da máquina e da moeda, tais como, mudanças atômicas ou moleculares. Por exemplo, em um lançamento específico, a moeda pode interagir com um grupo de moléculas que determina a ocorrência de “coroa”. Popper (1956/1988) até concede ao determinista essa possibilidade: não nega que as variações (ora ocorrência de “cara”, ora de “coroa”, em uma seqüência de arremessos) podem ser devido a causas imperceptíveis, como interações moleculares com a moeda que acabam ocasionando resultados diferentes, mediante o lançamento da moeda.

Todavia, isso não explica a estabilidade estatística, isto é, o fato de seqüências aleatórias apresentarem uma freqüência relativa de ½. Nesse caso, o determinista tem de admitir, alega Popper (1956/1988), que a seqüência de condições iniciais também forma um coletivo de tipo aleatório. Dito de outro modo, para o determinista a distribuição aleatória dos efeitos é resultado de uma correspondente distribuição aleatória das causas, e estas, por sua vez, figuram como efeitos de outras causas, também distribuídas aleatoriamente, e assim por diante.

Aplicado ao nosso exemplo, isso significa que o número de moléculas que causam pequenos desvios que resultam em “coroas” seria aproximadamente do mesmo número daquelas que ocasionam “caras”. Nessa situação haveria um “equilíbrio” de causas ocultas. Não obstante, isso ainda não oferece uma explicação do porquê os resultados são notoriamente estáveis (razão média de 50:50), a despeito de sua aparente aleatoriedade. É justamente nessa situação que Landé (1958/1974) afirma que a única alternativa ao determinista, quando impelido a explicar a distribuição aleatória correspondente nas condições iniciais de cada um dos acontecimentos, é apelar a uma harmonia pré-estabelecida,

que também reclama explicação: “ou um deus ex machina, ou absolutamente nenhuma explicação determinista” (p. 85).

A questão é que para o determinista os resultados estatísticos são deriváveis apenas de suposições estatísticas sobre as condições iniciais – diga-se de passagem, suposições que levam a um regressus in infinitum (LANDÉ, 1958/1974). Com efeito, os deterministas acabam permitindo, inadvertidamente, que a probabilidade entre em suas proposições, deixando, com isso, de dar uma explicação determinista satisfatória da regularidade estatística (POPPER, 1956/1988).

2.2.2. Interpretação propensional versus freqüencial

Nesse contexto, a interpretação propensional da probabilidade apresenta-se como uma alternativa à interpretação freqüencial (POPPER, 1956/1988). Em primeiro lugar, a teoria propensional discute a probabilidade de eventos singulares e não de tipos de eventos. Nesse caso, uma pergunta importante seria como explicar o fato de uma moeda sendo arremessada, agora, por exemplo, apresentar uma probabilidade de 50% de aparecer “coroa”? Sabemos que em uma teoria freqüencial essa instância singular é explicada como sendo um membro de uma seqüência de lançamentos, e a freqüência relativa dentro dessa seqüência é ½.

Diferente disso, Popper (1957/1983b) atribui a probabilidade às condições do arranjo experimental, e não à freqüência na seqüência de eventos. Para Popper, todo arranjo experimental é susceptível de produzir, mediante a repetição do experimento, uma seqüência com freqüências que dependem do arranjo experimental: “elas [as probabilidades] caracterizam a disposição, ou a propensão do arranjo experimental a engendrar certas freqüências características quando o experimento é freqüentemente repetido” (POPPER, p. 202). O fato de a probabilidade ser considerada uma propriedade das condições experimentais, e não da seqüência de eventos, é o que distingue a interpretação propensional da interpretação estatística da probabilidade5.

Em segundo lugar, de acordo com a teoria propensional, as condições experimentais não fixam de forma absoluta as condições iniciais, deixando o sistema aberto. E

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Nesse ponto, podemos entender a afirmação de Popper (1957/1983b) de que a propensão é uma propriedade relacional do dispositivo experimental. Arranjos experimentais diferentes geram propensões diferentes. Por exemplo, observa-se que a probabilidade de ocorrência do número 6 de um dado viciado é ¼. Essa probabilidade não é uma propriedade do dado viciado per se, mas do arranjo experimental. Se esse dado fosse colocado em um

campo gravitacional fraco, o peso adicional em uma das faces do dado não seria relevante, e a probabilidade de ocorrer 6 poderia diminuir para 1/6. No caso de um campo gravitacional mais forte, o peso faria mais diferença podendo aumentar para ½ a probabilidade de ocorrência do número 6.

a cada uma dessas possibilidades deixadas em aberto realiza-se certa propensão ou probabilidade (POPPER, 1956/1988). Assim, o dispositivo experimental estabelece as probabilidades de cada resultado individual da experiência, ou as propensões para obter certos resultados.

Levando em consideração esses dois aspectos, podemos dizer que o arremesso da moeda pela máquina estabelece cursos alternativos de ocorrência de eventos (“cara” ou “coroa”), que já possuem uma probabilidade real de ocorrência da ordem de 50%. Desse modo, a probabilidade de aparecer “coroa” com a moeda sendo arremessada, nesse instante, é tão genuína quanto a probabilidade de cair “cara”. Sob esse prisma, a propensão de ½ de ocorrência de “coroa” é uma propriedade explicada não só pelas características físicas da moeda, e da máquina que a arremessa, mas também, e principalmente, pelo estado do mundo. Assim, a probabilidade é entendida como uma medida de propensão do mundo a se desenvolver de uma dada maneira (MILLER, 1995/1997, p. 166). (Esse tratamento da probabilidade remete para uma discussão ontológica que será feita de modo mais pormenorizado no capítulo seguinte.)

Desse modo, o indeterminismo explicaria a estabilidade estatística por meio de propensões estáveis. No limite, a interpretação propensional sugere que o indeterminismo não é incompatível com a regularidade, ao mesmo tempo em que não exclui as variações ou irregularidades do sistema: “propensões prometem fornecer o tão necessário ‘ponto médio entre o acaso e a necessidade absoluta’” (MILLER, 1995/1997, p. 173).

Na linguagem das propensões, podemos dizer que o indeterminismo é a tese que afirma que os eventos têm propensões a ocorrer de uma dada maneira. Dito de outro modo, um dado sistema não fixa de maneira inequívoca a ocorrência de um evento, ele indetermina a ocorrência de outro evento estabelecendo uma propensão ou tendência de ocorrência.