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Indeterminismo epistemológico como princípio regulador da pesquisa científica

PARTE II – INDETERMINISMO

Capítulo 7: Indeterminismo Epistemológico

3. Indeterminismo epistemológico como princípio regulador da pesquisa científica

O debate entre determinismo e indeterminismo não parece ser decido com base em evidências empíricas. Como mencionamos no decorrer deste capítulo, descrições estatísticas ou probabilísticas e previsões imprecisas dos fenômenos podem ser interpretadas tanto de um ponto de vista de uma ontologia determinista quanto indeterminista. Sob uma ótica indeterminista ontológica, o indeterminismo epistemológico pode ser entendido como o correlato empírico do funcionamento do mundo. Nesse aspecto, a epistemologia indeterminista parece estar em sintonia com a ontologia indeterminista.

Contudo, o indeterminismo epistemológico também pode ser consistente com o determinismo ontológico. De uma perspectiva determinista ontológica, o indeterminismo epistemológico pode ser entendido como uma limitação temporária do estado de nosso conhecimento científico em apreender a totalidade dos determinantes dos fenômenos. Vale destacar ainda que, mesmo se houver um determinista cético o bastante para acreditar em uma limitação absoluta de nosso conhecimento, é logicamente possível que haja condições determinantes que atuam de maneira inexorável nos fenômenos, mas que escapam ao nosso

aparato cognitivo defeituoso. Por essa razão, o indeterminismo epistemológico não pode ser visto como evidência exclusiva a favor da verdade do indeterminismo ontológico.

Não obstante, o tratamento do indeterminismo epistemológico pode ser encaminhado sem o recurso a compromissos de ordem ontológica. Nessa acepção, o valor do indeterminismo epistemológico na ciência não seria aferido em termos da gama de indícios que poderia oferecer na tentativa de mostrar como o mundo funciona. Diferente disso, a sua importância é averiguada em termos de seu poder em orientar o pesquisador na interpretação e descoberta de novos fatos durante o processo de investigação científica. Aqui, o indeterminismo epistemológico é interpretado como um princípio regulador da pesquisa científica.

Sob essa ótica, o princípio indeterminista traduziria um conjunto de ações que aumentaria as chances de uma pesquisa científica ser bem-sucedida. Mas que conjunto de ações seria esse? Ora, o indeterminismo não se exime da procura por causas, só desconfia que essas causas sejam necessárias e suficientes, ou pelo menos suficientes, para a ocorrência de um dado evento. Além do mais, a pesquisa orientada pela suposição indeterminista, tal como aquela guiada pelo determinismo, também é consistente com o objetivo geral da ciência que é a busca por explicações dos fenômenos. Todavia, tais explicações se afastam do padrão dedutivo-nomológico. Trata-se de explicações baseadas fundamentalmente em leis que não são necessárias, exatas e coercitivas, mas que descrevem regularidades estatísticas ou probabilísticas. Uma ciência orientada pelo indeterminismo também pode privilegiar a previsão dos fenômenos da natureza, embora admita que esta não seja alcançada com precisão absoluta.

Até esse ponto não parece haver muita diferença entre os princípios normativos deterministas e indeterministas, uma vez que ambos podem prescrever a busca por leis, causas e explicação científica. A diferença parece residir no tipo de causalidade, leis e explicação que cada um almeja alcançar. Não obstante, uma diferença crucial é usualmente mencionada para justificar a superioridade do princípio determinista na ciência. Embora determinismo e indeterminismo possam ser entendidos como princípios reguladores da pesquisa científica, o determinismo gera otimismo e indústria (BENNETT, 1963). Em outras palavras, a diferença fundamental entre essas teses parece repousar em um aspecto estritamente psicológico da empresa científica: o papel motivacional que é atribuído ao determinismo, e negado ao indeterminismo (WILSON, 1958/1974). Desse modo, as objeções ao indeterminismo não se referem ao fato de que não se pode provar a verdade desse princípio, mas sim, ao fato de que

ele pode induzir ao desalento e desleixo na pesquisa científica. Mas será que o princípio indeterminista necessariamente desencoraja o pesquisador na sua empresa?

3.1. O papel motivacional do indeterminismo

Lidar com probabilidades, imprecisões e incertezas parece fazer parte da rotina tanto de deterministas quanto de indeterministas. A questão é como se posicionar diante dessas supostas “falhas”.

Ora, o determinista encara os desvios de leis causais universais como um desafio para o aperfeiçoamento de sua teoria e aparatos de medidas. Frente à variação e irregularidade, o determinista não desanimaria, pois há uma causa suficiente, e talvez necessária, para toda e qualquer ocorrência de um dado evento, que precisa ser descoberta. Com efeito, o novo, o diferente, justamente por ser resultado da ignorância de todas as causas, estimula a busca incessante por outras leis causais. Além disso, admite-se que o determinista adota uma postura mais modesta diante da natureza, pois reconhece que há causas que ainda lhe escapam. Temos, aqui, a imagem de um pesquisador humilde, otimista e resiliente.

Diferente disso, sob a ótica do determinista, o seu adversário, o indeterminista, parece se conformar diante das probabilidades, já que é o máximo que o mundo poderia lhe oferecer. No limite, isso sugere que o indeterminista deixaria de levar uma dada pesquisa científica adiante frente à persistência de alguma “falha” no experimento. Com efeito, o indeterminismo, embora possa até incitar a busca de causas ou leis, parece não ser capaz de encorajar uma postura audaciosa diante do novo. Desse modo, justificar os desvios de leis gerais apelando para a suposta probabilidade do mundo (pois não se pode prová-la) parece ser incompatível com a própria curiosidade científica, que instiga a descoberta de novas causas que podem estar atuando no fenômeno. Além de conformista, o indeterminista é considerado assaz pretensioso, pois como sabe que não há causas desconhecidas que estão determinando os eventos? Encontramos, aqui, a figura de um pesquisador com aspiração à onisciência, embora apático e resignado.

Não obstante, se o determinismo adquire funções motivacionais importantes para um pesquisador por dotar suas atividades científicas de um significado fundamental (por exemplo, o de que todos os eventos têm causas suficientes para sua ocorrência), por que indeterministas (tais como Peirce, Popper, Bohr e Heisenberg) são aparentemente motivados sem tal significado?

Alguns indeterministas saem em defesa própria. Eddignton (1932), por exemplo, argumenta que o indeterminista não merece a pecha de arrogante ao dizer que a

probabilidade não é ignorância das causas, e conta uma anedota para ilustrar o ponto. Um eminente arqueólogo chamado Lambda descobriu uma antiga inscrição grega, na qual havia um registro de que um príncipe estrangeiro, cujo nome era Kαν ης, tinha se estabelecido com sua tribo em regiões helênicas. A descoberta desse nome era de suma importância, já que poderia sugerir relações de parentesco entre nações distintas.

Ávido por essa descoberta, o arqueólogo procurou na Enciclopédia Ateniense nomes com as iniciais C e K e encontrou o registro de Cânticos, que ele leu como sendo o “filho de Salomão”. Eis a revelação do mistério: a antiga inscrição era, na verdade, o nome do príncipe judaico Cânticos. Essa descoberta teve importantes conseqüências para as relações diplomáticas entre Grécia e Palestina. Em uma época em que se tentava selar um acordo amigável entre as respectivas nações, o Primeiro Ministro da Grécia, em um pronunciamento eloqüente, fez alusão à recente descoberta histórica das relações de parentesco entre os dois povos.

Tempo depois, Lambda consultou novamente o verbete da Enciclopédia e reparou no erro que tinha cometido: ele tinha lido equivocadamente “Canção de Salomão” (Song of Solomon) por “Filho de Salomão” (Son of Solomon). Em seguida publicou o engano, que supostamente colocaria em xeque a “teoria de Cânticos”. Contudo, não foi isso que aconteceu. Gregos e palestinos continuaram a acreditar no seu suposto grau de parentesco. Incomodado com a situação, o arqueólogo reclamou com o Primeiro Ministro da Grécia que insistentemente recorria à teoria de Cânticos em seus discursos. Em resposta, o ministro disparou: “como você sabe que Salomão não tinha um filho chamado Cânticos? Você não é onisciente.” Considerando as aventuras matrimoniais de Salomão, o arqueólogo, com sabedoria salomônica, calou-se.

O determinista, ao questionar o indeterminista sobre a possibilidade de atuação de outras causas, supõe adotar uma postura mais humilde em relação ao conhecimento científico do que seu adversário. O indeterminista, tal como o professor Lambda, é acusado de reivindicar onisciência. Todavia, para Eddington (1932), mais arrogante é aquele que tem a pretensão de enumerar todas as coisas que podem existir sem que se tenha o conhecimento delas. No contexto dessa discussão, os comentários de Landé (1958/1974) sugerem que a crença no determinismo parece estar relacionada a uma visão de homem auto-suficiente ou onipotente, o que supostamente enfraqueceria a imagem de humildade do determinista declarado:

Fui forçado, embora com relutância, a entrar para o partido do indeterminismo puro e simples. Confesso, entretanto, que esse é um partido de renúncia, com um credo puramente negativo. A maioria de meus partidários inclusive eu próprio sofre de um

complexo de culpa, que nos atrai em direção a nossa antiga paixão, o determinismo. Esse amor pode ter suas raízes numa sensação de sermos, nós mesmos, os demônios capazes de iniciar deliberadamente as cadeias deterministas. Em outras palavras,

pode ser que nós acreditemos num determinismo estrito porque achamos que

possuímos o livre-arbítrio – hipótese psicológica um tanto paradoxal (p. 85).

Voltando às outras designações, o determinista pode acusar o indeterminista de que sua crença na probabilidade e complexidade do mundo contribui para o fim do progresso da ciência. Isso porque não mais se inquiriria sobre eventuais causas ocultas, alegando que é do feitio da natureza nos surpreender e nos atormentar. Ora, o indeterminista pode se valer de argumento semelhante: a crença no determinismo também não poderia culminar na paralisação da ciência quando o determinista conseguir divisar todas as causas dos fenômenos? Se lograsse o controle e a previsão absoluta dos eventos, por que ir mais além? Assim, a natureza surpreenderá o determinista até que descubra todas as suas leis e causas inexoráveis, depois disso, seria o fim da ciência pelo esgotamento de descobertas?

Todavia, um determinista mais cético poderia argumentar que a natureza ainda o surpreenderia, embora tal surpresa significasse apenas o desconhecimento de todas as causas necessárias e suficientes. Embora reconheça tal limitação, o determinista é ainda motivado pela crença de que há causas por serem descobertas.

Novamente, voltamos à indagação: a crença na probabilidade desmotivaria o indeterminista diante de possíveis falhas no experimento? Acusar o indeterminista de condescendência é assumir que ele não está preparado para testar sua conjectura, e para testá- la ele terá que fazer o mesmo que o determinista terá que fazer, ou seja, procurar explicações para o evento em questão (BENNETT, 1963). Nesse sentido, o indeterminista não esmoreceria, mas ainda inquiriria uma explicação para o fenômeno.

Além do mais, comportar-se como se a natureza carregasse em seu bojo um mínimo de indeterminação poderia tornar mais desafiadora a elaboração de procedimentos e técnicas para “domesticar essa indeterminação” (ou seja, para procurar padrões de regularidade probabilística na natureza). Mas, talvez, torna-se ainda mais interessante, em alguns momentos, maximizar essa indeterminação de maneira a produzir mais variação, experimentando as possibilidades de interação entre os eventos da natureza.

Com efeito, o indeterminista pode, isto sim, potencializar a variação na tentativa de criar um contexto propício para a observação de fenômenos nunca vistos, sobre os quais pode se debruçar na busca por leis probabilísticas. Desse modo, o indeterminismo pode encorajar uma prática científica não apenas eficiente, já que incita a busca por leis probabilísticas, mas também criativa, já que o novo não é visto como um desvio ou acidente

de leis causais universais, mas como uma nova configuração da natureza que está em constante transformação.

Nessa linha de raciocínio, não poderíamos pensar também que o determinista justamente por buscar certezas estaria deixando de lado a novidade, o novo, na pesquisa? E, por outro lado, os indeterministas estariam propondo uma racionalidade diferente, em que colocariam a instabilidade no seio da própria ciência, e que o objetivo seria justamente pensar o incerto? Desse modo, não poderíamos dizer que a pesquisa conduzida sob a suposição indeterminista seria mais criativa, ou mais dinâmica?

Isso é o que sugere as palavras de Dewey (1922/1981a), parafraseando James quando este último discute como crenças filosóficas conduzem a diferentes modos de conduta. O que está em jogo, aqui, é o problema filosófico do Uno e do Múltiplo, mas podemos aproveitar essas palavras para pensar a controvérsia sobre o determinismo e indeterminismo:

Monismo é equivalente a um universo rígido no qual todas as coisas são fixas e imutavelmente unidas umas às outras, onde a indeterminação, livre-escolha, novidade, e o imprevisto na experiência não têm lugar; um universo que demanda o sacrifício da diversidade concreta e complexa das coisas em favor da simplicidade e nobreza de uma estrutura arquitetônica. No que diz respeito a nossas crenças, o Monismo demanda um temperamento racionalista conduzindo a uma atitude fixa e dogmática. Por outro lado, o Pluralismo, deixa espaço para a contingência, liberdade, novidade, e dá completa liberdade de ação ao método empírico, que pode ser indefinidamente estendido. Ele aceita a unidade onde a encontra, mas não tenta forçar a vasta diversidade dos eventos e coisas em um molde racional único (DEWEY, 1922/1981a, p. 42).