• Nenhum resultado encontrado

Variação, seleção e indeterminismo

PARTE II – INDETERMINISMO

Capítulo 7: Indeterminismo Epistemológico

5. Uma nota sobre o caráter conciliatório do indeterminismo epistemológico

5.2. Variação, seleção e indeterminismo

Há outra situação em que podemos vislumbrar o tratamento conciliatório de alguns conceitos e teses no indeterminismo epistemológico, a saber, as relações entre variação e seleção na teoria evolutiva darwinista.

De acordo com Mayr (2004/2005), a seleção natural envolve dois processos: a variação e a seleção propriamente dita. Desse modo, a variação é apenas uma etapa preliminar do processo evolutivo, que é seguida pela seleção. Sob esse prisma, Mayr afirma que não há incompatibilidade, mas sim, uma relação de cooperação entre variação aleatória e seleção: “nenhuma seleção pode ter lugar sem variação, e a variação não tem sentido sem seleção subseqüente (eliminação). O aparente antagonismo entre variação e seleção pode ser agora interpretado como um processo construtivo” (p. 173). Nesse sentido, podemos dizer que variação e seleção têm estatuto epistêmico positivo na explicação evolutiva: a evolução é explicada pela seleção de variações.

Mayr (2004/2005) diz ainda que na primeira etapa (variação) “tudo é acaso e aleatoriedade” (p. 152). Assim, na variação os fenômenos ao acaso prevalecem9. Já na seleção há um predomínio de fenômenos de “natureza anticasual” (MAYR, 2004/2005, p. 129). A seleção diz respeito aqueles eventos ou processos que acontecem de modo minimamente regular, e que participam da formação do zigoto até a sua reprodução bem-sucedida, selecionando as variações que contribuem para a sobrevivência do organismo em questão, em um ambiente específico. Na verdade, Mayr (1997/2008, p. 256), afirma que o processo de seleção pode ser entendido mais como “eliminação não-randômica” do que a “seleção do melhor”. Isto é: os indivíduos selecionados são simplesmente aqueles que continuaram vivos

9

Mayr (1997/2008) cita como a produção é variação é complexa: “os ácidos nucléicos podem sofrer mutações (mudanças na seqüência de seus pares de base), e o fazem copiosamente. Além disso, durante a formação dos gametas (meiose) nos organismos com reprodução sexuada, acontece um processo no qual os cromossomos dos pais são quebrados e reorganizados. A enorme quantidade de recombinação genética nos genótipos parentais garante que cada filho seja único. Durante o processo de recombinação, assim como nas mutações reina o acaso. Há toda uma série de etapas consecutivas durante a meiose nas quais o arranjo dos genes é em grande parte aleatório, fazendo com que a sorte dê uma grande contribuição para o processo de seleção natural” (p. 255).

depois que os indivíduos menos adaptados, ou com menos sorte, foram eliminados da população por condições ambientais específicas, combinadas com propensões fenotípicas.

Diante desse quadro, podemos dizer que a variação produz diversidade, irregularidade, estabelecendo uma pluralidade de itinerários evolutivos, já a seleção produz “ordem”, regularidade. Tendo em vista a relação de complementaridade entre variação e seleção, não se trata agora de dizer que a variação e seleção é a contraparte exata do acaso e da necessidade: “na discussão entre acaso e necessidade, a seleção natural emergiu como uma terceira solução...” (MAYR, 1997/2008, p. 103).

É certo que a variação corresponde predominantemente ao acaso, mas a seleção não é um processo determinista. Isso porque o acaso também participa da etapa de seleção: “o acaso cumpre uma função não só na primeira etapa da seleção natural, a produção de indivíduos novos e geneticamente únicos, mas também durante o processo probabilístico de determinação do sucesso reprodutivo desses indivíduos” (MAYR, 2004/2005, p. 131). Nesse sentido, a idéia de seleção, longe de se caracterizar por processos constituídos por leis ou regularidades inexoráveis, parece se referir a regularidades ou leis probabilísticas, típicas dos fenômenos biológicos.

Com efeito, a evolução consiste numa relação de complementaridade entre variação e regularidade (seleção) que é compatível com o indeterminismo epistemológico. Não só porque a variação tem um estatuto positivo na epistemologia indeterminista, mas também porque as regularidades probabilísticas, típicas dos processos de seleção, também fundamentam explicações científicas legítimas, no caso, a dos fenômenos biológicos.

6. Considerações finais

A idéia de uma fixação ambígua, que dá espaço para variações, probabilidades e incertezas, também parece estar presente na subscrição epistemológica do indeterminismo. Isso pode ser vislumbrado quando consideramos, por exemplo, a tese epistemológica do indeterminismo em termos da lógica ou estrutura das explicações científicas. Nesse caso, as explicações Indutivo-Estatísticas (I-E) e o modelo de Relevância Estatística (R-E) sugerem que a relevância explicativa de um dado fenômeno pode se dar em termos de leis ou relações estatísticas, que mostram a probabilidade de ocorrência do fenômeno em questão.

Na esteira dessa análise, a noção de previsibilidade também parece ser compatível com o indeterminismo. Entretanto, as previsões aduzidas não são certas e absolutas, como quer o determinismo epistemológico. A impossibilidade de previsões precisas pode ser entendida como resultado da impossibilidade de conhecermos de maneira

exata as condições iniciais de um dado sistema. Em alguns contextos, como no domínio atômico, essas limitações são insuperáveis, pois o próprio processo de medição e observação perturba o sistema de maneira indeterminada.

No tocante ao estatuto cognitivo das teorias científicas, mencionamos a possibilidade de uma teoria realista indeterminista: as teorias são instrumentos que não conseguem captar a totalidade da realidade, uma vez que todo conhecimento é falível e corrigível. Mesmo falíveis, as teorias são tentativas de descrever e entender a realidade – tentativas que podem ser submetidas a exame crítico com vistas a aferir sua falsidade. Nesse sentido, teorias indeterministas podem ser consideradas racionais (POPPER, 1956/1988, 1975).

No contexto da prática científica, o indeterminismo não parece promover desleixo e conformismo na pesquisa científica. Tal como o determinismo, ele também pode ser uma regra ou norma de conduta que encoraja o pesquisador na busca de causas, leis, explicações, previsões e teorias dos fenômenos – ainda que esse empreendimento possa se restringir a descrições aproximadas e provisórias.

Em linhas gerais, podemos dizer que o indeterminismo epistemológico sugere que o modo como podemos conhecer os fenômenos – seja explicando, prevendo, construindo teorias, ou incitando a descoberta científica – é razoavelmente limitado: nem tudo é preciso, absoluto, rigoroso, decisivo. Há imprecisões, incertezas, probabilidades, variações. Vale endossar que probabilidades, tendências, variações têm um estatuto epistêmico positivo em epistemologias indeterministas. Isso significa que é possível estabelecer leis, conceitos, explicações científicas genuínas com base no conhecimento de relações instáveis, prováveis, variáveis entre eventos ou tipos de eventos. Nesse sentido, a epistemologia indeterminista permite uma conciliação entre regularidade e probabilidade, regularidade (seleção) e variação, já que ambas participam da produção de um conhecimento científico legítimo.

PARTE III

DETERMINISMO, INDETERMINISMO E BEHAVIORISMO RADICAL

Depois desse longo percurso chegamos a algumas considerações importantes. Primeiramente, acampamos no terreno seguro do determinismo. Do ponto de vista ontológico, nos deparamos com uma visão de mundo em que os eventos estão fixos e imutavelmente unidos uns aos outros. Os eventos fixam um caminho único ou exclusivo. Aqui, temos leis necessárias que, se conhecidas, trariam o passado e o futuro ante aos nossos olhos.

Na perspectiva determinista epistemológica, temos, de um lado, concepções de ciência que identificam conhecimento científico com demonstração, leis universais, causalidade necessária e suficiente, ou, pelo menos, suficiente. Nessa ótica, o determinismo pode também ser interpretado como uma suposição prolífica, que faz avançar as ciências, não deixando o cientista esmorecer diante de eventuais falhas na pesquisa.

Por outro lado, nossas análises conceituais mostraram que ‘determinismo’ não implica necessariamente causalidade. Além do mais, o vocabulário da incerteza, da probabilidade, da imprevisibilidade, do caos e da complexidade também pode participar da trama conceitual do determinismo. Entretanto, essas noções têm apenas um estatuto epistêmico secundário e, portanto, não podem fundamentar leis e explicações científicas genuínas. Em outras palavras, elas servem apenas para sinalizar aquilo que a ciência, em seu estado atual, ainda não foi capaz de captar.

Já os capítulos sobre Indeterminismo contribuíram para questionar uma acepção de ‘indeterminismo’ como sinônimo de não-ciência ou irracionalismo – uma concepção advogada por Bunge (1959/1963) e, como veremos adiante, também defendida, em alguns momentos, por Skinner (1953). Cassirer (1956) já tinha alertado que ‘indeterminismo’ é um termo que “dá origem a um dos equívocos mais perigosos. Ele parece abrir as portas para um liberum arbitrium indifferentiae, um estado de liberdade que era dificilmente distinguível do capricho” (p. 89).

Com efeito, as análises empreendidas, até o momento, sugerem que o indeterminismo pode ser compatível com a empresa científica. Mais do que isso, o indeterminismo pode ser coerente mesmo com concepções de ciência mais tradicionais, que ditam a busca de causas, leis e previsão. Pode, outrossim, ser consistente com visões menos ortodoxas, que buscam explicar relações de dependência sem recorrer à nomenclatura causal, aludindo a leis probabilísticas, que possibilitam previsões, embora menos acuradas. Desse modo, muitos conceitos que pareciam ser exclusivos do determinismo como regularidade,

explicação, leis, previsão também podem ser conciliáveis com o indeterminismo, desde que elucidemos o tipo de regularidade, explicação, leis, previsão que está em jogo.

Diferente do determinismo, o indeterminismo ontológico e epistemológico atribui estatuto legítimo à probabilidade e à variação. Do ponto de vista ontológico, os eventos apresentam relações mais frouxas, seja porque há um elemento genuíno de chance no universo, seja porque os eventos apenas manifestam tendências ou probabilidades de ocorrência. De uma perspectiva epistemológica, as noções de probabilidade e variação podem fundamentar a formulação de leis e conceitos que caracterizam explicações científicas legítimas.

Os capítulos examinados até agora tinham como objetivo principal propor um instrumento de análise para discutirmos as teses deterministas e indeterministas no Behaviorismo Radical. Mais especificamente, distinguimos três níveis de análise para investigar os termos ‘determinismo’ e ‘indeterminismo’, a saber: conceitual, ontológico e epistemológico. Depois desse itinerário, podemos dizer que os capítulos anteriores formam uma matriz para aferirmos a discussão das teses deterministas e indeterministas no behaviorismo de Skinner. Vale destacar, contudo, que o trabalho não pretendeu esgotar toda discussão sobre ‘determinismo’ e ‘indeterminismo’, uma vez que a trama conceitual que envolve esses termos é extensa demais, e abarca noções que ultrapassam o escopo e os objetivos deste trabalho.

A despeito de enfatizarmos apenas algumas análises e conceitos, as questões que foram levantadas parecem ser suficientes para mostrar que a classificação de um dado sistema como determinista ou indeterminista não é tão fácil e simples. O behaviorismo de Skinner parece ser um terreno propício para realçar ainda mais essa dificuldade. Como já indicamos na Introdução deste trabalho, a interpretação determinista do behaviorismo skinneriano parece ser dominante. No entanto, há quem argumente que o texto skinneriano também abre o flanco para uma interpretação indeterminista (e.g. MOXLEY, 1997).

Uma vez que o objetivo inicial de Skinner (1931/1999e, 1953) era o estabelecimento de uma ciência do comportamento, os capítulos seguintes voltar-se-ão para algumas questões referentes ao determinismo e indeterminismo próprias do empreendimento científico, e de algumas visões-de-mundo que encorajam propostas de ciência. Eis algumas indagações que estão no horizonte dessa discussão: que conceitos são usualmente invocados quando Skinner fala de determinismo e indeterminismo? Como tais conceitos se posicionam em relação à epistemologia? A explicação skinneriana do comportamento se ajusta, por exemplo, ao modelo D-N ou I-E? Ou não se enquadra a nenhum desses modelos? É possível

fazer predições certas e absolutas do comportamento? No processo de investigação científica, o analista do comportamento é motivado apenas por suposições deterministas do comportamento? É possível dizer que Skinner se compromete com um determinismo ou indeterminismo ontológicos? A probabilidade é apenas um atestado de ignorância das causas do comportamento, ou é um elemento constitutivo do próprio comportamento? Em última análise, o comportamento seria um relógio perfeito, cujas eventuais falhas são entendidas como pura ignorância de seus mecanismos de funcionamento? Ou o comportamento seria uma nuvem com diferentes graus de “anuviamento”? Enfim, examinaremos o que o psicólogo norte-americano tem a dizer sobre essas questões.