CAPÍTULO I – TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO
1.2. Teoria Marxista da Dependência: núcleo teórico fundamental
1.2.3. Industrialização e superexploração: naufrágio das ilusões desenvolvimentistas, eixo
A industrialização das economias dependentes funcionou, por muito tempo, como o
horizonte utópico do reformismo na América Latina. Este campo alimentava a esperança que a
conformação de economias industrializadas pudesse superar o problema da transferência de
recursos para as economias centrais, já que, à primeira vista, equipararia suas condições no
mercado mundial. As particularidades impostas pela dependência a este processo, no entanto,
acabam por escancarar os limites do reformismo latino-americano e, mais importante, explicitam
o caráter revolucionário da superação desta condição das sociedades latino-americanas.
Inicialmente, é preciso esclarecer que a superexploração da força de trabalho na América
Latina assenta-se na busca desenfreada de lucros em situações econômicas que geram, de
maneira particular, superpopulação relativa (MARINI, 2005a). Isto constitui, no entanto, eixos
econômicos, prioritariamente, exportadores. Com efeito, o ciclo capitalista realiza-se aqui por
meio do comércio exterior. Enquanto nas economias centrais, a formação do mercado interno se
configurou como o eixo privilegiado de realização do ciclo do capital, nas economias
dependentes o consumo do trabalhador, cuja massa está excluída do mercado de trabalho, não
interfere no mesmo, determinando, apenas, a taxa de trabalho excedente extraído. A esfera de
41
circulação das mercadorias está “garantida” pela demanda externa e permite, por isso, a
depreciação do consumo da massa trabalhadora.
Se o desenvolvimento do modo de produção capitalista nos países centrais, como vimos,
está assentado no incremento da produtividade social do trabalho, esta dinâmica não corresponde
à realidade latino-americana. Não estamos diante de um modo de produção que precise assentar
seu desenvolvimento numa maior produtividade do trabalhador. Não se trata de baratear
mercadorias e incrementar salários, mantendo taxas de lucro estáveis, para consumo popular nas
economias dependentes. Pelo contrário, as condições periféricas colocam o trabalhador numa
posição, exclusivamente, produtora, pois não depende de seu consumo a realização da mercadoria
que o obreiro produz. O produtor, portanto, não consome o que produz na periferia e a
acumulação capitalista nestas terras pode desgastar a força de trabalho disponível a níveis
inimagináveis. A composição orgânica do capital, na América Latina, é, com isso, muito menor,
visto que o peso relativo de seu componente morto não aumenta – ou aumenta muito menos –
com o tempo.
Os três mecanismos [da superexploração] identificados […] configuram um modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador, e não no desenvolvimento de sua capacidade produtiva. Isso é condizente com o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas na economia latino-americana (MARINI, 2005a, p. 156)
Isto não quer dizer que o modo de produção capitalista, na América Latina, não recorre à
produtividade do trabalho no seu desenvolvimento capitalista. Significa, apenas, que este não é o
motor predominante da acumulação, como o é nos países centrais. É preciso dizer, assim, que a
manifestação da lei geral da acumulação capitalista na periferia do sistema capitalista difere da
estudada por Marx nos países centrais do século XIX. Isto não invalida sua análise, apenas,
impõe sua contextualização e o eixo de compreensão estrutural recai, com isso, sobre a
superexploração.
[...] o fato de que as condições criadas pela superexploração do trabalho na economia dependente tendem a obstaculizar seu trânsito desde a produção de mais-valia absoluta à mais-valia relativa, enquanto forma dominante nas relações entre capital e trabalho. […] Mais que meros acidentes no curso do desenvolvimento dependente, ou elementos de ordem transicional, esses fenômenos são manifestações da maneira como incide na
42
economia dependente a lei geral da acumulação de capital. Em última instância, é de novo à superexploração do trabalho que temos de nos referir para analisá-los. (MARINI, 2005a, p. 194)Este movimento tem, ainda, outras repercussões basilares. Como vimos, separa,
decisivamente, a produção, baseada na superexploração do trabalho, da circulação que tem, no
mercado internacional, seu eixo principal. A acumulação brasileira, ao deprimir, sistemática e
sem limites, a capacidade de consumo do trabalhador, define o mercado externo como saída
predominante para a produção, enquanto os consideráveis lucros gestados neste processo geram
uma capacidade de consumo, das classes dominantes, que não pode encontrar na produção
interna sua satisfação. Cria-se, com isso, uma cisão entre a esfera de consumo do trabalhador e
uma alta esfera de consumo – suntuosa ou de luxo – que só encontra satisfação pela importação
de produtos estrangeiros.
A separação entre o consumo individual fundado no salário e o consumo individual engendrado pela mais-valia não acumulada dá origem, portanto, a uma estratificação do mercado interno, que também é uma diferenciação de esferas de circulação: enquanto a esfera “baixa”, onde se encontram os trabalhadores – que o sistema se esforça por restringir –, se baseia na produção interna, a esfera “alta” de circulação, própria dos não- trabalhadores – que é aquela que o sistema tende a ampliar –, se relaciona com a produção externa, por meio do comércio de importação. (MARINI, 2005a, p. 165)
É sintomático que o início do processo de industrialização corresponda, exatamente, a um
período – este compreendido entre as duas guerras mundiais – em que a crise do capitalismo
internacional restringe a acumulação baseada na produção para o mercado externo e reorienta
aquela demanda da esfera alta de consumo para dentro. Neste contexto, desloca-se o eixo da
acumulação para a indústria, justamente, para atender este mercado interno preexistente – para
atender, portanto, a demanda luxuosa das classes dominantes.
Esta situação difere, radicalmente, do processo de industrialização dos países centrais.
Como é sabido, a separação do trabalhador dos meios necessários para produzir sua vida foi
responsável por assentar as bases para o assalariamento, mas a contrapartida imediata deste
processo foi a criação do consumidor. Nestas condições, o trabalhador passa a consumir com seu
salário aquilo que produzia de maneira independente no período anterior. Existe certa identidade,
portanto, entre produtor e consumidor nas economias centrais e há uma estreita relação entre
43
acumulação de capital e expansão do mercado interno.
A partir do fornecimento barateado – desde as economias dependentes – dos produtos de
subsistência do trabalhador da economia central, aumenta a parcela do salário que pode se
destinar ao consumo de produtos manufaturados. A indústria produz, portanto, bens de consumo
popular e tem interesse em barateá-los, já que passam a influenciar o valor da força de trabalho.
Estas são as raízes da necessidade de se aumentar a produtividade do trabalho nas economias
centrais.
Neste processo, cresce a extração de mais-valia e, com isso, sua parcela não acumulada
que gera uma demanda distinta daquela das classes populares. De fato, como nos países
dependentes, existem, nos países centrais, esferas distintas de consumo, no entanto, esta “alta”
esfera decorre do aumento da produtividade do trabalho. Marini esclarece melhor este processo:
A expansão da esfera superior é uma consequência da transformação das condições de produção e se torna possível à medida que, aumentando a produtividade do trabalho, a parte do consumo individual total que corresponde ao operário diminui em termos reais. A ligação existente entre as duas esferas de consumo é distendida, mas não se rompe. (MARINI, 2005a, p. 168-169)