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2.3 Creche: análise histórica e práxis pedagógica

2.3.2 Infância e criança: prolegômenos

A percepção abstrata que se tem de criança faz com que ao se pensar neste sujeito de pouca idade, a imagem que logo vem à mente é a do indivíduo que estando no período da infância está a brincar. Em realidade, esta é uma percepção não só equivocada, como também deslocado no tempo e no espaço. Historicamente este período conhecido como infância não é algo que sempre fez parte do universo da criança. Que sempre houve criança, isso é fato, mas infância é uma invenção da modernidade. O historiador francês, Philippe Ariès, declara que

Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo (ARIÈS, 1981, p.50).

Tenta-se, inicialmente, desconstruir a compreensão que aproxima criança e infância como conceitos sinônimos. Geralmente quando se fala em criança faz-se referência quase que imediata à infância; o que seria, então, infância e criança? Infância seria o período em que o ente humano teria para crescer e desenvolver-se antes de entrar no mundo de “tarefas” dos adultos. “A infância surge como uma época especial na vida de homens e mulheres – uma fase natural à existência humana, mas que precisa de um ambiente histórico-social para se realizar” (GHIRALDELLI JR., 2000, p.8). Fala-se então de sentimento de infância que não deve ser confundido com afeição:

Sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças; corresponde, na verdade, à consciência da particularidade infantil, ou seja, aquilo que distingue a criança do adulto e faz com que a criança seja considerada como um adulto em potencial, dotada de capacidade de desenvolvimento (KRAMER, 1992, p.17).

Em relação à época que este tipo de sentimento se estabelece, é preciso que sejam enfatizados dois aspectos que são considerados fundamentais para o entendimento do que vem a ser esse conceito:

1. Era extremamente alto o índice de mortalidade infantil que atingia as populações e, por isso, a morte das crianças era considerada natural. Quando sobrevivia, ela entrava diretamente no mundo dos adultos. A partir do século XVI as descobertas científicas provocaram o prolongamento da vida, ao menos nas classes dominantes. É importante acentuar que essa mortalidade continua hoje a ser regra geral para os filhos de classes dominadas em países de economia dependente, como o Brasil.

2. O sentimento moderno de infância corresponde a duas atitudes contraditórias que caracterizam o comportamento dos adultos até os dias de hoje: uma considera a criança ingênua, inocente e graciosa e é traduzida pela “paparicação” dos adultos; e outra surge simultaneamente à primeira, mas se contrapõe a ela, tomando a criança como um ser imperfeito e incompleto, que necessita da “moralização” e da educação feita pelo adulto (KRAMER, 1992, p. 17).

Será que esta percepção hoje é diferente? Outra alteração que ocorre no período está vinculada à família, que não é algo novo, novo é “o sentimento de família que surge nos séculos XVI e XVII, inseparável do sentimento de infância. O reduto familiar torna-se, então, cada vez mais privado e, progressivamente, esta instituição vai assumindo funções antes preenchidas pela comunidade” (KRAMER, 1992, p.18). O que é percebido, à primeira vista, é que

As noções de inocência e de razão não se opõem, elas são os elementos básicos que fundamentam o conceito de criança como essência ou natureza,

que persiste até hoje: considera-se, a partir desse conceito, que todas as crianças são iguais (conceito único), corresponde a um ideal de criança abstrato, mas que se concretiza na criança burguesa (KRAMER, 1992, p.18). Para sintetizar as ponderações a respeito do conceito de infância e também superar sua idéia estereotipada, note-se o que diz Kramer (1992, p.19), sobre o assunto:

A idéia de infância, como se pode concluir, não existiu sempre, e nem da mesma maneira. Ao contrário, ela aparece com a sociedade capitalista, urbano- industrial, na medida em mudam a inserção e o papel social da criança na comunidade. Se, na sociedade feudal, a criança exercia um papel produtivo direto (“de adulto”) assim que ultrapassava o período de alta mortalidade, na sociedade burguesa ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para um atuação futura. Este conceito de infância é, pois, determinado historicamente pela modificação das formas de organização da sociedade.

E de que criança se está falando? Como percebê-la nesse emaranhado de conceitos, sempre orientados a partir da visão do adulto, logo, uma visão assimétrica e desigual?

Partindo-se do princípio de que a relação dos homens com a produção da vida material o fator determinante, tanto das relações que os homens estabelecem entre si, quanto da produção de idéias, pode-se dizer que a relação primeira existente entre o adulto e a criança é econômica. Para o adulto, a criança é um ser economicamente não produtivo que ele deve alimentar e proteger. A criança é, portanto, financeiramente dependente do adulto (KRAMER, 1992, p.22). Nesta relação, onde o econômico subjaz o adulto de uma forma geral encara a criança como um investimento, esperando colher dividendos futuros, o que se percebe é que além de abstrata, tem-se a idéia de uma criança enquanto um ser homogêneo.

Tal significação econômica da infância fundamenta o valor atribuído à criança nos vários domínios da realidade social. A criança não tem, pois, um valor único, e não existe uma forma universalmente ideal de relação entre criança e adulto. Tratar da criança em abstrato, sem levar em consideração as diferentes condições de vida, é dissimular a significação social da infância (KRAMER, 1992, p. 23).

Esta criança anunciada termina se transformando no modelo que interessa à escola, modelo este que justifica o não aprender, pois se existe um culpado, este é sempre o aluno, nunca a escola, e consolida currículos e programas que não levam em consideração a diversidade social dos alunos.

Assim como não é possível universalizar o sentido de infância, a ponto de afirmar que todos, ou todas as crianças a vivenciarão, embora tenha-se instituído, formalmente, um tempo cronológico, sabe-se que ter ou não ter infância vai depender e muito da

classe social em que a criança estiver inserida, é claro que muitas das crianças “bem nascidas” têm a infância transformada em trabalho, com suas inúmeras obrigações, tipo: aulas de balet, de tênis, de natação etc. Enquanto os desfavorecidos estão nas sinaleiras das grandes cidades, nos canaviais, quebrando pedras; do mesmo modo, não se pode generalizar um sentido único de criança, com base nas premissas enunciadas, portanto, a percepção de criança e infância desenvolvida neste trabalho não perde de vista estes pressupostos.