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“A criança não é apenas um ser descuidado, vivendo da alegria dos brinquedos e das pequenas reações diante de dores sem importância humana; é também um drama, tem seu mistério impenetrável”.

A.L.G. Faria

Editado pela primeira vez em 1960, na França, a obra “História Social da Criança e da Família”, escrito por Philippe Ariès154, tornou-se referência obrigatória para todos aqueles que

intencionavam contribuir para a História da Infância, não tendo sido diferente para aqueles que, no Brasil, possuíam esse intuito. Em solo brasileiro, o livro seria publicado em 1981, impulsionando a pesquisa sobre a educação da puerícia que, até 2006, apontaria para 38 estudos entre artigos, dissertações e teses, produzidos na década de 1980, tendo alcançado a marca de 160

produções na década de 1990.155 Tais trabalhos nos possibilitaram conferir visibilidade e

legibilidade aos processos sociais de formação das diferentes infâncias brasileiras, em diversos momentos históricos e espaços educativos, permitindo-nos compreender melhor a infância nos processos de assoldadamento.

Segundo Ariès (1981) – que ajustou o foco de suas análises nos sentimentos e mentalidades da vida privada na Europa – durante a época medieval, nas sociedades européias, não existia um sentimento ou mesmo a consciência daquilo que denominamos por ‘infância’. Esta se trataria, pois, de um período consideravelmente curto e frágil da vida humana, em que o sujeito não consegue satisfazer por si mesmo em suas necessidades básicas, sendo, por isso, tratado enquanto incapaz. De acordo com o autor, até o século XIII, a arte medieval desconhecia a infância, sendo que os produtos culturais dos séculos XVII e XVIII, com destaque para as obras artísticas, apresentariam indícios de que as crianças eram concebidas como adultos em miniatura, sendo mantidas pouco tempo no âmbito da família.156

Tratar-se-iam, pois, de anos em que as pessoas passariam diretamente de bebês a homens ou mulheres jovens, não existindo diferença entre adultos e crianças, sendo estas educadas sem que fossem necessárias instituições específicas para tal fim. Tão logo o pequeno pudesse suprir suas necessidades físicas, era considerado apto a habitar o mesmo mundo dos adultos, confundindo-se entre eles.157 Não havia idade determinada para jogos, trabalhos, ocupações,

profissões, uso de armas, bem como para uma série de outras práticas sociais.158 O atual pudor

frente às crianças, em se tratando de assuntos sexuais159, não existia; sendo crianças vestidas

como homens e mulheres “tão logo pudessem ser deixadas as faixas de tecido que eram enroladas em torno do seu corpo quando pequenas”.160

Ariès (1981) procura mostrar ainda que a criança, então tida como fonte de distração e relaxamento para o adulto161, pouco a pouco passou a ter novas significações para os membros da

sociedade que, gradualmente, começam a organizar a família em torno das crianças, dando-lhes 155 Mais sobre esses dados: Cf. RIZZINI, Irene; FONSECA, M. T. Bibliografia sobre a história da criança no

Brasil. Marília: UNESP, 2001.

156 ARIÈS, op. cit., p.50. 157 Cf. Ibidem, p.10-11. 158 Cf. Ibidem, p. 55-56. 159 Cf. Ibidem, p. 125 passim. 160 Ibidem, p. 69.

uma importância desconhecida até então, sendo necessário diminuir o seu número para atendê-las melhor.162 Desse modo, o Estado passou a mostrar um interesse cada vez maior em formar o

caráter das crianças, o que pôde ser visualizado no aparecimento de uma série de instituições com o objetivo de separar e isolar a criança do mundo adulto, como a escola.163 “A criança adquire um

novo espaço dentro e fora da instituição familiar”.164

Por certo, os fatos referentes à infância francesa apresentados por Ariès (1981), não possam ser por nós considerados semelhantes aos que teriam se sucedido em território brasileiro, pois corremos o risco de gerar interpretações equivocadas, ao se tentar equiparar realidades distintas. Necessitamos levar em consideração as questões regionais e locais adversas desses países, bem como o fato dos mesmos terem se formado de maneiras díspares, apresentando, portanto, diferentes condições históricas, geográficas e, socioculturais, o que faz com que cada país apresente características singulares no que diz respeito à concepção de infância, às práticas caritativas e educacionais e aos sentimentos dispensados aos pequenos.

No passado brasileiro, Priore (2004) afirma que definiríamos em pouquíssimas palavras a criança, tendo sido os primeiros séculos de colonização marcados pela tremenda instabilidade e a permanente mobilidade populacional. Desse modo, “‘meúdos’, ‘ingênuos’, ‘infantes’ são expressões com as quais nos deparamos nos documentos referentes à vida social na América portuguesa. O certo é que, na mentalidade coletiva, a infância era, então, um tempo sem maior personalidade [...]”.165

Fazendo uma referencia ao século XIX, Marin (2005) acrescenta que a visão que se tinha sobre essa fase naquele momento, não concebia a mesma como um momento para se dedicar aos jogos, brincadeiras e à educação escolar, mas sim de aprendizagens dos conhecimentos considerados imprescindíveis para que o pequeno ser logo enfrentasse a vida adulta com os seus encargos.

Nesse sentido, se comparado ao período colonial, no contexto histórico que se seguiria a esse, seriam observadas pouquíssimas diferenças quanto à representatividade atribuída ao menor,

162 Cf. Ibidem, p. 11-12. 163 Cf. Id. Ibidem. 164 Ibidem, p.12.

165 PRIORE, Mary Del. “O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império”. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das Crianças no Brasil. 4ª ed. – São Paulo: Contexto, 2004, p. 84.

podendo a mesma ser observada nos códigos jurídicos vigentes na época, as Ordenações Filipinas, nas quais os menores de 25 anos – reduzida a 21 anos em 31/10/1831 – eram tratados como ‘inábeis’ e enquadrados junto a ‘loucos’, ‘dementes’, dentre outros incapazes de responderem por seus atos. 166 Quanto a apresentar a infância brasileira dos oitocentos, Leite

(2003) nos informa:

Trata-se da reconstrução de um período de vida (que foi e continua a ser extremamente variável) vivido por personagens que acrescentam às diferenças de cor, condições sociais e capitais simbólicas muito diversas. Esse recorte é suprido pelo contexto de relações familiares ou comunitárias de onde e com quem os indivíduos foram observados ou descritos.167

Mauad (2004) acrescenta ainda que:

Diferentes discursos produzidos pelo universo adulto enquadraram a criança e o adolescente, determinando os espaços que eles poderiam freqüentar e estabelecendo os princípios e conceitos norteadores do seu crescimento e educação. Paralelamente, era rotina do mundo adulto que ordenava o cotidiano infantil e juvenil, por meio de um conjunto de procedimentos e práticas aceitos como socialmente válidos. O século XIX ratifica a descoberta humanista da especificidade da infância e da adolescência como idades da vida [...].168

Assim, os meninos deveriam aprender, desde a mais tenra idade, um ofício para se tornarem capazes de garantir o próprio sustento e o da família que constituiria no futuro; enquanto as meninas receberiam a formação necessária para serem mães e esposas exemplares, sendo, por isso, desde cedo exigido das mesmas atitudes de mulher adulta (saber portar-se diante dos outros, sentar-se, vestir-se, caminhar, etc.).

Dentro desse enredo, no entanto, pudemos perceber por meio de leituras a textos que versam sobre o tema, que demarcar as fases da vida se trataria de uma tarefa bastante confusa e fluida, pois diferentes autores expuseram sobre o assunto das mais variadas maneiras. Assim, utilizando-se de dicionários brasileiros do século XIX, Schueler (2001) teria conseguido delimitar alguns dos significados para as diferentes fases da vida humana correntes nesse período, da seguinte forma:

O tempo da infância ou ‘meninice’ terminava aos 7 anos, em geral idade do ingresso nas escolas públicas, nas aulas de catecismo para a primeira comunhão ou em atividades de

166 Cf. Ord. Lº. 4o. T.102. 167 LEITE, 2003, op. cit., p. 26.

168 MAUAD, Ana Maria. “A vida das crianças de elite durante o Império”. In: PRIORE, Mary Del (org.). História

aprendizagem. Dos 7 aos 12 o indivíduo vivenciava o período denominado puerícia, e dos 12-14 aos 21-25 anos de idade, a adolescência. Desta etapa em diante, a idade adulta. 169

Existia, porém, segundo Mattoso (2004), uma delimitação diferente para a infância escrava que aos 7 anos de idade já teria saído dessa fase, ingressando compulsoriamente no mundo do trabalho; situação que o diferenciaria da criança livre, para quem a meninice poderia ser estendida até os 12 anos, para meninas e 14 para meninos, quando normalmente assumia responsabilidades como freqüentar a escola, exercer atividades econômicas,etc.170 Todavia,

contradizendo algumas informações da autora, pudemos verificar que livres ou não, crianças eram postas a soldo aos sete anos, algumas mesmo antes dessa idade, acontecimento corroborado por Leite (1991) quando a mesma menciona que as Santas Casas de Misericórdia, por meio de suas Rodas de Expostos e Asilos, por ela mantidos, entregava as crianças para ofício sob regime de assoldadamento às sete primaveras completas.171

Sobre essa questão cronológica, Elias (1998) chama atenção para o fato do ‘tempo’ ser um símbolo cultural, uma extensão da experiência humana, cuja percepção sofreu transformações ao longo da história, juntamente com outras alterações na forma como o homem produziu outras categorias simbólicas para relacionar episódios e processos distintos como a forma de ‘tempo’; não sendo este apenas um conceito. Nas palavras do autor:

Para os homens que crescem no interior das sociedades como as nossas, talvez pareça óbvio que todo o mundo tem uma idéia de sua própria identidade como um ser vivo que passou da infância para a maturidade, que envelhece e que morrerá, mais cedo ou mais tarde. Esta representação de identidade pessoal como um continuum de mudanças, como uma individualidade que passa por um crescimento e um declínio, pressupõe um imenso patrimônio de saber [...] na falta de um longo desenvolvimento prévio do saber, os homens dificilmente poderiam perceber a uniformidade e a regularidade que marcam a referencia dos acontecimentos em toda a extensão que deles conhecemos hoje em dia.172

Dessa forma, a infância enquanto fase, ou seja, o ‘tempo da infância’ e suas delimitações etárias teriam sido categorias temporais criadas devido às necessidades socioculturais para diferenciar experiências inerentes a essa fase, não sendo estas peculiares a outros períodos da vida (fase adulta, fase senil, etc.). Assim, a civilização estabeleceria, por meio de processos de 169 SCHUELER, A. F. M de. “A Associação Protetora da Infância Desvalida e as Escolas de São Sebastião e São José”: educação e instrução no Rio de Janeiro do século XIX. In: MONARCHA, Carlos (org.). Educação da

infância brasileira: 1875-1983. – Campinas, SP: Autores Associados, 2001, p. 160.

170 Cf. MATTOSO, Kátia. “O filho da escrava”. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das Crianças no Brasil. 4ª ed. – São Paulo: Contexto, 2004.

171 Cf. LEITE, 1991, op. cit. 172 ELIAS, 1998, op. cit., p.56.

aprendizagem, que existem comportamentos e atitudes próprios a um sujeito no tempo da infância, condutas e aptidões singulares a etapa adulta. Essa diferenciação, por sua vez, seria assimilada pelo homem, num processo de autodisciplina que envolve o indivíduo, a construção de sua personalidade e, desse modo, a configuração social onde o mesmo está inserido. Em outras palavras, o conceito de infância, assim como a noção de ‘tempo’, seriam produtos do processo civilizador – por tanto, ainda inacabado – que se firmaram lentamente como habitus social.

Não seria correto, portanto, adentrar em outros movimentos históricos com a finalidade de compreender como a sociedade do período em questão educava suas crianças e, com base no sentido temporal que possuímos atualmente, afirmar que aqueles meninos e meninas pesquisados não tiveram infância. A infância, nessa perspectiva, precisa ser pensada enquanto uma construção simbólica, um símbolo necessário para caracterizar a condição do ‘ser adulto’. Conforme afirma Kuhlmann Jr.(1998), a infância é uma condição das crianças.173

Importa-nos destacar que não se trata apenas de uma questão cronológica. A infância não funda uma história e se retira dela. A experiência e infância não antecedem temporariamente à linguagem em cada ser humano e deixam de existir uma vez que ele acede à palavra, ou é acesso por ela.174

Destarte, em meio a tantas delimitações apresentadas, pudemos perceber que a infância concebida nos oitocentos era o símbolo personificado da irracionalidade, da obscuridão; um estado em que o sujeito era tido como desprovido de qualquer conhecimento; caracterizados como adultos em miniatura, ou seja, um ‘vir a ser’.

Não obstante, ressaltamos mais uma vez que, ao visualizarmos este período da vida como uma construção social, faz-se necessário que tentemos entender essas concepções, levando em consideração peculiaridades dos sujeitos analisados (como etnia, classe social, gênero, etc.), bem como as disposições sociais, políticas e econômicas nas quais estes se encontram, caso nosso objetivo seja apreender a História da Infância. Assim, no Brasil, a compreensão do ‘ser criança’ por nós apresentadas, vigoraria em meio a mudanças contextuais nas quais, lentamente, estas iriam transformar a forma como os menores eram concebidos e o tratamento dispensado aos mesmos pela sociedade de então. Desse modo:

173 Sobre essa discussão da infância enquanto condição da criança, sugerimos: KUHLMANN JR.(1998) e também: KUHLMANN JR., Moysés & FERNANDES, Rogério. “Sobre a história da Infância”. In: FARIA FILHO, L. M. de.

A infância e sua educação. Materiais, práticas e suas representações (Portugal e Brasil). Belo Horizonte:

Autêntica, 2004.

Se ao longo dos séculos XVII e XVIII afirmou-se a idéia de educabilidade da infância, os séculos XVIII e XIX iriam voltar-se para a relação educação e civilização[...] Voltava-se agora para a educabilidade dos selvagens, desde os sujeitos das camadas inferiores, advindos de um meio social que ainda não atingira os benefícios das luzes, até os sujeitos de outras culturas, ou mesmo daqueles que não tiveram contato com a cultura humana. Para esses autores, educar era civilizar.175

Sobre esse aspecto, o século XIX, de fato, merece ser considerado como o período em que o Brasil se firmou como nação, pois podemos observar que nesse momento, concretizaram-se novas formas de elaboração de identidades tanto individuais, quanto coletivas. Porquanto, dentro dessa realidade, foram visíveis também variações nas relações entre crianças e adultos, conseqüência dos últimos acontecimentos daquela sociedade civil. Nas palavras de Louro (2000):

Proclamada a Independência, parecia haver, ao menos como discurso oficial, a necessidade de construir uma imagem do país que afastasse seu caráter marcadamente colonial, atrasado, inculto e primitivo. É bem verdade que os mesmos homens e grupos sociais continuavam garantindo suas posições estratégicas nos jogos de poder da sociedade. No entanto, talvez fossem agora necessários outros dispositivos e técnicas que apresentassem as práticas sociais transformadas, ainda que muitas transformações fossem apenas aparentes. 176

Na segunda metade dos oitocentos, a crença no progresso e na ciência fez com que o conceito de civilização infligisse critérios relativos à necessidade de novas instituições sociais. Em nosso país, nos últimos anos da escravidão, os levantes e as rebeliões foram marcadamente registrados. Pairavam, não apenas na sociedade sergipana como no país, o clima de instabilidade, de incerteza, reforçando a idéia de que a abolição seria inevitável. De acordo com Eisenberg (1989), nos centros urbanos, emancipacionistas e abolicionistas debatiam suas idéias e operavam a favor da libertação dos homens escravizados, procurando estender sua atuação às zonas rurais. No parlamento, conservadores e liberais discutiam propostas de encaminhamento de abolição gradual. 177

Na Província de Sergipe, em meados da década de 1880, uma redução na confiança dos proprietários da região quanto ao futuro do regime servil, seguida de uma redução na compra de novos escravos, retratava a realidade daquele momento. Embora, um comportamento diferente se verificasse na Mata-Sul, onde se situava a cidade de Estância e, aparentemente, os proprietários 175 GOUVEA, Maria Cristina Soares de; JINZENJI, Mônica Yumi. “Escolarizar para moralizar”: discursos sobre a educabilidade da criança pobre (1820-1850). Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 11, n. 31, 2006, p.121.

176 LOURO, Guacira Lopes. “Mulheres na sala de aula”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no

Brasil. 3ª ed. – São Paulo: Contexto, 2000, p. 443.

de escravos fizeram uma aposta na sobrevida da escravidão, a realidade do fim do sistema escravista teimava em se fazer presente, sendo praticamente impossível de ignorá-la nos últimos anos do século XIX.

De tal modo, mesmo que destoasse cada vez mais do quadro histórico do momento, homens e mulheres de profissões não definidas, continuaram a utilizar a mão-de-obra escrava, fosse para sobrevivência econômica (alugando-os ou pondo-os ao ganho) ou para executar a inúmera gama de serviços pessoais: dar recados, fazer compras nos mercados públicos, cozinhar, lavar roupas e demais atividades domésticas. Segundo Silva (2002), para as famílias ricas, uma criadagem numerosa servia como sinal de elevado status, para as famílias menos abonadas uma ou duas criadas no máximo livrariam seus senhores e patrões de todo o trabalho manual.178 Como

podemos observar, extinguir toda a estrutura social da família patriarcal, juntamente com suas conseqüências político-econômicas, não seria algo que ocorreria de uma hora para outra, afinal tratava-se de uma estrutura dominante no Brasil desde a sua época colonial.

Dizia respeito a um momento em que os senhores eram os donos de escravos, das minas ou das terras, e esses meios de produção lhes conferiam o exercício dos domínios econômicos, político e social. Já os escravos eram classificados como coisas, mercadorias, peças que podiam ser submetidas a todas as relações decorrentes de propriedade, como a compra, a venda, a troca, o aluguel, o empréstimo, entre outras. Essas duas ‘personagens’ vigorariam durante muito tempo, embora o contexto fosse eliminando alguns desses adjetivos aos poucos, através de leis e decretos; os mesmos que contribuiriam para o crescimento de um segmento intermediário, existente entre a composição das camadas sociais de senhores e de escravos; composto por trabalhadores que não eram nem esses, nem aqueles. Nas palavras de Marin (2005):

Formavam uma camada de trabalhadores livres e pobres que se dedicavam à agricultura e à pecuária, em pequena escala, ou exerciam atividades autônomas e artesanais em fazendas, arraiais e cidades das Províncias brasileiras. Esse estrato compunha-se de homens e mulheres brancos, negros alforriados, índios catequizados e mestiços, cuja condição social era trabalhar para prover os meios de subsistência necessários a si próprios e à sua família.179

Dentro desse contexto, Oliveira (2005) ainda chama atenção para o fato da posse de escravos por pessoas pobres e remediadas no decorrer do século XIX, ser algo razoavelmente 178 SILVA, Maciel Henrique. As Múltiplas Identidades Femininas e o uso do Espaço Urbano do Recife no

Século XIX. História e Perspectivas, Uberlândia-MG, v. 25-26, 2002, p.171.

comum180, “atuando como um importante complemento na renda ao serem alugados, como

reforço de mão-de-obra das quitandeiras, ou no trabalho doméstico181”. O Brasil, conforme já foi

visto no capítulo anterior, estava passando por um reordenamento do trabalho escravo.

Frente a essa realidade, as transformações ocorridas nos modos de produção – cada vez mais evidentes na segunda metade do período oitocentista – apontavam para o fato de que a população local, independentemente da camada a que pertencesse, teria que se adaptar ou, ‘se deixarem’ adaptar, ao novo contexto social, político e econômico, o que não excluía a população infantil daquele momento, principalmente, se esta havia nascido “desvalida da sorte”, a que poucos menores haviam sido agraciados.

Embora fosse numerosa a quantidade de pobres, pessoas consideradas livres, que viviam em péssimas condições de vida e que não encontrariam dificuldades para se tornarem força de trabalho, a “preguiça exacerbada”, segundo políticos da época, impedia que esses, assim, o fizessem. Dessa forma:

Não foi obra do acaso esta população infanto-juvenil nas ruas ser notada pelos homens e mulheres da virada do Império para a República. Motivado pelo capital acumulado por uma ascendente economia agrário-exportadora, pelas populações de escravos libertos expulsos do campo e pelos imigrantes vindos para o Brasil, o aumento dos contingentes humanos agravou as diferenças sociais dentro do espaço da cidade. No andamento desse processo de acumulação de capital aumenta a distância entre os beneficiados pelas riquezas e aqueles que recebem a menor parte dos lucros. Na hierarquia dos excluídos urbanos estão homens, mulheres, velhos e no extremo as crianças. Ocupando o ‘posto’ de