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Influência basagliana em Minas Gerais

2.3 Percurso de Basaglia no Brasil

2.3.1 Influência basagliana em Minas Gerais

As visitas de Basaglia a Minas Gerais também são marcantes para a história da reforma psiquiátrica desse Estado por possuírem relevante representatividade no início do processo de transformações realizado na política de saúde mental mineira (Goulart, 2014).

A rede pública de saúde metal de Belo Horizonte, criada em 1993, possui forte inspiração na experiência triestina de desinstitucionalização. Boa parte dessa inspiração se deu por meio do contato dos profissionais mineiros com a experiência de reforma ocorrida em Santos-SP, em 1989 [informação verbal] (Abou-Yd, 2014, 07 abril). As transformações na assistência psiquiátrica de Santos contaram com a colaboração da prefeitura da cidade e também com a colaboração de brasileiros recém-chegados da Itália, que tiveram contato com a experiência triestina. Assim, foi iniciado o processo de transformações na área da saúde mental em Santos (Nicácio, 1990).

Os profissionais em Minas Gerais, ao tomarem conhecimento das mudanças ocorridas em Santos, inclusive com o fechamento da Casa de Saúde Anchieta (hospital psiquiátrico particular da cidade), começaram a se mobilizar para conhecer de perto a experiência. Assim, em 1990, César Rodrigues Campos, coordenador da saúde mental da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG), propõe que se façam grupos de profissionais em Belo Horizonte para conhecer a experiência santista. Ao verem de perto as mudanças ocorridas em Santos, os profissionais mineiros voltaram com a certeza de que era possível fechar o manicômio e criar serviços que pudessem substituí-lo [informação verbal] (Abou-Yd, 2014, 07 abril).

A partir de toda essa apresentação sobre Franco Basaglia e sua participação na reforma psiquiátrica italiana e brasileira por meio dos autores que possuem estudos sobre os assuntos abordados, segue no próximo capítulo a análise realizada pela mestranda a partir do estudo do livro Scritti II, que se refere mais particularmente ao período de Trieste e da efetivação da desinstitucionalização. A análise da obra basagliana se revelou como uma verdadeira (re)descoberta e (re)encontro com o pensamento e práticas basaglianos.

3 ANÁLISE DO LIVRO SCRITTI II: (RE)DESCOBRINDO BASAGLIA

Para o desafio de resgatar a perspectiva de reabilitação para Basaglia proposto para esta pesquisa de mestrado, foi escolhido o livro Scritti II sobre o qual foi realizada uma leitura e análise crítica dos artigos que compõe esse volume.

Franca Ongaro Basaglia, esposa de Franco Basaglia e companheira da luta antimanicomial, ao organizar a coletânea que compõe a obra Scritti, dividiu os artigos em dois volumes. O primeiro volume, publicado em 1981, compreende o período de 1953 a 1968, com textos desde a Psiquiatria Fenomenológica, que marca as discussões realizadas por Basaglia ainda como professor na Universidade de Padova, até os textos elaborados durante a experiência no manicômio da cidade de Gorizia. O segundo volume, publicado no ano seguinte , tem como período os anos de 1968 a 1980, que compreende os escritos sobre o final da experiência goriziana, o processo de abertura do manicômio de Trieste, até o final com a discussão da nova lei de assistência psiquiátrica (Lei 180/1978) e da organização dos serviços externos.

Para esse volume analisado, Franca Basaglia seguiu (em sua maioria) uma ordem cronológica dos textos de acordo com o ano de publicação. São textos, em geral, que foram publicados em revistas, outros são apresentações orais em encontros e também há textos escritos para a introdução e prefácio dos livros de autores que foram importantes para a trajetória da reforma psiquiátrica italiana, como Maxwell Jones, Erving Goffman, Robert Castel4.

O segundo volume possui o total de 28 artigos de Franco Basaglia, sendo que quinze textos são de autoria exclusiva de Basaglia e se tratam, na maioria (dez textos), de apresentações orais (comunicações e uma entrevista) proferidas por ele e que foram transcritas. Os treze textos restantes do volume contam com a colaboração de demais autores: dez textos têm a contribuição de Franca Basaglia; um contou com as colaborações de Franca Basaglia e Maria Grazia Gianichedda; outro texto apenas com a colaboração de Maria Grazia Gianichedda, ambos os textos foram apresentados em comunicação oral; e um texto, além de contar com a colaboração de Maria Grazia Gianichedda, teve também contribuições de outros trabalhadores de Trieste.

4 Jones, M. (1970). Ideologia e prática da psiquiatria social. Milano: Etas-Kompass.

Goffman, E. (1969). Asylums. Torino: Einaudi.

Goffman, E. (1971). Il comportamento in pubblico. Torino: Einaudi. Castel, R. (1978). Lo psicanalismo. Torino: Einaudi

Todos os textos são de autoria de Franco Basaglia, porém nem todos são apenas de sua autoria conforme a descrição anterior. Essa informação demonstra-se relevante por mostrar que se trata de uma produção coletiva tanto do ponto de vista intelectual, quanto do prático, e não apenas de um autor. Não é somente uma produção realizada por Franco Basaglia. Principalmente, no que se refere à colaboração de Franca Basaglia em onze textos, que se faz presente no interior do volume do início até o final. Nos textos que fazem referência à experiência triestina, além de contar com a colaboração de Franca Basaglia, dois textos tiveram contribuições de Maria Grazia Gianichedda (socióloga) e um texto dos colaboradores de Trieste. Assim, fica demonstrado que não se trata de uma construção de pensamento e nem de atitudes práticas apenas de Franco Basaglia, mas se trata de algo coletivo, de múltiplos autores e atores sociais que participaram dessa experiência de reforma psiquiátrica na Itália abordada por este trabalho. Quando se fala aqui em Basaglia, se fala de um coletivo, de múltiplos, de um plural, e não apenas de algo singular.

Dessa forma, com a imersão cuidadosa na obra basagliana, em sua língua original (italiana) e a partir dessa leitura analítica, evidenciou-se também a descoberta de vários conteúdos que contribuíram para a “desmistificação” da figura do líder do movimento antimanicomial italiano, Franco Basaglia, dando origem ao que se intitula como (re)descoberta. Com o aprofundamento dos temas, das discussões e das referências que contribuíram para o desenvolvimento do pensamento e da prática que caracterizam o trabalho basagliano, ficou evidenciado que se conhece pouco sobre os caminhos percorridos até o épico momento do fechamento do manicômio de Trieste, em 1977. Apenas os resultados da famosa experiência triestina e os principais momentos históricos e heroicos que são bastante conhecidos pela maior parte de militantes e estudiosos da reforma psiquiátrica antimanicomial brasileira.

Durante a leitura, evidenciou-se uma produção extremamente crítica e de significante referência marxista que os autores trazem para as discussões na área da saúde, em especial da saúde mental. Destacando sempre as discussões de forma complexa e analisando a partir dos contextos econômicos, sociais e políticos, Basaglia, o principal autor, consegue ampliar a discussão da saúde mental e, assim, levantar uma grande diversidade de temas.

O foco inicial da leitura, que se tratava do resgate da concepção de reabilitação de Basaglia, foi se ampliando por conta da quantidade de outros temas relevantes e de extrema importância para as discussões atuais em saúde mental que, no decorrer da leitura, foram sendo revelados. Assim, demonstrou-se necessário, ao longo da leitura analítica, explorar também a discussão dos demais temas levantados pelo livro, além da concepção de

reabilitação – até mesmo para se poder entender a profundidade e a riqueza da produção basagliana.

Durante a análise do livro, foram encontrados diversos temas relevantes que se mostraram de extrema importância ao marcarem o pensamento e a prática basaglianos na década de 1970. Assim, foram organizados em três blocos intitulados como Ciência psi: o

doente mental5 como objeto; Psiquiatria e justiça; e Instituições psiquiátricas, que serão

apresentados e discutidos a seguir6.