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A influência liberal na obra de Assis Brasil: do liberalismo clássico ao pensamento democrático O pensamento clássico: das raízes do liberalismo ao nascimento da idéia liberal democrática O pensamento clássico: das raízes do liberalismo ao nascimento da idéia liberal democrática

CAPÍTULO II LIBERALISMO E REPÚBLICA

2. A influência liberal na obra de Assis Brasil: do liberalismo clássico ao pensamento democrático O pensamento clássico: das raízes do liberalismo ao nascimento da idéia liberal democrática O pensamento clássico: das raízes do liberalismo ao nascimento da idéia liberal democrática

A história clássica do liberalismo é a história de como os direitos se tornaram a precondição, a ocasião e a causa efetiva da soberania, de maneira que a soberania pareceu ser uma criatura dos direitos para cuja proteção ela existia. E pode-se dizer que as primeiras fontes modernas do liberalismo clássico podem ser caracterizadas como um corpo de formulações teóricas que defendem um Estado constitucional e uma ampla margem de liberdade civil, consistindo sua doutrina em três elementos, a saber, a teoria dos direitos humanos, o constitucionalismo e a economia clássica.

A principal luta formativa do liberalismo foi a reivindicação de direitos, quer religiosos, políticos ou econômicos, e de outra parte, a tentativa de controlar o poder político. Se a cultura moderna é normalmente associada a uma profusão de direitos individuais, pode-se dizer que historicamente a liberdade se relaciona com o advento da civilização moderna, permitindo assim concluir que as raízes do liberalismo podem ser encontradas na experiência histórica da modernidade.

Para Hegel, o cristianismo, com sua metafísica da alma, fora o berço histórico do princípio da individualidade, pois a liberdade grega teria sido uma conquista gloriosa, mas não chegou a desenvolver a individualidade humana. Já a Reforma, com Lutero, que soltara o demônio do individualismo, trouxe consigo uma forte afirmação da consciência individual, entretanto, como disse o próprio Hegel, mesmo no ocidente cristão a liberdade como individualidade não alcançou uma forma ativa até a Revolução e Napoleão. Seria só então que a dita sociedade civil, composta por indivíduos mundanamente independentes, recebeu sua legitimação apropriada, mais visivelmente no Código de Napoleão, o direito civil da Europa pós-revolucionária.

Mesmo assim, alguns ramos da Reforma prefiguraram o pluralismo liberal moderno e o seu respeito ao indivíduo heterodoxo, fazendo com que a tolerância religiosa, pedra angular do sistema protoliberal de Locke, antecipasse o que depois se transformou na defesa da liberdade de consciência: um argumento a favor da liberdade de opinião. Portanto, a luta pelos direitos religiosos alimentou a idéia de direitos individuais gerais, uma das próprias fontes do liberalismo.

Mas a principal força na legitimação conceitual da moderna idéia de direitos seria a modernização da teoria do direito natural. E neste sentido, o contratualismo de Locke representaria a apoteose do referido direito natural no sentimento individualista moderno.

Porém, depois de Locke, Rousseau (1712-1778)143 seria considerado o último jusnaturalista. Pode-se dizer que sua obra encerra a era dos filósofos do contrato social, já seu sistema se deriva desta doutrina. Entretanto, a solução que traz ao problema da constituição estatal é original, desviando-se dos caminhos já traçados por seus antecessores jusnaturalistas, cuja alternativa observada propunha ou a "anarquia no estado natural" ou a "servidão no estado civil".

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679)144 optara pelo Estado, logo, pela escravidão, pois acreditava que, entre o medo recíproco, no qual os homens estariam obrigados a viver no estado de natureza e o medo do soberano, era preferível o segundo, já que para ele os homens submetem-se com prazer à obediência de um soberano para sair da anarquia. E tanto a anarquia quanto o Estado eram dois males, sendo o segundo um mal menor. Construiu assim sua teoria de maneira a mostrar a necessidade da passagem de um estado de liberdade para um estado de servidão, pois num estado de guerra perpétua, o estado de natureza contradizia o instinto fundamental do homem, que é a conservação da vida. Para sair dele, precisava suprimi-lo; para suprimi-lo os homens renunciavam a todos os direitos naturais e, segundo um acordo recíproco, os atribuíam a uma pessoa ou a um grupo de pessoas às quais conferiam o poder supremo de comandar e comprometiam-se a obedecer em qualquer circunstância, exceto sob a de ser ameaçada sua própria vida. Os homens, portanto, compravam a segurança ao preço da escravidão.

A opção radical de Hobbes, por um dos dois termos da alternativa, não havia sido seguida pela maior parte dos jusnaturalistas, os quais tinham buscado, um meio termo. Para Locke, a solução mais freqüente tinha sido de considerar a passagem do estado de natureza para o estado civil, como uma espécie de integração que permitisse a instauração de um Estado que obtivesse os benefícios da sociedade civil sem perder os da sociedade natural. Diante da alternativa: ou liberdade sem segurança ou segurança sem liberdade, os jusnaturalistas esforçaram-se por encontrar uma fórmula de compromisso que permitisse à liberdade do estado de natureza ser compatível com a segurança do estado civil, e vice- versa. E concebiam o estado civil conforme aquele estado que se limitava a garantir, por meio da coação atribuída a um poder central, os direitos naturais. Enquanto a solução de Hobbes levava ao estado absoluto, esta era a fórmula ideológica do estado liberal.

Rousseau não segue o compromisso jusnaturalista, como Locke, mas retorna a Hobbes, pois entre estado natural e estado civil, opta pelo segundo. Contudo, desenvolve a teoria do filósofo inglês em

143 ROSSEAU, J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 144 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

"sentido democrático"145, pois quando pensa que entre estado natural e estado civil não existe meio-termo, nega que o estado civil seja incompatível com a liberdade.

Frente ao dilema hobbesiano, ou liberdade ou Estado, Rousseau utiliza-se Do Contrato Social para responder com uma síntese: e liberdade e Estado. A solução é buscada por Rousseau na fórmula do contrato. Num jusnaturalista como Locke o contrato que dá origem ao Estado não é o ato de renúncia total aos direitos naturais, mas um ato pelo qual os indivíduos, com o intuito de abandonar o estado de natureza, renunciam ao único direito de fazer justiça por si mesmos e conservam os direitos naturais fundamentais: vida, liberdade e propriedade. Em Hobbes, o contrato constitutivo do Estado é um contrato de renúncia e de transferência dos próprios direitos naturais em favor de um terceiro, o soberano.

Rousseau, por sua vez, ligar-se-á não ao liberal Locke, mas ao absolutista Hobbes: o contrato social, tal como o apresenta, é também um ato coletivo de renúncia aos direitos naturais, entretanto - e aqui se situa a grande diferença que lega a Rousseau a condição de ser o teórico mais conseqüente do Estado democrático - a renúncia não é feita em favor de um terceiro, "mas por cada um em favor de todos", ou seja, por cada indivíduo para si mesmo. Por conseguinte, tanto Hobbes quanto Rousseau concebem o contrato social como um contrato de alienação dos próprios direitos. Mas, enquanto para Hobbes a alienação acontece em favor do soberano, considerado como uma entidade distinta da multidão que o investe dos próprios direitos, pactun subiectionis, para Rousseau a alienação acontece em favor da comunidade inteira, ou do corpo político, do qual é manifestação suprema a "volonté générale"146, pactun societatis, que é exatamente a vontade dos indivíduos contraentes.

Diferentemente da renúncia de Hobbes, que leva a abandonar a liberdade natural para obter a servidão civil, a renúncia de Rousseau deveria levar a abandonar, sim, a liberdade natural, porém, reencontrando uma liberdade mais plena e superior, que é a liberdade civil ou "liberdade no Estado". Eis, então, as três fórmulas: de "liberdade do Estado", para Locke; de "servidão no Estado", para Hobbes; de "liberdade no Estado", finalmente para Rousseau147.

Rousseau assim expõe os termos deste problema: "encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes." 148

145 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Edunb, 1992, p. 46. 146 BOBBIO, op. cit., p. 46.

147 BOBIO, op. cit., p. 47.

Na expressão "permanecer livre como antes", está o núcleo fundamental do pensamento de Rousseau, segundo aquilo que tentamos deixar entender: a constituição do Estado não deve provocar sujeição para o indivíduo, porque, pelo contrário, este deve encontrar nele a mesma liberdade que possuía antes que o Estado fosse constituído. O sacrifício que se faz ao Estado é compensado pela segurança que o estado em troca dá aos direitos naturais.

Rousseau também faz o elogio ao estado civil assim constituído, como aquele estado no qual aconteceu uma mudança muito importante, tendo a justiça substituído o instinto, e mais precisamente, "o que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui"149

Para entender esta passagem do filósofo, faz-se necessário identificar, nas expressões "liberdade natural" e "liberdade civil", sentidos distintos: a primeira deve ser tomado como liberdade no sentido de ausência de leis, de estado isento de leis; a segunda trata-se de liberdade no sentido de submissão àquelas leis que cada um dá a si mesmo. O homem natural é livre porque não tem leis; o homem civil é livre porque obedece somente as leis que dá a si mesmo. Pois, se identificamos a faculdade de fazer leis para si mesmo com o conceito de "autonomia", poderemos dizer que o homem no estado civil é livre "porque é autônomo". No mesmo capítulo, Rousseau define rigorosamente a liberdade como autonomia: "a liberdade consiste na obediência à lei que prescrevemos a nós mesmos."

Esta definição, em certa medida, antecipa o pensamento de Immanuel Kant (1724-1804), considerado o filósofo da autonomia moral, porque trata a liberdade moral não como falta de leis, mas como obediência à lei fundamental da própria razão, e portanto como autonomia.

A autonomia é, pois, o princípio no qual se funda o estado democrático, uma vez que a heteronomia é o princípio do estado autocrático. Segundo este conceito de autonomia, Rousseau pode ser considerado o teórico do estado democrático, e sua fórmula política se diferencia da do estado liberal puro.

Logo, a diferença entre o estado liberal do tipo de Locke e o estado democrático pensado por Rousseau pode ser reduzida em última análise a uma diferença entre duas concepções de liberdade: o liberal entende a liberdade como "não-impedimento", ou seja, como a faculdade de agir sem ser dificultado pelos outros, e cada um então tem liberdade tão maior quanto maior for o âmbito no qual pode mover-se sem encontrar obstáculos; o democrático, todavia, entende a liberdade como autonomia, e cada um então tem liberdade tão maior quanto mais a vontade de quem faz as leis se identificar com a vontade de quem deve obedecer a essas leis.

No modelo liberal, o Estado corresponde tanto mais ao ideal quanto mais suas ordens forem limitadas (segundo a fórmula "liberdade do Estado"); já no modelo democrático, o Estado está mais próxima da perfeição quanto mais suas ordens exprimirem a vontade geral (segundo a fórmula "liberdade no Estado"). No primeiro caso, o problema fundamental da liberdade coincide com a salvaguarda da liberdade natural; no segundo, com a eliminação da liberdade natural que é anárquica, e na sua transformação em liberdade civil que é obediência à vontade geral. Desta forma, Rousseau pensou poder conciliar a instituição do Estado com a liberdade, visando a uma liberdade que não é a desordem dos instintos, mas a participação consciente e de acordo com a lei do Estado.

O contratualismo rousseauniano reivindicou a solução racional do problema político associando ao máximo de liberdade o máximo de poder, restituindo assim ao homem, com a nova hipótese contratual, a confiança perdida no Estado.

Constant citava os antigos, mas tinha diante de si um alvo bem mais próximo: Jean- Jacques Rosseau. De fato, o autor do Contrato Social havia inventado, não sem fortes sugestões dos pensadores clássicos, uma república na qual o poder soberano, uma vez instituído pela concordada vontade de todos, torna-se infalível e "não precisa dar garantias aos súditos, pois é impossível que o corpo queira ofender a todos os seus membros" [Rousseau, Du Contrat Social]. Não que Rousseau tenha levado o princípio da vontade geral ao ponto de desconhecer a necessidade de limitar o poder do Estado: atribuir a ele a paternidade da "democracia totalitária" é uma polêmica tão generalizada quanto errônea. Embora sustentando que o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto, Rousseau também sustenta que "o corpo soberano, da sua parte, não pode sobrecarregar os súditos com nenhuma cadeia que seja inútil à comunidade" [Idem]. Mas é certo que esse limites não são pré-constituídos ao nascimento do Estado, como quer a doutrina dos direitos naturais, que representa o núcleo doutrinal do Estado liberal. De fato embora admitindo que "tudo aquilo que, com o pacto social, cada um aliena de seu poder ... é unicamente a parte de tudo aquilo cujo uso é importante para a comunidade", Rousseau conclui que "o único corpo soberano é juiz dessa importância".150

No entanto, em relação ao pensamento de Locke e a origem do liberalismo, o que cabe ressaltar é que ao sacralizar a propriedade como direito natural anterior à associação civil e política, o filósofo inglês realçou uma tendência que já tinha quinhentos anos de idade: a fusão pós-clássica de ius e dominium, de direito e propriedade. Entronizando o direito de resistência, ele ampliou o princípio individualista de vontade e consentimento. E consentimento, em lugar de tradição, é a principal característica da legitimidade em política liberal.

Contudo, quanto mais fundo penetrávamos nas raízes dos direitos e do constitucionalismo, mais achamos que decisivos desvios conceituais haviam sido realizados naquele prolongado e ainda sombrio laboratório da cultura ocidental: a Idade Média. Azo de Bolonha, Acúrsio, Occam e Gerson mostraram-se quase tão importantes quanto os primeiros contratualistas e jusnaturalistas modernos - Grotius, Hobbes, Pudendorf, Locke e Rousseau. Não obstante, no pensamento político moderno, assim como na cultura moderna, não se tratou apenas de combinar a idéia de direitos e consentimento, ambas já presentes nos juristas e filósofos medievais. Tal combinação, por mais valiosa que fosse, tinha uma dimensão adicional, distintamente pós-medieval: uma visão da sociedade individualista, não-holística e não-hierárquica. Em última instância, é isso que separa o mundo de Locke do mundo de São Tomás de Aquino, de Ocam e de Gerson - e traz o contrato social dos primeiros pensadores modernos para dentro do nosso próprio universo liberal democrático.151

Locke devotaria o primeiro de seus Dois tratados sobre o governo152 a uma provocante refutação da tese do poder patriarcal dos reis, quando afirmava com veemência que a liberdade do povo era "natural", em realidade, um Dom de Deus ao homem. Quanto ao poder monárquico, restava-lhe a condição de ser mais necessário que natural, pois existia exatamente para assegurar a proteção das liberdades naturais dos cidadãos. Será no capítulo 15 do Segundo tratado que Locke fará a separação enfática entre "poder civil" dos dois outros tipos de domínio, o "poder paternal" e o "poder despótico". Conforme Grotius, no seu De iure belli ac pacis, no livro 2 capítulo 5, o dito poder paternal resultaria do nascimento, enquanto que o poder despótico, igualado com o domínio sobre escravos. Entretanto, com que se parece o poder civil, isto é, político para Locke? A resposta: com nenhum dos dois anteriores, pois o poder político brota inteiramente do consentimento.

Esta obra de Locke desenvolveu a um tempo, uma teoria do consentimento, que respondia pela legitimidade do governo, comparando o absolutismo à guerra social; e uma teoria da confiança, que mostrava como governantes e súditos deveriam compreender seu relacionamento recíproco.

Nenhum destes conceitos lockianos seriam posteriormente abandonados pela tradição liberal, pois inauguraram um novo telos, ou fim, em teoria política, por conseguinte, para a história das idéias liberais, a filosofia política de Locke foi a primeira influência decisiva que objetivou o estabelecimento das condições de liberdade.

Sociais primeiro e políticos depois, o Direito Civil e o Direito Consuetudinário definem os indivíduos como possuidores, investindo-os de direito e propriedade sobre as coisas e, em última análise (como vemos em Locke), sobre si mesmos. Eles definem a própria lei como uma entidade de dupla face, porque ela é, ao mesmo tempo, o direito do súdito e o domínio do príncipe.

Entretanto, pode-se dizer que

paralelamente à história do liberalismo, que é uma questão de lei e direito, existiu no decorrer de todo o início da modernidade uma história do humanismo republicano, na qual a personalidade era considerada em termos de virtude. Em princípio, o primeiro tinha a probabilidade de gerar a bourgeoisie, e o último, o vivere civile.153

E eis o dilema da modernidade: os ideais de virtude e comércio não podiam ser reconciliados entre si, enquanto o termo "virtude" fosse empregado no sentido austeramente cívico, ou melhor, no sentido romano. Restava redefinir a virtude, o que ocorreu na medida em que o indivíduo deixa o mundo rural- guerreiro da antiga cidadania, ou libertas, e entra no universo cada vez mais impregnado de transações do comércio e das artes, interagindo com outros seres sociais, com seus produtos, em relações e interações cada vez mais complexas e variadas, modificando e desenvolvendo mais e mais aspectos de sua personalidade. Comércio, lazer, cultivo, divisão do trabalho e diversificação de mão-de-obra combinaram- se para operar estas transformações e o indivíduo que não mais podia ter acesso direto à atividade e igualdade do governar e ser governado, e tinha de delegar o governo e sua defesa a representantes profissionais e especializados, ele, no entanto, se via mais do que compensado pela perda da antiga virtude, em troca de um indefinido e, talvez, infinito enriquecimento de sua personalidade.

Assim, este desenvolvimento progressivo dos múltiplos relacionamentos tanto com as coisas quanto com as pessoas, fundamentaria o etos social do Iluminismo.

Essas novas relações eram de natureza social, e não política, as capacidades que elas levavam o indivíduo a desenvolver não eram chamadas de "virtudes", mas de "maneiras", um termo no qual se combinavam o termo ético mores e o termo jurídico consuetudines, com o primeiro predominando. A psicologia social da época afirmava que os encontros com coisas e pessoas evocavam paixões e as refinavam, transformando-as em maneiras. Era preeminentemente a função do comércio refinar as paixões e polir as maneiras.

[...]Uma vez mais, a lei foi jogada contra a virtude, as coisas contra as pessoas, o império contra a república. As tensões entre virtude e comércio, entre antigo e moderno, ajudaram a fornecer à jurisprudência do século XVIII os complexos esquemas históricos e o historicismo nascente, que fizeram das Lectures on Jurisprudence de Adam Smith uma teoria do progresso da sociedade através dos quatro estágios da produção.

[...] mas a defesa da sociedade mercantilista, não menos que a defesa da virtude clássica era realizada com as armas do humanismo. O século XVIII nos apresenta o humanismo jurídico, ou uma jurisprudência humanista, cujas raízes estão na "ciência civil do Renascimento" de Kelley, que é empregada contra o humanismo cívico dos republicanos clássicos, de uma maneira para qual dificilmente se pode encontrar um paralelo no século XVI. A conseqüência disso foi a construção de um liberalismo que fez com que a autoridade do Estado garantisse a liberdade do comportamento social do indivíduo, mas não houve nenhuma intenção, de qualquer tipo, de

152 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 153 POCOCK, op. cit, pp. 92, 95.

empobrecer esse comportamento confinando-o à rigorosa asserção dos direitos individuais centrados no eu. Ao contrário: pelo menos até o final da década de 1780, era o mundo da antiga política que podia ser pintado como rígido e austero, pobre, porque sub-especializado. E o novo mundo do social e do sentimental, do comercial e do cultural, era pintado como abundante em alternativas para a antiga virtus e libertas, em grande parte, em decorrência do fascínio dos juristas pelo universo da res. Agora, por fim, um direito às coisas se tornava um caminho para a prática da virtude, já que a "virtude" podia ser definida como a prática e o refinamento das maneiras. Um humanismo mercantilista havia sido construído, e não sem êxito.154

A complexidade do pensamento liberal, dispondo de uma fusão entre a herança clássica e as demandas da modernidade de inspiração democrática, sob o ponto de vista do refinamento filosófico da