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Influências das mudanças conceituais e metodológicas nas práticas de

2. Capítulo 1 Fundamentação teórica

2.4 Alfabetizar no Brasil, hoje: mudanças recentes nas concepções e práticas e

2.4.2 Influências das mudanças conceituais e metodológicas nas práticas de

Historicamente o ensino da alfabetização foi caracterizado por uma excessiva especificidade, ou seja, “a autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico, em relação às demais aprendizagens e comportamentos na área da leitura e da escrita” (SOARES, 2003, p.9), considerando apenas uma faceta da alfabetização.

Até meados dos anos 1980, o ensino da alfabetização se dava a partir dos métodos sintéticos ou analíticos. Já que

a alfabetização considerada como o ensino das habilidades de “codificação” e “decodificação” foi transposta para a sala de aula, no final do século XIX, mediante a criação de diferentes métodos de alfabetização – métodos sintéticos (silábicos ou fônicos) x métodos analíticos (global) –, que padronizaram a aprendizagem da leitura e da escrita (ALBUQUERQUE, 2005, p.11-12).

Assim, ensinar a ler e escrever, nessa perspectiva, “era ensinar a “decodificar”, ou seja, traduzir em sons as letras ou sílabas que formavam as palavras, frases e textos” (ALBUQUERQUE, MORAIS e FERREIRA, 2010, p.14). Dessa forma, o sujeito deveria memorizar letras, fonemas e sílabas para ler e escrever qualquer palavra.

Todas as mudanças teóricas revisadas nas seções anteriores influenciaram diretamente o ensino da leitura e da escrita, em nosso país. Se antes a

aprendizagem da língua escrita era concebida como uma simples aquisição de um código, e por isso era considerada uma aprendizagem técnica; a partir dos estudos psicogenéticos a aprendizagem da língua escrita passa a ser considerada como a compreensão de um sistema de representação, tornando-se uma questão de aprendizagem conceitual.

Porém, “uma vez que as pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita não pretendem resultar em um método de alfabetização, chegando mesmo a negar a validade dos existentes para os novos fins” (MORTATTI, 2000, p.280), as práticas de ensino desenvolvidas nas salas de aula não conseguiam acompanhar totalmente essa “revolução conceitual”.

Diante disso, os anteriores métodos tradicionais de alfabetização, como os sintéticos (silábico, fônico, alfabético) e os analíticos (global, sentenciação, palavração), “que concebiam a língua como o aprendizado de um “código”, e a alfabetização como processos de “codificação” e “decodificação”” (ALBUQUERQUE e MORAIS, 2007, p.128), passaram a ser alvo de severas críticas, já que

se aceitarmos que a criança não é uma tábula rasa onde se inscrevem as letras e as palavras segundo determinado método; se aceitarmos que o “fácil” e o “difícil” não podem ser definidos a partir da perspectiva do adulto, mas da de quem aprende; se aceitarmos que qualquer informação deve ser assimilada (e portanto transformada) para ser operante, então deveríamos também aceitar que os métodos (como sequência de passos ordenados para chegar a um fim) não oferecem mais do que sugestões, incitações, quando não práticas rituais ou conjuntos de proibições. O método não pode criar conhecimento (FERREIRO, 2010, p.32).

Assim, em nosso país, a partir das grandes mudanças teóricas na alfabetização, especialmente em função das contribuições advindas da teoria da psicogênese e do letramento, houve, como afirma Soares (2003), uma perda da especificidade do processo de alfabetização, que pode explicar, em parte, o fracasso na aprendizagem e ensino da escrita. Essa perda de especificidade, que Soares (2003) chama também de “desinvenção da alfabetização”, é resultado de uma inadequada junção do letramento com a alfabetização, onde ocorre uma supervalorização do letramento em prejuízo da especificidade da alfabetização.

Porém, como já expusemos, adotamos a perspectiva de que alfabetização e letramento são ações distintas. Alfabetização é o processo pelo qual se adquire a

tecnologia da escrita alfabética e as habilidades para utilizá-la; já o letramento é o exercício autônomo desta tecnologia, nas situações de leitura e produção de textos (SOARES, 2010).

Nesse contexto de “desinvenção da alfabetização”, muitas práticas de ensino de alfabetização, nas últimas décadas, teriam se baseado em uma “concepção holística da aprendizagem da língua escrita, de que decorre o princípio de que aprender a ler e a escrever é aprender a construir sentido para e por meio de textos escritos, usando experiências e conhecimentos prévios” (SOARES, 2003, p.12), o que tem sobreposto as práticas de leitura e escrita à instrução direta e específica do sistema alfabético e da norma ortográfica.

Concebemos que o ensino da leitura e da escrita deve atender as diversas facetas da alfabetização, sem sobrepor umas às outras. Compreendemos, como afirmam Galvão e Leal (2005, p.26), que “a apropriação do sistema de escrita alfabética comporta especificidades que demandam um professor com capacidade de entender, por um lado, que a aprendizagem da leitura e da escrita se faz se o aluno reconhecer as relações entre fonemas e grafemas”. Por outro lado, exige também um professor que tenha o letramento como foco da ação pedagógica. Enfim, há de se encontrar um contraponto.

No plano da ação educativa, há de se compreender que o ensino da língua portuguesa se dá como reflexo da compreensão que o professor tem sobre a alfabetização, assim como sobre a educação e o educando, já que “nenhuma prática pedagógica é neutra. Todas estão apoiadas em certo modo de conceber o processo de aprendizagem e o objeto dessa aprendizagem” (FERREIRO, 2010, p.33).

Como o desenvolvimento teórico desse campo impôs questionamentos fortes aos métodos tradicionais de ensino, atualmente, existe em nosso país uma falta de consenso sobre o ensino da alfabetização, sobre o que é alfabetizar e sobre como fazê-lo.

Albuquerque, Morais e Ferreira (2008) realizaram uma pesquisa longitudinal com nove professoras do 1º ano do primeiro ciclo da rede municipal de Recife para analisar como estas docentes estavam transpondo as “mudanças didáticas” relacionadas à alfabetização para suas práticas de ensino e como “fabricavam” suas práticas pedagógicas cotidianas. Os resultados da pesquisa demonstraram que dois tipos de prática conviviam: o ensino sistemático da escrita, que contemplava cotidianamente atividades que levavam à reflexão sobre os princípios do SEA,

praticado por cinco docentes dessa amostra; e o ensino assistemático da escrita, que priorizava atividades de leitura e produção de textos e contemplavam muito pouco as atividades de apropriação do SEA, praticado pelas outras quatro docentes dessa amostra (ALBUQUERQUE, MORAIS e FERREIRA, 2008).

Segundo Albuquerque, Morais e Ferreira (2008), a prática das docentes se apoiava na forma como elas concebiam e compreendiam o processo de alfabetização; forma essa que estava muito ligada a sua história pessoal. E isso parecia refletir diretamente na fabricação das práticas das professoras, mais até do que os modelos cientificamente elaborados. O estudo demonstrou, portanto, que as transformações das práticas pedagógicas não se apresentavam da mesma forma que foram pensadas ou escritas, pois era na dinâmica da sala de aula que as professoras recriavam as novas orientações de ensino (ALBUQUERQUE, MORAIS e FERREIRA, 2008).

Todas as grandes mudanças conceituais e metodológicas ocorridas no campo da alfabetização modificaram e influenciaram também os livros didáticos (doravante LD) de língua portuguesa. Essas mudanças se deram, principalmente, a partir do final da década de 1990, com a institucionalização das avaliações do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), implementadas pelo MEC (MORAIS e ALBUQUERQUE, 2005).

Diante disso, Morais e Albuquerque (2005) realizaram um estudo investigando como os novos LD aprovados pelo PNLD se diferenciariam das antigas cartilhas e como estes novos LD estavam operacionalizando o ensino do SEA, bem como as influências das mudanças conceituais em tais LD. Para tal, foram analisadas duas cartilhas antigas (SARLI, E. G, e SARLI, E. Este mundo maravilhoso: cartilha de alfabetização. 15 ed. São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 1992; e ALMEIDA, P. N. Pipoca – método lúdico de alfabetização. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 1991), e dois novos livros recomendados (ROCHA, G. A. S. Português – uma proposta para o letramento – alfabetização. São Paulo: Moderna, 2003; e SETÚBAL, M. A.; LOMÔNACO, B. P. e BRUNSIZIAN, I. Novo letra viva – um programa de leitura e escrita – alfabetização. São Paulo: Formato, 2003.).

Os resultados demonstraram que as atividades de leitura eram as mais frequentes em todos os quatro livros. Porém nas cartilhas as leituras eram, de forma geral, de sílabas, palavras, frases e textos cartilhados, enquanto que nos livros recomendados predominava a leitura de palavras e de textos autênticos e de

diferentes gêneros. Quanto às atividade voltadas à apropriação do SEA, não eram muito frequentes nos quatro livros, mas estavam mais presentes nos livros recomendados. Além disso, as atividades de produção de texto só estavam presentes nos livros recomendados.

De forma geral, foi verificado que “uma possível maior influência dos estudos sobre o letramento no campo da alfabetização, em nosso país, poderia estar produzindo como consequência uma ausência de proposta de ensino sistemático da notação alfabética” (MORAIS e ALBUQUERQUE, 2005, p.232). Sendo assim, os autores defenderam que o ideal seria que os novos livros de alfabetização apresentassem propostas que contemplassem tanto a alfabetização quanto o letramento, e não sobrepor um ao outro.

Além das mudanças expostas nos livros, temos ainda evidências de que os professores não são passivos nas formas como utilizam esses novos LD para alfabetizar seus alunos. Silva (2005), que realizou uma investigação sobre como as professoras alfabetizadoras das escolas públicas utilizavam as propostas dos LDs fundamentados no construtivismo e aprovadas pelo PNLD. Para tal, a autora coletou depoimentos de docentes e supervisoras de sete escolas de Belo Horizonte e verificou que as professoras tendiam a utilizar os Lds, modificando suas propostas originais para

ora adaptar as propostas dos livros de alfabetização às suas experiências com o ensino da língua escrita, ora complementar a proposta do livro didático, tendo em vista as necessidades de aprendizagem que vão detectando em seus alunos e as limitações encontradas nas propostas pedagógicas dos livros (SILVA, 2005, p.187).

Sendo assim, o uso do livro didático não é realizado como um manual instrutivo, mas, sim, partindo de reflexões do docente que medeia a atividade.

Além disso, essa autora verificou que as professoras fazem a seleção de alguns componentes dos livros para utilização nas suas práticas de alfabetização. Nesse sentido, foram citados como presentes nas práticas três diferentes tipos de componentes dos livros. Uma delas foi o uso dos elementos ilustrativos para contextualização de palavras no desenvolvimento do método da palavração; outro foi o uso das atividades de leitura com foco no letramento; e, por fim, a preferência pelo trabalho com as unidades temáticas para desenvolver projetos didáticos (SILVA,

2005).

Ademais, a organização oficial do ensino também sofreu influências e, em 2006, com a aprovação da Lei n° 11.274, ocorreu a ampliação do ensino fundamental de oito para nove anos. Esta mudança objetivou garantir não só um maior tempo de convívio escolar, como maiores oportunidades de aprendizagem (BRASIL, 2006).

Como tais modificações exigem tratamento político, administrativo e pedagógico, o Ministério da Educação elaborou o documento Ensino Fundamental de Nove Anos: orientações para a inclusão das crianças de seis anos de idade, que se propunha a dar orientações pedagógicas no que se refere ao trabalho com as crianças de seis anos, bem como com as crianças das demais faixas etárias que compõem essa etapa de ensino.

Neste livro, Leal, Albuquerque e Morais (2006) fazem uma reflexão a respeito dos aspectos constitutivos de uma prática de alfabetização na perspectiva do letramento. Tais autores defendem que a escola contemple:

1. situações de interação mediadas pela escrita em que se busca causar algum efeito sobre interlocutores em diferentes esferas de participação social (circulação de informações cotidianas, como, por exemplo, por meio de escrita e leitura de textos jornalísticos; comunicação direta entre pessoas e/ou empresas, mediante textos epistolares (cartas, convites, avisos), circulação de saberes gerados em diferentes áreas de conhecimento, por meio dos textos científicos; orientações e prescrições sobre como realizar atividades diversas ou como agir em determinados eventos, mediante textos instrucionais; compartilhamento de desejos, emoções, valorização da realidade vivida, expressão da subjetividade, por meio dos textos literários, divulgação de eventos, produtos e serviços, mediante textos publicitários, entre outros;

2. situações voltadas para a construção e a sistematização do conhecimento, caracterizadas, sobretudo, pela leitura e produção de gêneros textuais que usamos como auxílio para organização e memorização, quando necessário, de informações, tais como anotações, resumos, esquemas e outros gêneros que utilizamos para estudar temas diversos; 3. situações voltadas para autoavaliação e expressão “para si próprio” de sentimentos, desejos, desejos, angústias, como forma de auxílio ao crescimento pessoal e ao resgate da identidade, assim como ao próprio ato de investigar-se e resolver seus próprios dilemas, com utilização de diários pessoais, poemas, cartas íntimas (sem destinatários);

4. situações em que a escrita é utilizada para automonitoração de suas próprias ações, para organização do dia a dia, para apoio mnemônico, tais como agendas , calendários,

cronogramas, entre outros. (LEAL, ALBUQUERQUE e MORAIS, 2006, p.71-72).

Além disso, ressaltam a necessidade de trabalhar, constantemente, com uma diversidade textual, para que as crianças tenham contato com textos da ordem do narrar, do relatar, do descrever, do expor e do argumentar.

No que se refere mais especificamente à alfabetização, os autores reiteram que este processo não deve mais ocorrer da forma mecânica e repetitiva de antes, onde os alunos eram levados a memorizar segmentos das palavras, sem compreensão nenhuma. Por outro lado, a escola deve cedo levar as crianças a compreender que a escrita possui relação com a pauta sonora, e que existem princípios que regem essa relação. Com isso, indicam atividades de familiarização com as letras, bem como as que levam o sujeito a vir a tratar as letras como classes de objetos substitutos; atividades com palavras significativas e freqüentes; brincadeiras com a língua, como trava-línguas, parlendas, poemas; e jogos fonológicos e de reflexão sobre o SEA.

No mesmo documento, Goulart (2006) trata da organização do trabalhão pedagógico, que é uma dimensão importante para o desenvolvimento político pedagógico da escola. Em sua reflexão, a autora aponta para a necessidade de que todos que integram a comunidade escolar, principalmente as crianças, devem participar da organização escolar, criando, assim, um espaço democrático. Segundo a autora, a organização da escola para as crianças das séries iniciais deve objetivar a inserção no mundo letrado. Assim, “o espaço da sala de aula deve ser um espaço de formação de leitores. Um espaço, portanto, com muitas leituras” (GOULART, 2006, p.93). Através disso, as crianças poderão começar a desenvolver conhecimentos sobre as funções da escrita, bem como conhecimentos textuais e de mundo.

Vemos, portanto, que as pesquisas iniciadas por Ferreiro e Teberosky (1991), bem como os estudos sobre letramento (SOARES, 1998) provocaram mudanças nas concepções de ensino, aprendizagem e aluno que buscaram influir tanto sobre a organização escolar como sobre os recursos utilizados e as práticas desenvolvidas nas salas de aula.

Nesse contexto, também a avaliação, que já vinha sendo reconceituada, assumiu novas propostas, quando examinamos, especificamente, o campo da

alfabetização.