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2 A CRIANÇA, A INFÂNCIA: REPRESENTAÇÕES

3.1 INFORMES BIOGRÁFICOS

Nascido em Quebrangulo, em 27 de outubro de 1892, numa família modesta do interior de Alagoas, Graciliano Ramos de Oliveira viveu, até sua adolescência, em fazendas e pequenas cidades do interior de Pernambuco e Alagoas, no sertão do Brasil. Nessa época, a seca era constante e os castigos advindos dela deixaram marcas profundas na vida do escritor. Sua alfabetização também lhe deixou sequelas de sofrimento, dado a dureza e a violência do regime familiar em que ele viveu. Segundo ele: “Aprendi a carta de ABC em casa, aguentando pancada”. Sua obra Infância, publicada em 1945, retrata fielmente essa violência.

Em Cartas, publicadas postumamente nos anos 80, por sua própria esposa, reproduz-se o depoimento do escritor sobre suas origens:

Nasci em 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo, Alagoas, donde saí com dois anos. Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha dum criador de gado ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em Buíque, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos. Ali a seca matou o gado – e seu Sebastião abriu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96. Da fazenda conservo a lembrança de Amaro Vaqueiro e de José Bahia. Na vila conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeira, padre José Ignácio, Felipe Benício, Teotoninho Sabiá e família, seu Batista, dona Marocas, minha professora, mulher de seu Antônio Justino, personagens que utilizei muitos anos depois. (RAMOS, 1981, p. 13)

Filho de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos, tendo quinze irmãos, sendo ele o mais velho, Graciliano escreveu sua obra (início do século XX) numa época em que o ar otimista da era das revoluções saía de cena, dando margem a uma atmosfera mais pessimista e bastante econômica de esplendor. Na Europa, período de indefinição e transformação social, iniciou-se um

processo de mudança de mentalidade, motivado pelas grandes descobertas científicas. A sociedade europeia, tipicamente capitalista e burguesa, abraçou o capitalismo como forma econômica o que trouxe mais miséria aos proletariados e acúmulo de capital a classe alta, conforme atesta Hobsbawn (2006). Já na literatura, o artista não via mais o romantismo como a fonte de explicação para suas inquietações. Ele se engana com sua própria arte e desconfia da realidade.

No Brasil do final do século XIX, os primeiros anos da República são anos de inquietude econômica, também. O Nordeste, castigado pela seca e destroçado pela guerra de Canudos (1896-1897), foi alvo de batalhas entre políticos e cangaceiros, os quais demandavam dos coronéis o pagamento pela proteção de suas fazendas. Na região Norte, do imenso território brasileiro, a borracha traz riqueza e prosperidade a uma região desconhecida pelo cenário mundial. Já no sudeste do Brasil, São Paulo é a cidade mais próspera e, a produção de café atrai imigrantes do país e do exterior, todos na esperança de conseguir trabalho e melhor qualidade de vida.

A literatura surge, então, como representação desses contrastes sociais e econômicos, embora é sabido que a literatura como fenômeno social, nem retrata a sociedade tal qual como ela é, tampouco ela testemunha a sociedade e a história de seu povo. Segundo Nicolau Sevcenko (1983):

O ponto de intersecção mais sensível entre a história, a literatura e a sociedade está concentrado evidentemente na figura do escritor. Eis porque uma análise que pretenda abranger esses três níveis deve se voltar com maior atenção para a situação particular do literato no interior do meio social e para as características que se incorporam no exercício do seu papel em cada período. Eles juntamente com as editoras, os livros, as livrarias, academias, confrarias e o público constituem o aspecto palpável, visível da instituição literária. (p. 246)

Assim, podemos afirmar que Infância, de Graciliano Ramos, se apresenta como uma excelente fonte documental que nos informa acerca dos primeiros anos de vida de seu autor em sua representação do que ele viveu, assim como das intenções do autor para com seu

trabalho. É razoável, nesse momento, não confundir ficção com autobiografia. Candido, em seu ensaio “A revolução de 1930 e a

cultura” (1989, p. 186) avalia o período: “Graças a isto, no decênio de

1930, o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um direito”, trazendo níveis de “aceitação” da escrita de alguns escritores, dentre eles Graciliano Ramos.

Sendo assim, a produção literária do final desse século se distribui e alguns escritores publicam obras sobre as diferentes regiões do Brasil, sobre os grandes centros urbanos, sobre o funcionalismo público, sobre as crianças, os sertanejos. Graciliano Ramos narra todos esses assuntos em sua obra, majestosamente, graças a sua vivência entre sertão, lugarejos e capitais.

De acordo com as palavras de Paul Ricoeur (2007, p. 416), o tempo decorrido torna-se um tempo que pode ser recuperado, pelo historiador, por meio da escrita memorialista, como um lugar de memória. Nesse sentido, essa escrita como lugar de refúgio da própria memória do escritor, em todas as suas dimensões, não nos leva somente ao que foi narrado, mas também nos desloca no tempo e no espaço, abrindo perspectivas as quais dão significado ao passado, pois o acontecimento vivido na realidade é infinito, ilimitado e se apresenta como chave de resposta para dar sentido ao antes e o depois. Da mesma forma, W alter Benjamin se refere a obra de Proust:

Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém esse comentário ainda é difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. (1994, p.37)

No Brasil, a literatura produzida entre 1902 e 1922 é considerada precursora do modernismo, sendo 1922 o ano da Semana de Arte Moderna, marco da chegada do Modernismo. Antes dessa época, a principal característica do romance brasileiro eram obras que tornassem o Brasil mais conhecido, se distanciando das classes sociais, alvo da maior parte das obras escritas, até então. Em meados

do Século XX, portanto, as narrativas se voltaram mais para os acontecimentos históricos que refletissem a história e os problemas da época, que fossem o retrato do Brasil daquele século. Surgiram, assim, os autores da geração de 1930, retratando questões sociais e ideológicas, que iam das mazelas da seca e miséria de seus habitantes à travessia dos retirantes de um nordeste devastador, enraizado na fome que alimenta a vida do sertanejo. Com relação a essa nova modalidade narrativa, Candido (1989) afirma:

É o caso do “romance do Nordeste”, considerado naquela altura pela média da opinião como o romance por excelência. A sua voga provém em parte do fato de radicar na linha da ficção regional (embora não “regionalista”, no sentido pitoresco), feita agora com uma liberdade de narração e linguagem antes desconhecida. Mas deriva também, do fato de todo o País ter tomado consciência de uma parte vital, o Nordeste, representado na sua realidade viva pela literatura (p.187).

Vemos, então, que o Brasil desse fim da primeira metade do Século XX, é marcado pela diversidade cultural e pela desigualdade social. É, portanto, a denúncia da realidade que cerca seu povo.

Na segunda metade do Século XX, a literatura brasileira vive uma espécie de acordo com as ideologias políticas e religiosas dando, assim, liberdade aos autores da época produzirem suas obras tendo como base histórica os horrores das duas grandes guerras. A literatura precisava, dessa forma, dar respostas aos muitos questionamentos dos “sobreviventes” que já não encontravam, na religião e na espiritualidade, razões para estar no mundo. Dessa forma, vê-se que as denúncias sociais são o cerne de Infância (1945), ano de início da era de Vargas. Portanto, naquela época não havia outra forma de expressar as distorções desses “horrores” senão através da literatura.

Historicamente, a revolução de 1930 surgiu exatamente como forma de protesto as oligarquias cafeeiras. Getúlio Vargas, sentindo-se ameaçado pelos movimentos de esquerda, resolve perseguir os manifestantes e foi nessa perseguição que Graciliano foi preso, em

março de 1936, em Maceió, sem culpa estabelecida, mas acusado de subversão. Em agosto, ainda na prisão, publica o romance Angústia. Foi libertado em 1937 (quase um ano após a prisão), já na cidade do Rio de Janeiro. Esse período serviu de tema e inspiração na vida de Ramos, levando-o a escrever Memórias do Cárcere, com publicação póstuma em 1953. Em uma carta enviada a sua esposa Heloísa, quando estava preso, Graciliano comenta sobre essa ausência de motivos para sua prisão: “Estou resolvido a não me defender. Defender-me de quê? Tudo é comédia e de qualquer maneira eu seria um péssimo ator”.

A palavra “opositor”, usada por Candido, definia os escritores dessa época:

Uma das consequências foi o conceito de intelectual e artista como opositor, ou seja, que o seu lugar é no lado oposto da ordem estabelecida; e que faz parte da sua natureza adotar uma posição crítica em face dos regimes autoritários e da mentalidade conservadora (1989, p.195).

Em 1941, a devastação da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) agravou-se após a destruição de Pearl Harbor. Outro fato que marcou, negativamente, o mundo, em 1945, foi o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Havia sido descoberta uma forma de o ser humano exterminar sua própria raça. A ciência acabara de cruzar a última fronteira ética. A literatura surge, nesse contexto histórico, mais intimista, procurando responder aos inúmeros questionamentos provenientes desses atos de atrocidades. Logo, as reflexões em torno do tema “estar no mundo” passam a definir a prosa literária dessa época e as obras de Graciliano Ramos, sobretudo

Infância e Vidas Secas, são exemplos claros dessa inquietude social.

As questões religiosas também entram em conflito, diante de tantos percalços sociais, sendo esses temas um dos elementos mais recorrentes retratados nas obras dessa metade do século XX. Com isso, os escritores dessa fase se utilizaram da prosa narrativa para denunciar uma realidade social que tolhia os direitos da classe social

menos favorecida, e vemos Graciliano como o maior representante dessa geração.

Assim como afirma Alfredo Bosi (1994), em História Concisa da

Literatura Brasileira, vemos que a visão realística expressada nas

obras de Graciliano é um retrato fiel dos acontecimentos de sua geração:

O realismo de Graciliano não é orgânico nem espontâneo. É crítico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta familiar ou grupal, introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível. E o romancista encontra no trato analítico dessa máscara a melhor fórmula de fixar as tensões sociais como primeiro motor de todos os comportamentos (p.402).

Para ilustrar essa afirmação de Bosi, destacaremos um trecho de ramos, em Vidas secas, o qual mostra essa realidade que as tensões sociais provocavam em meados do Século XX:

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala (RAMOS, 2008, p.9).

Vemos nesse trecho que Graciliano encontra uma maneira de retratar o impacto do mundo externo sobre o ser, em que o enredo é proveniente do contexto socioeconômico e o espaço onde o indivíduo se relaciona.

Em alguns trechos da obra de Graciliano Ramos, a exemplo de

Infância (2011), e no livro de sua filha Clara Ramos (1979), o pai e a

mãe dele foram claramente expostos, quanto as suas características pessoais (mãe: antipática, pai: duro), ao contrário de Charles Dickens,

cujos pais não foram, explicitamente, apesar das mágoas a ele causadas: “Minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois apelidos: bezerro-encouraçado e cabra-cega” (RAMOS, 2011, p.146). O trecho destacado abaixo, nos dá uma boa ideia dessa concepção que ele tinha de seus pais e que ele retrava, em suas obras, abertamente:

Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam, dois seres que me impuseram obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as finas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas – e os meus

receios esmoreciam. As grossas, muito rudes,

abrandavam em certos momentos. (...) o mundo era complicado. (RAMOS, 2011, p.14-15).

E, as descrições frias de suas lembranças amargas, seguem e vão além dos pequenos detalhes metafóricos estabelecidos e na dicotomia imagética entre “mãos finas e mãos grossas”. Agora, as imagens são da estética do todo, da entidade paterna e materna, de pessoas às quais sempre reivindicamos boas ações e cuidados. É, portanto, essa a descrição elaborada por Ramos, fazendo ainda a observação de que isso provém de uma ambiência cultural, em específico, da região nordeste, “da bárbara educação nordestina”.

Meu pai fora um violento padrasto, minha mãe parecia odiar-me, e a lembrança deles me instigava a fazer um livro a respeito da bárbara educação nordestina. (RAMOS, 1979, p. 27)

Essa relação de denúncia e exploração fica bem definida nas obras do autor e a narrativa Infância a projeta no decorrer de toda a obra, de maneira bem peculiar e “cortante”. Podemos dizer que são denúncias sociais universais excluindo o autor, portanto, do contexto regionalista que a linha histórica o classifica. Trata-se, então, da utilização de um “realismo bruto”. É, através da linguagem utilizada em sua ficção, que Ramos constrói seu olhar realista. Destacaremos,

abaixo, um trecho que nos serve de exemplo desse realismo bruto, onde o autor descreve “as pessoas comuns”, na obra Infância:

As pessoas comuns exalavam odores fortes e excitantes, de fumo, suor banha de porco, mofo, sangue. E bafos nauseabundos. Os dentes de Rosenda eram pretos de sarro de cachimbo; André Laerte usava um avental imundo; por detrás dos baús de couro, brilhantes de tachas amarelas, escondiam-se camisas ensanguentadas (RAMOS, 2011, p. 122).

Seus personagens são, portanto: homens conflituosos, solitários, povoados pelo tormento, resultados da destruição, em estados “crus”, na pura realidade, com seus suores e odores e com as marcas de seus trabalhos como as “camisas ensanguentadas” e com as manchas de maus hábitos como são os “Os dentes pretos de sarro de cachimbo”, da personagem Rosenda, em Infância (2011).

Publicada em 1945, época de sua filiação ao Partido Comunista, chamada por Rubens Braga de “Romance desmontável”, uma narrativa em que Eliane Zagury (1982) vê um “esfacelamento”, Infância é composta de 39 capítulos e, semelhante a Oliver Twist, foi publicada ao longo de mais de dois, como contos avulsos publicados em jornais. Essa obra foi claramente planejada pelo autor, conforme relatos em uma carta dele endereçada a sua esposa, Heloísa de Medeiros Ramos, de 28 de janeiro, de 1936:

Um dia desses, no banheiro, veio-me de repente uma ótima ideia para um livro. Ficou-me logo a coisa pronta na cabeça, e até me apareceram os títulos dos capítulos, que escrevi quando saí do banheiro, para não esquecê- los. Aqui vão eles: Sombras, o inferno, José, as almas, letras, meu avô, Emília, os astrônomos, caveira, Fernando, Samuel Smiles. (RAMOS, 1981, p. 157)

Dois anos depois da publicação de Infância, Insônia é publicada. Pouco antes de morrer, Ramos viaja com sua esposa à União Soviética e os

relatos dessa viagem são publicados em 1954, em outra obra póstuma,

Viagem.

Além dessas obras de Ramos, acima citadas, podemos ainda destacar a publicação de Caetés, em 1933 (sua primeira obra) e São

Bernardo, em 1934. Vidas Secas, publicado em 1938, é considerado

pela crítica como seu romance de maior importância, dado, principalmente, a sua abrangência de temas.

Adoeceu, gravemente, em 1952 e morreu, na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de março de 1953, aos 60 anos de idade.

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