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A opressão da criança em Graciliano Ramos e Charles Dickens

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM. ELIZABETE MARIA ÁLVARES DOS SANTOS. A OPRESSÃO DA CRIANÇA EM GRACILIANO RAMOS E CHARLES DICKENS. NATAL 2017.

(2) ELIZABETE MARIA ÁLVARES DOS SANTOS. A OPRESSÃO DA CRIANÇA EM GRACILIANO RAMOS E CHARLES DICKENS. Tese de doutoramento apresentada para defesa, ao Programa de PósGraduação em Estudos da Linguagem - área de Literatura Comparada - como requisito de conclusão de Doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.. Orientador: Dr. Marcos Falchero Falleiros Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural. NATAL 2017.

(3) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Santos, Elizabete Maria Alvares dos. A opressão da criança em Graciliano Ramos e Charles Dickens / Elizabete Maria Alvares dos Santos. - 2017. 114f.: il. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, 2017. Orientador: Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros.. 1. Estudo Comparado. 2. Memorialismo. 3. Exploração Infantil. 4. Lembrança. 5. Dickens, Charles, 1812-1870. 6. Ramos, Graciliano, 18921953. I. Falleiros, Marcos Falchero. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA. CDU 82.091.

(4) ELIZABETE MARIA ÁLVARES DOS SANTOS. A tese A OPRESSÃO DA CRIANÇA EM GRACILIANO RAMOS E CHARLES DICKENS, apresentada por Elizabete Maria Álvares dos Santos, como parte dos quesitos necessários para a obtenção do grau de doutor, foi aprovada pela banca examinadora constituída pelo PPgEL – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em 10. / 11 / 2017. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________ Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros (Orientador – UFRN) _____________________________________________ Prof. Dr. Antônio Fernandes de Medeiros Júnior (UFRN) _____________________________________________ Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira (UFRN) _____________________________________________ Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues (UERN) _____________________________________________ Profa. Dra. Maria Aparecida da Costa (UERN).

(5) Dedico a meus pais, Francisco Alves dos Santos (in memoriam) e Nilda Álvares dos Santos. Ao meu amado Resende.. filho,. João. Pedro. Álvares.

(6) AGRADECIMENTOS. Ao criador, pelo dom da vida;. A minha família e amigos:. À Pró Reitoria de Gestão de Pessoas, da UFRN, pelo afastamento concedido para realização da pesquisa, na Inglaterra; Aos professores e funcionários, do Programa de Pós-Graduação e m Estudos da Linguagem, da UFRN, em especial ao meu orientador, Dr. Marcos Falchero Falleiros, pela disponibilidade em me orientar e pela preste za em todos os momentos; A todos que contribuíram para a realização deste trabalho..

(7) SANTOS, Elizabete Maria Álvares dos. A opressão da criança em Graciliano Ramos e Charles Dickens. 2017. 114f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017.. RESUMO. Este trabalho tem como principal objetivo o de elaborar um estudo comparativo entre Charles Dickens e Graciliano Ramos, inicialmente escolhidos, respectivamente, por suas obras: Oliver Twist e Infância. Nossa atividade comparativa busca apresentar algumas aproximações e distanciamentos entre esses autores e suas obras. No decorrer de nosso trabalho, apresentamos o perfil de cada romancista e seus respectivos cenários sócio-históricos, desde suas formações distintas a realidades representadas pela Literatura Ocidental, dos Séculos XIX e XX, respectivamente. Primordialmente, o nosso principal foco é a exploração da criança e as violências desferidas a elas. Porém, diante de sociedades tão infinitamente distintas, os conceitos e representações de “criança” e de infância são muito diferentes entre si. Ao longo de nosso trabalho, tivemos o cuidado de separar o memorialístico do historiográfico, do autobiográfico, especialmente no tocante à estética das obras literárias, razão do nosso trabalho. O componente “lembrança”, nos conceitos de Jeanne Marie Ganegbin, dá suporte teórico ao nosso estudo, assim como os de Eliane Zagury amparam a relação de autobiografia como viés de expressão dos relatos de memória. Ao final da nossa pesquisa, apresentaremos a aproximação entre os dois autores, pois ambos viveram a narrativa da violência em suas obras. Palavras-chave: Estudo Comparado. Memorialismo. Exploração Infantil. Lembrança. Autobiografia. Charles Dickens. Graciliano Ramos..

(8) SANTOS, Elizabete Maria Álvares dos. Child Exploitation in Craciliano Ramos and Charles Dickens. 2017. 114f. Thesis (Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017.. ABSTRACT. The main aspect of this work is to elaborate a comparative study between Charles Dickens and Graciliano Ramos, initially chosen, respectively, for their works: Oliver Twist and Infância. Our comparative work presents some of the common aspects and distances between these authors and their works. On the course of our work, we present the profile of each novelist and their socio-historical scenarios, from their distinct formations to realities represented by the W estern Literature of the 19th and 20th centuries, respectively. Initially, our main aim is on the child exploitation and the violence inflicted on them. However, due to societies so infinitely different, the concepts and representations of "child" and childhood are very different from each other. Throughout our work, we have taken care to separate the memorial, the historiographical, the autobiographical, especially regarding to the aesthetics of their literary works, the reason for our study. “Remembrance”, in the concepts of Jeanne Marie Ganegbin, gives theoretical support to our study, as well as the ones from Eliane Zagury which support the relation of autobiography as an expression bias of the memory reports. At the end of our research, we will be presenting the similarities between both authors, since they have lived, sometime in their lifetime, the narrative of violence in their works. Key w ords: Comparative Study. Memorialism. Child Exploitation. Remembrance. Autobiography. Charles Dickens. Graciliano Ramos..

(9) “Please Sir, I w ant some more” (DICKENS, 2012 p. 15).

(10) SUMÁRIO. 1. INTRODUÇÃO....................................................... 10. 2. A CRI ANÇA, A INFÂNCI A: REPRESENTAÇÕES LITERÁRI AS E CONCEITOS................................... 18. 3. PERFIL DE GRACILI ANO........................................ 29. 3.1. INFORMES BIOGRÁFICOS...................................... 29. 3.2. RAMOS: O LIRISMO DO MEMORIALISTA................ 37. 4. DICKENS – PERFIL................................................ 47. 4.1. ANÁLISE DA NARRATIVA....................................... 59. 4.2. OS TRABALHADORES POBRES DA INGLATERRA URBANA. INDUSTRIAL. E. O. ECLODIR. DA 63 REVOLUÇÃO......................................................... 4.3. DICKENS, O ATIVISTA SOCIAL. 5. GRACILI ANO E DICKENS: ESP AÇOS E TEMPOS DIFERENTES,. 66. SOCIONARRATIVOS 69 SEMELHANTES.................................................... 6. 7. A. CONTEXTOS. VIOLÊNCI A. COMO. INSTRUMENTO. DE. DIMINUIÇÃO DO SER............................................ 81. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................... 89. REFERÊNCI AS....................................................... 96. APÊNDICE............................................................. 104.

(11) 10. 1. INTRODUÇÃO. Este trabalho tem como atividade principal a elaboração de ilações e apontamentos sobre as aproximações temáticas e literárias entre dois grandes escritores da Literatura Mundial, Graciliano Ramos (1892-1953) e Charles Dickens (1812-1870). De forma geral, podemos apontar inúmeras singularidades entre esses dois autores, em Oliver Twist, escrita em 1838, na Inglaterra e Infância, escrita em 1945, no Brasil. Dentre essas, e de maneira mais proeminente, apontemos o engajamento sociopolítico, um engajamento com. perfil. altamente. denunciativo,. com. um. caráter. apelativo. às. necessárias mudanças sociais. Suas obras tornam-se verdadeiros arautos e vozes de denúncias dos problemas sociais, especialmente no que diz respeito às agressões às crianças. Os. escritores. que. elegemos. como. objeto. de. estudo,. nos. apresentam farto material dessas várias formas de agressão/opressão, de exploração infantil, desde as formas mais veladas pelas práticas sociais como corretas e necessárias até as que dizem respeito à educação dos pequenos, como por exemplo, a violência doméstica configurada por atos de assédio moral e/ou espancamento. Uma das formas mais comuns de agressão também desferida à criança, à infância e, desse modo, sacramentada pelas circunscrições sociais. é. a. que. evidentemente,. impõe. seriam,. de. às fato,. crianças. responsabilidades. apropriadas. aos. adultos.. que, Essas. responsabilidades adultas lançadas às crianças são inerentes, na maioria das vezes, ao mundo do trabalho. As imputações laborais destinadas às crianças são atribuídas “às circunstâncias”, porém, bem sabemos, quando uma criança tem real necessidade de trabalhar para sobreviver, há algo muito errado em sua sociedade. Assim ocorreu de fato com o escritor inglês que ora estudamos, com a prisão de seu pai por. ser. um. devedor. insolvente,. quando,. assim,. “por. força. circunstâncias”, Dickens teve de trabalhar para sua sobrevivência.. das.

(12) 11. Como. exemplo. dessas. opressões. à. infância,. destacamos. a. narrativa de Dickens, que apresenta, aos 11 anos, o pequeno Oliver sendo obrigado a trabalhar em um curtume, dez horas diárias. Esse fato, traumatizante, mostra-se como projeção da própria vivência do autor, enraizando-se em sua memória, como que se ele tivesse sido abandonado por seus pais. Pela insolvência de dívidas de seu pai, a infância de Dickens foi assombrada por credores e oficiais de justiça. Então, aos 12 anos de idade, por três meses, viu-se sozinho, com toda sua família na cadeia, em razão de dívidas do pai, de acordo com os procedimentos legais da Inglaterra de então. Somente o próprio Charles conseguiu alguma mobilidade, além de uma irmã, que estava em um colégio interno. Tal situação o forçou a largar os estudos e passar a trabalhar em uma fábrica. Trata-se, portanto, de um episódio que exerceu grande influência em suas memórias e, por conseguinte, em seus romances: Assim como Dickens, para além da Era Vitoriana, Graciliano também apresenta em suas obras a criança bem próxima à ideia de infante, aquele que não fala, indivíduo que de forma alguma se faz ouvido, um ente impedido de manifestar suas ações voluntárias ou vontades, sem que a permissão de um “adulto” o autorize ou o induza. Infância é, portanto, uma narrativa que representa um ambiente no qual a criança é submetida a cobranças e responsabilidades tipicamente imputadas a adultos, sem qualquer indulgência à sua pouca idade, sua formação ou processo de formação física e/ou cognitiva. Além de. algumas. singularidades,. comuns. aos dois. autores,. estabelecemos os contrastes entre os espaços sociais de cada autor e as. respectivas. representações. sociais. desses. espaços,. de. suas. sociedades e dos respectivos problemas sociais. É de fato necessário o discernimento desses elementos, pois, os referidos escritores são, evidentemente, de países, de épocas, de ambiências históricas e sociais diferentes: Dickens, em meados do Século XIX (Inglaterra) e Ramos, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX (Brasil). O menino Graciliano, que sempre se apresenta em silêncio nas.

(13) 12. narrativas, indica, assim, militância: quando realiza descrições, seus pais surgem como carrascos, com atitudes frias e cruéis, relata ocorrências e situações cheias de arbitrariedades que flagrantemente não se permite compreender ou aceitar. Na condição de criança foi obrigado a suportar e emudeceu. Na fase adulta, milita em favor de suas próprias memórias e em total desacordo aos maus-tratos outrora sofridos. As cenas de injustiças são inúmeras: Cinturão, Venta-Romba, a do garoto que foi surrado injustamente, enfim, cenas que às mãos do escritor tornaram-se denúncias guardadas desde o tempo de menino, saídas das memórias para o perfil de protesto.. Observamos, portanto,. que o caráter autobiográfico é o veículo da própria produção ficcional dos dois romancistas, inclusive porque ambos retrataram os meninos que recordam terem sido ou elaboraram representações recorrentes e que, de uma forma ou de outra, em um momento ou outro, as suas sociedades construíram em suas práticas. É visível, na obra de Ramos, a inquietação diante dessas injustiças, tendo assim como traços constantes em sua narração autobiográfica, os sentimentos de dor, de decepção, de tristeza e de desesperança. Em um mundo tão cheio de nebulosidade, somente a descoberta do novo traz consistência e, passo a passo, remonta a uma vida que, a princípio, parecia tão sem sentido, conforme afirma Antonio Candido, 1992: O narrador de I nfância se encarrega de nos ensinar algumas das r azões dessa cadeia necessár ia de sof rimentos. Os castigos imer ecidos, as maldades sem motivo, de que são vítimas os f racos, estão na base da organização do mundo. Ele, a prim inha, João, o colega, Venta- Romba, a irm ã natural representam a semente da f ilosof ia de vida caracter ística dos romances de Graciliano Ramos. Ela não é nova nem brilhante, e isso não importa. Um artista nada mais f az do que t omar os lugares-comuns e renová- los pela criação (p. 54).. Observamos. especialmente. através. de. Oliver. Twister. e. de. Infância, a denúncia, um posicionamento revolucionário, de “esquerda”, diante de uma vida marcada por uma espécie de obra realista ou de.

(14) 13. crueldade dessa realidade, uma espécie de secura das relações humanas.. As. cenas. e. as. circunstâncias. que. exibem. esses. acontecimentos são ações extensas e vagarosas, que se arrastam em riquezas de detalhes como se o ato de escrever fosse mais uma competência. memorialista. que. uma. imaginativa-ficcional.. O. autor. desempenha seus esforços em buscar as lembranças e reviver os fatos de outrora pelo exercício da escritura, e a literatura se encarrega de registrar e repassar à posteridade esses “relembramentos” . Tais fatos, não privaram o leitor da responsabilidade de pensar o estatuto do tempo, e assim, o leitor acaba responsabilizado pela condição de testemunha de um quadro pintado à mão, da realidade social de uma época, em determinada região. Um dos grandes elos das produções literárias desses Mestres, podemos afirmar, é o fato de as narrativas transcenderem o caráter pessoal, ficcional ou memorialista. E isso é uma grande contribuição que esses escritores dão à literatura, ou depreendem dela. Não é pertinente que o leitor acomode suas leituras aos encaixes locacionais e circunstanciais da História, é preciso que ele tenha a consciência do material apreendido exclusivamente. em. literatura.. várias Não. vertentes: só. não. biografia,. só nem. literatura,. nem. exclusivamente. biografia. Nem exclusivamente memória. Indiscutivelmente, Infância e Oliver Twist transcendem o aspecto relato-documento.. Trata-se,. na. verdade,. de. narrativas. com. características ficcionais e autobiográficas. Quando nos debruçamos sobre essas obras, é possível ver e ouvir sons, imagens, memórias de uma vida marcada pela presença da ausência da própria vida, do adulto infante. O narrador faz o leitor sentir as “lapadas” que o adulto escritor rememora com tanto realismo. Faz, também, do seu leitor, um cúmplice do seu silêncio, entendedor do seu isolamento. A transitividade dessas memórias vertidas em literatura de exímia grandeza se deve, entre outros motivos, à tênue e móvel fronteira na qual as narrativas desses escritores aportam, e onde se projeta um fluxo incalculável e extremamente rico à Arte Literária, fluxo de águas que não se reconhece mais o que vem a ser ficção ou o que se faz.

(15) 14. realidade. A tessitura das narrativas molda-se numa verossimilhança ao ponto de sentirmos as cenas como algo real; os fatos narrados adquirem uma espécie de nitidez, tamanho o poder descrito com o qual são produzidos, imprimindo ares de um sonho ou de um pesadelo. Portanto, o aspecto memorialista é algo muito marcante na escritura desses gênios da literatura, com repercussões expressivas para a composição histórica de seus respectivos povos, e de modo geral e por ampliação das escalas avaliativas, para a composição histórica de boa parcela do Ocidente. E, por isso mesmo, essas literaturas se somam, assim como essas memórias. Memórias não têm a ver com exatidões, mas com fragmentos que se unem, pouco a pouco, e não sem esmero laboral dos letrados. Registrar. memórias. seria. não. somente. buscar. com. exatidão. as. lembranças – os relembramentos - mas retomar imagens de um passado e tentar reelaborá-lo, apesar da plena consciência de um outro presente – o de hoje, de quando se tenta narrar – utilizando-se inevitavelmente da ficção para a composição de sua amálgama nova. Constatamos, logo, as competências narrativas de cada “artesão” articulando as informações que se fazem lacunares pelo distanciamento temporal e a linguística, entre a ocorrência das vivências e as narrativas construídas. É no dimensionamento do descompasso de narrar essas memórias que se instala a verossimilhança e a ficção, no contexto em que sempre os personagens se esmeram na elucubração das reconstituições da memória e da narrativa. Candido, 1992, em “Os bichos do subterrâneo”, afirma que: “Infância conser va a tonalidade f iccional e é compost o segundo um revestimento poét ico da realidade, que despersonaliza dalg um modo o depoimento e o mergulha na f luidez da evocação” (p. 87).. Ainda para dar respaldo à concepção de memória nas obras dos dois. autores. expressado. em. por. questão, Friedrich. recorremos Nietzsche. ao. (2013,. conceito. de. p.. no. 85),. memória qual. ele. resumidamente diz que “sem o esquecimento não podemos nos tornar.

(16) 15. humanos”. Para ele, a memória é uma espécie de epidemia, pois ela paralisa o ser no passado e não o deixa sentir e seguir o fluxo da vida. Podemos assim observar que o esquecimento produz fatos. Portanto, devemos sim considerar o esquecimento como um grande agente somatório e benéfico ao processo de elaboração memorialista. Somente a capacidade de esquecer, especialmente em se tratando de situações traumáticas, vividas repetidamente, é que faz do homem um reprodutor de fatos. Ainda, é essa vontade de reproduzir do homem que o faz criança. Neste trabalho, estudamos também, o tom de crônica “acusatória” nos textos selecionados, e o teor veiculado no pretexto narrativo dos elementos biográficos dos autores. Estabelecemos diálogos entre as obras estudadas no que diz respeito às várias representações da infância,. em. suas. confluências,. aproximações. e. distanciamentos. devidos ademais às reais diferenciações. Neste momento, novamente, é necessário que falemos dos devidos contrastes dos espaços sociais de cada autor, apesar das recorrências dos mesmos problemas sociais, e de épocas diferentes no âmbito histórico e social de Dickens, do Século XIX (em plena Inglaterra da era vitoriana com seus gestos “ensaiados”) e Ramos, do Brasil, Nordeste coronelístico do século XX. Nosso escopo principal, então, torna-se, ao longo deste estudo, demonstrar o tom humanizador dos relatos de memórias, o perfil somativo do esquecimento, do relembrar e do rememorar. Enfim, nosso desafio é exatamente a necessidade de compreensão e entendimento, de empatia, de identificação desse “outro eu” que é ressignificado desde o passado em que se remonta numa narrativa de aspectos autobiográficos. Lembrança e esquecimento são, portanto, os guias deste trabalho de memórias, como propósito de desferir denúncias do encontro da criança com a violência. O texto Infância, de 1945, é um texto memorialista, que torna evidente a importância da ficção para que esse tipo de narrativa se teça. Ou seja, as memórias vêm se fazendo, há um processo de tessituras no qual Ramos busca, através do esquecimento,.

(17) 16. humanizar o outro ou pelo menos apresentar entendimentos sobre as experiências vividas de forma “pouco humana”, formas essas violentas. Por. outro. lado,. Oliver. Twist. (1938),. uma. narrativa. com. traços. ficcionais, é um romance/ensaio social. Também nesse romance, a ficção descreve os horrores do trabalho infantil, nas fábricas/armazéns de Londres. Assim como na obra, Dickens experimentou dissabores na infância e os retratou, brilhantemente na personagem Oliver Twist. Como se observa, pela forma aleatória de publicação das duas obras, primeiramente em formato de crônica publicada em folhetins periódicos, posteriormente capítulos do livro Infância e Oliver Twist, os dois. autores. reafirmam. a. independência. dos. textos. e. essas. características, aleatoriedade e independência, estão intrínsecas às lembranças, ou seja, à memória. É essa independência entre os capítulos que representa o esfacelamento da memória, característica ilustrada, de forma brilhante, ao longo dos livros de memórias acima citados, abstraindo, portanto, o rótulo de autobiografismo. Há, portanto, uma mobilização e predominância pelo gênero memorial, em Infância e pelo ficcional, em Oliver Twist. Para ilustrar essa característica, do esfacelamento da memória, transcreveremos um trecho de Eliane Zagury, em A escrita do eu, que serve de base teórica a nossa proposta de estudo:. Em Infância, o relacionamento mais ou menos livre entre os capít ulos representa a descont inuidade da memór ia, em f ranca oposição às técnicas narrativas da autobiograf ia e sua prisão f actual e cronológica. (...) o estabeleciment o do novo gênero br asileiro de prosa lír ica: assume-se a descontinuidade da memória e não se tenta complem entar o vazio com técnicas historiográf icas ou esf orços de lógicas discursivas (1982, p. 122-123).. Vê-se, portanto, que os dois autores se utilizam, nas obras que escolhemos para desenvolver o narrativa. que. representa,. nosso estudo, dessa técnica de. através. do. esquecimento. e. da. descontinuidade, esses relatos de vida, muitos deles impostos pela sociedade a seres indefesos, sem direito à voz, desprovidos de “razão”..

(18) 17. São, por fim, através dos papéis de criança, nas obras, que Charles Dickens e Graciliano Ramos revivem e denunciam os horrores de suas vidas e de suas sociedades, bem distintas. Convém, a respeito, lembrar as palavras de Nietzsche (2004, p. 35): “A criança é a inocência e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre. si,. um. movimento,. uma. santa. afirmação.”.

(19) 18. 2. A CRI ANÇA, A INFÂNCI A: REPRESENTAÇÕES LITERÁRI AS E. CONCEITOS Homero, em seu poema épico Ilíada, descreveu cenas da Guerra de Tróia ocorrida no século VIII a. C. Entre tantas narrativas que podemos depreender, temos a narrativa de Páris, na qual, Hécuba, sua mãe, quando ainda estava grávida, teve um sonho, no qual a cidade de Troia seria devastada por um incêndio colossal. Hécuba, aterrorizada pelas imagens, deduziu que fosse. uma premonição, e narrou o. pesadelo ao seu marido, Príamo, Rei de Troia, que por sua vez decidiu buscar ajuda, consultando um Oráculo: “O nascimento dessa criança causaria a ruína da cidade de Troia”. Para que essa tragédia não se cumprisse, Príamo e Hécuba deveriam entregar o filho a um pastor e este deveria levá-lo a um lugar ermo, o mais distante possível do palácio e matá-lo, para que Troia não sucumbisse. Compadecido do triste fim daquela criança, o pastor desobedeceu às ordens do Rei, criando o menino como um filho biológico. A história de Páris é, talvez, a mais longínqua narrativa de maus tratos da história do Ocidente. Ela data aproximadamente de 8 séculos. a.C.. A. linha. do. tempo. deve. ser. redimensionada. nessa. passagem, pois os acontecimentos “já haviam ocorridos” e isso já circulava entre os gregos, através da oralidade, canal praticamente único para informação e conhecimento à época. Como podemos ver, somos filhos da Cultura Greco-Egípcia e, com isso, demonstramos o que seria a mais antiga ação de maus tratos a uma criança. O perfil da Maldição de Páris advém de crenças religiosas, representadas pela figura do Oráculo que atinge os anseios dos homens, respondendo-lhes questões das mais diversas, a exemplo dessa de Hécuba. Durante muitos séculos, e em vários povos, houve a prática da “roda dos enjeitados”, crianças. que por quaisquer motivos eram. abandonadas num ponto específico para que alguém pudesse se compadecer e alimentá-las, medicá-las, ou tomá-las para si em adoção, enfim. Um desses motivos é o de as crianças serem portadoras de.

(20) 19. alguma deficiência, física ou mental, o que era considerado um “castigo de Deus”. Por séculos, as crianças órfãs ou abandonadas eram “adotadas” por casais sem filhos para que eles pudessem “deixar herdeiros. Ou seja, as crianças não tinham real importância, senão o de servir de “tampão. para. famílias. incompletas”,. de. fato,. os. adultos. não. desempenhavam verdadeiro interesse nos pequenos, mas em seus interesses financeiros e/ou religiosos. Em casos mais graves, alguns filhos eram “devolvidos” por mera desistência dos pais adotivos ou por conseguirem. engravidar. tardiamente. ou. adotar. parentes.. Essas. informações estão contidas nos códigos de Hamurábi e de Manu. O Código de Manu (séculos II a. C a II d. C.) possuía leis voltadas para a perpetuação da espécie e de rituais em cerimônias fúnebres, onde haveria de sempre haver descendentes para que essas cerimônias jamais fossem interrompidas. Nas leis de Manu, a adoção é a única solução “para aqueles que a natureza não lhes tinha dado filhos”, como se vê no trecho do referido código destacado abaixo: Art. 585º - Quando um homem toma par a f ilho um r apa z da mesma classe que ele, que conhece a vantagem da obser vação das cer imônias f únebres e o mal resultante de sua omissão, e dotado de todas as qualidades estimadas em um f ilho, est e f ilho é chamado f ilho adotivo. Art. 604º - Na f alta de todas essas pessoas, Br âmanes ver sados nos três Livros Santos, puros de espír ito e de corpo, e senhor es de suas paixões, são chamados a herdar, e devem por consequência, of erecer o bolo; dessa maneir a os dever es f únebres não podem cessar. 1. Por sua vez, o Código de Hamurabi (Babilônia 1728-1686 a.C.) estabeleceu. claras. regras. para. a. adoção.. Essas. regram. eram. minuciosas, especialmente as punições nada brandas para aqueles que ousassem desafiar as ordens dos pais adotivos. Entre essas punições. 1. Código de Manu. Disponível em: http://www.ufra.edu.br/legislacao/CODIGO%20DE%20MANU.pdf. Acesso em: 23 de junho de 2016. Ver referência..

(21) 20. estavam a de arrancar a língua e vazar os olhos. A criança poderia, a qualquer momento, ser “descartada”, conforme afirma Leyla Figueiredo: O Código de Hamurabi (...) permitia a sua revogação, pelos pais biológicos, se os f ilhos dados em adoção não f ossem tratados como verdadeiros f ilhos do adot ante ou se f ossem renegados em nome da prole biológica, ou se não lhes f osse ensinado o of ício do adotante. Enquanto isso, ao pai adot ivo era possível revogar a adoção em caso de ingratidão. ( 2008, p. 35).. Podemos observar, assim, que a adoção estava relacionada a um acordo de mutualidades, portanto, no Código Hamurabi, a prática de adotar. possuía. um. caráter. contratual.. A. esposa. infértil. tinha. a. permissão de criar os filhos do seu marido oriundos de relação com outra mulher, desde que ela escolhesse quem seria essa “mãe”. Muitas características possíveis e recorrentes, hoje em dia, já eram prevista s pelo Código: a não criação de vínculo afetivo entre adotante e adotado e o tratamento diferenciado entre filhos biológicos e adotivos eram alguns deles. Como vimos, ter um filho era uma prática social intrinsicamente ligada a crenças e cultos religiosos, era uma exigência social deixar descendentes, por vários motivos, inclusive uma prova de virilidade do homem e de que a mulher não possuía o ventre seco. Caso essas provas biológicas não pudessem ser concretizadas, um filho (um herdeiro masculino) deveria ser “providenciado”, pois, do contrário, esse casal sofreria sanções dos deuses no pós-morte por não haver deixado quem chorasse por eles. De tal modo, vemos que muitas e várias culturas, por muitos séculos, admitiam a ideia da criança como “algo” acessório a um casal e por necessidade desse casal, não por amor aos filhos/crianças. E,. em. casos. de. “providenciar”. um. filho,. três. eram. as. possibilidades mais recorrentes: 1) quando da impossibilidade do homem: outro homem de confiança, geralmente da família,. viria. fecundar sua esposa; 2) quando da infertilidade da esposa: o marido.

(22) 21. faria um filho com outra mulher, e a esposa participava da escolha da futura mãe biológica de seu filho/a; 3) a adoção. E, para todos os casos o filho e, em pior hipótese, a filha nascida, teria de ter sorte em não vir a ser rejeitada, conforme relata trecho de Figueiredo, transcrito abaixo: (...) morrer sem essa descendência masculina signif icava a condenação de ser abandonado na escuridão, andando o espír ito errante por toda a eter nidade, por não ter quem lhe cultuasse a memória. (...) a adoção revela-se com o últ ima alternativa, como solução, para evitar a desgraça de morrer sem descendentes do sexo masculino. (2008, p. 35-36).. Complementamos com outra citação da qual extraímos algumas as informações, a cerca desse modo de rejeição à criança, Carlos Gonçalves afirma que: Aquele cuja f amília se ext ingue não terá que lhe cultue a memória e a de seus ancestrais. Assim, a mesma religião que obrigava o homem a casar-se para ter f ilhos que cultuasse a memória dos ant epassados comuns, a mesm a religião que impunha o divórcio em caso de ester ilidade e que substit uía o marido impotente, no leito conjugal, por um seu parente capaz de ter f ilhos. (2014, p. 383).. Devido às famílias serem numerosas, pequenas eram as famílias de apenas 5 filhos, não por planejamento familiar, evidentemente, mas pela mortalidade materno-infantil ser bastante alta. Na ausência do patriarca, do provedor, a mulher normalmente, faria os filhos mais velhos de arrimo de família, com pequenos serviços, subempregos, agricultura de subsistência. No caso das filhas, seriam enviadas à casa de. parentes. para. auxiliar. nas. atividades. domésticas,. informal. e. temporariamente. Ou seja, as meninas teriam ainda um vínculo com suas famílias biológicas. Essas condições também se faziam quando da morte da mãe, pois o pai sozinho não saberia lidar com tantos filhos. Assim, essas crianças passam da infância à idade adulta sem o passar do. tempo,. mas. de. um. salto,. um. salto. para. a. sobrevivência.. Forçosamente tornavam-se aprendizes, empregadas/os domésticas/os,.

(23) 22. mensageiros, costureiras, ajudantes de caixeiros viajantes, ou qualquer outro ofício que os donos da casa desempenhavam, muitas vezes, em troca, apenas, de casa, comida e maus-tratos. Às vezes retornavam, às vezes permaneciam nas segundas famílias. No. século. XVIII. temos. uma. lúcida. declaração. sobre. o. “desconhecimento” da infância, desfazendo-se esta “ignorância” com dois métodos: o freudiano e o piagetiano. Vejamos na seguinte citação, de José Paulo Paes: (...) f oi o brado do f ilósof o Jean Jacques Rousseau no pref ácio do " Émile ou de l'Educat ion" (1762): " Não se conhece a inf ância" . Depois do br ado de Rousseau, ao conceito redutor do "homunculus" ou adulto imperf eito em que a cr iança cost umava ser subsum ida, sucedeu um continuado e sistemático esf orço de investigação das particularidades psíquicas que a estremam do adulto. Essa empresa de mapeamento da inter ior idade da inf ância culm inar ia, como se sabe, no modelo f reudiano de desenvolvimento libidinal e no modelo piagetiano de desenvolvimento cognitivo. Ambos convergiram no empenho de dar carta de cidadania cient íf ica à dif erencialidade psicológica da cr iança. (1998, p. 1).. Esses. dois. métodos,. o. freudiano. e. o. piagetiano,. são. respectivamente os modelos libidinal e cognitivo. Nessa perspectiva, podemos ainda observar as anotações correlatas às nossas poesias românticas através de Cassimiro de Abreu, mencionadas também em Paes (1998): É imprescindível voltar a Rousseau par a lembrar que a sua ideia da inf ância como f elicidade er a uma ideia nova para a Eur opa de f ins do século 18. Dela f ariam os poetas do romant ismo um dos seus tópicos sent imentais prediletos, a exemplo do nosso Casim iro de Abreu em " Meus O ito Anos" (2). Nesse poema de inclusão obrigatór ia em qualquer antologia escolar, substantivos e adjetivos chave como "saudades", " inocência", "alegria" ou "ingênuo" apontam para uma idealização da inf ância sob a qual lateja uma pulsão regressiva de sentido utópico. Pulsão que se reveste de conot ações cr ít icas ao contrapor os "tempos ditosos" da meninice às "mágoas de agora" da idade adulta (3). (p. 1)..

(24) 23. A. compreensão. de. infância,. atualmente,. é. mais. ligada. às. concepções e recomendações da ONU, dos Direitos Humanos, do Princípio da Dignidade Humana, o que de todo configura-se bastante diferente dos vários conceitos que foram praticados durante vários séculos. A construção histórica do conceito de infância acompanha o fluxo normal das características que os tempos vão admitindo. Durante muito tempo as crianças, na primeira infância, foram tratadas com total indiferença, porque não tinham o preparo físico para desempenhar atividades laborais. Ou seja, uma vez que não geravam lucro, mas despesa,. as. realizações,. crianças desejos. e. eram,. simplesmente,. necessidades.. E. isso. ignoradas era. em. suas. absolutamente. “normal”, o que hoje é inimaginável. De fato, a forma com a qual enxergamos as crianças no Ocidental hodierno, é realmente muito diferente da forma que o próprio Ocidente havia praticado. O fato é que quase nunca a sociedade enxergou a criança como um indivíduo com demandas específicas, ou seja, a criança era vista por muito tempo como uma miniatura de adulto, na Idade Média. Na Idade Média a criança era vista como um ser em miniatura, assim que pudesse realizar algumas taref as, esta era inser ida no mundo adult o, sem nenhum a preocupação em relação à sua f ormação enquanto um ser específ ico, sendo exposta a todo tipo de exper iência. (...) a socialização da cr iança e a transmissão de valores e de conhecimentos não eram assegurados pelas f am ílias. A criança era af astada cedo de seus pais e passava a conviver com outr os adultos, ajudando-os em suas taref as. A partir daí, não se distinguia mais desses. Nesse contato, a criança passava dessa f ase diret o par a a vida adulta. (ARIES, 1978, apud SOARES, 2017, p. 03).. Assim, podemos também dizer que, várias concepções de infância e criança acabam convivendo ao mesmo tempo em uma mesma sociedade, pois, como sabemos, os processos históricos não se dão de maneira uniforme e/ou linear. As formas de acesso a informação, por exemplo, podem interferir fortemente nos conceitos que regem as relações sociais. Outros aspectos que interferem bastante nessas.

(25) 24. concepções são as classes sociais e as condições socioeconômicas influenciam bastante os acessos às informações, ou seja, pessoas de maior poder aquisitivo mudam, atualizam-se em maior número, tendem a não permanecerem com ideias retrógradas. A palavra ‘infância’ teria a ver com a fase da vida do indivíduo, que geralmente chamamos de primeira idade É nessa etapa que a criança apresenta maior facilidade “biológica”, diferentemente da fase de. desenvolvimento. e. de. aquisição. da. linguagem,. embora. essa. aquisição não se conclua nesta etapa. A linguagem só tem o seu desenvolvimento completo por volta dos 12 anos de idade, até lá pode apresentar inconsistência de conhecimentos, pronúncia, e de aplicação contextual das palavras. De fato, a criança tem, em sua primeira idade, momento oportuno para construir a sua própria linguagem, como afirma Michele Castro, 2007: [...] a primeira idade que planta os dentes, essa idade começa quando a criança nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado enfant (criança), que quer dizer não f alante, pois nessa idade a pessoa não pode f alar bem nem f ormar perf eitament e suas palavr as, pois ainda não tem seus dentes bem ordenados nem f irmes (p. 5).. Dentre. essas. mudanças. sociais. que. podemos. ressaltar,. novamente, as mudanças dos entendimentos da ideia de infância e de família que reproduzimos hodiernamente são padrões burgueses que se popularizaram. de. forma. massiva.. Ratificando. essa. leitura,. apresentamos um texto de Sonia Kramer (2003), o qual nos leva, plenamente, à ideia de criança, no século XIX, época que serve de base para nosso estudo: A ideia de inf ância aparece com a sociedade capitalista, urbano- industr ial, na medida em que mudam a sua inserção e o papel social da cr iança na comunidade. Se, na sociedade f eudal, a cr iança exercia um papel produt ivo dir eto ("de adulto") assim que ultrapassava o per íodo de alta mortalidade, na sociedade burguesa ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolar izada e preparada para uma f unção f utura. Este conceito de inf ância é, pois, determinado historicamente pela.

(26) 25. modif icação das f ormas de organização da sociedade (p. 19).. É,. portanto,. mais. especificamente,. na. sociedade. capitalista. industrial, do século XIX que as crianças desempenham um papel de extrema importância para as mudanças que virão a ocorrer nos séculos que se seguem, pois para Nietzsche (2004, p. 38), somente as crianças podem criar novos valores e universos, através da sua imaginação lúdica. Seria, então, a criança, por natureza, um artista? O verbete Infante, segue o mesmo sentido básico da palavra: “ser sem voz”. Em Aurélio (1999) e em Houaiss (2001) encontramos a mesma etimologia infante: “aquele que não fala”, “incapaz de falar”. E ainda. segundo. Houaiss. (2001),. infante,. em. Portugal. e. Espanha. significa “filho de reis que não herda o trono”. Sabemos que a palavra infante designa criança, menino ou menina. Atualmente, no Brasil, esta palavra está obsoleta. Mais comumente, podemos observar o seu radical infans, formando outras palavras como Infância (Ramos) ou o assassinato de crianças, o infanticídio. Desde sua etimologia, esse verbete descreve aquele que não fala, incapa z de falar. É interessante frisar o que foi acima mencionado, na península Ibérica (Espanha e Portugal), infante ou infanta refere-se ao filho ou filha de um rei que não compõe a lista sucessória do trono, mesmo gozando da majestade. Como vimos, as definições para a palavra infante coadunam na ideia central de não haver fala, logicamente não do ponto fisiológico, mas propriamente de um condicionamento psicossocial, à condição da criança de pouca idade, de um sujeito de conformações autenticamente pueris, aquele ou aquela que se encontra em crescimento, etapa entre nascimento e puberdade. E para o contexto das realezas, infantes seriam os que, apesar de estarem na linha sucessória do trono respectivo, não teriam a oportunidade de sucessão pela própria condição de ser criança e, portanto, não poderiam tomar decisões cabíveis aos monarcas. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990), o critério utilizado para definir “criança” é a faixa etária: “a.

(27) 26. criança como a pessoa até os 12 anos de idade incompletos”. Um critério que demonstra, no mínimo, uma limitação conceitual. No entanto, não podemos ver isso, necessariamente, como uma falha do Estatuto, mas um fator de facilitação para o legislador e que, de toda forma, evita que um conceito mais elaborado e amplo pudesse vir a ser mal interpretado, ou se tornar inaplicável. Hodiernamente, o conceito mais amplo de infância define-se em estudos oriundos da sociologia e da história, no que diz respeito, respectivamente, estruturação e à história das famílias. A exemplo disso, apresentamos a seguinte observação de Luiz de Melo Diniz: As diversas estrut uras f amiliares que as sociedades humanas cr iaram se baseiam, numa simplif icação didática, nas var iações em torno da f am ília nuclear (pai, mãe e f ilhos dependentes) e do maior ou menor af luxo de parentes ( incluindo os f ilhos casados e suas proles) e at é criados que a ela se juntavam, conf igurando desde f amílias extensas (com praticamente t odas as pessoas de uma mesma ascendência convivendo juntas) até clãs e tribos com regras de f ormação próprias. A relação entre essas f am ílias e o g rupo social mais am plo em que elas se inser iram era est abelecida de acor do com as regras de hier arquia ditadas pelo poder econômico e polít ico, vínculos de consanguinidade entre seus membros, linhas de descendência e consequentes direit os de herança, e valores morais e religiosos vigentes na tradição da comunidade de que essas f am ílias eram o sustent áculo. A relat iva importância que as crianças têm em cada padr ão de estrutura f amiliar var ia naturalmente com esses valores e com o modus vivendi de cada sociedade (2012, p. 64).. Observamos,. assim,. que. os. conceitos. familiares. vão. se. reconfigurando de acordo com as relações sociais. Nessas, as crianças têm papéis totalmente diversos entre si. Desde a total nulidade à percepção de ser que tem direito a Direitos. Quando elaboramos um estudo comparativo entre Mestres da Literatura,. e. por. mais. que. especifiquemos. as. suas. respectivas. realidades sócio-históricas, não podemos, de modo algum, esquecer que as duas sociedades representadas têm formações extremamente equidistantes. Por duas características básicas devemos ter claramente.

(28) 27. duas imagens inalteráveis: Inglaterra, Metrópole e Brasil, colônia, (ainda que tal relação não ocorra diretamente entre os dois países). Por. conseguinte,. nessas. constituições. histórico-sociais,. além. do. posicionamento geopolítico, o próprio posicionamento geográfico físico fornece condicionamentos significativos para as nossas análises. Esses aspectos são indispensáveis para a compreensão dos conceitos de criança e para a compreensão das crianças tão diferentes entre si. A Literatura Ocidental registrou esses pequenos personagens em situações típicas da infância como, por exemplo, brincar nas ruas, e entre essas brincadeiras, a pouco lúdica brincadeira de roubar assim como fez o bando de Gavroche, no épico do francês Victor Hugo, Os Miseráveis, escrito em 1862. Vejamos o relato do pequeno Javert: Javert nascera numa prisão, f ilho de uma cartomante cujo marido estava nas galés. Crescendo, julgou-se excluído da sociedade e perdeu toda a esperança de nela entrar. Notou, igualmente, que a sociedade mantém irremissivelmente af astadas duas classes de homens: os que a atacam e os que a protegem; ele só podia escolher entre essas duas classes, ao mesmo t empo que sent ia em seu ínt imo não sei que rigidez, regularidade ou probidade, de mistura a um ódio inexpr im ível a essa classe de boêm ios a que ele pertencia. Entrou par a a polícia. Deu-se bem . Com quarenta anos, f ora nomeado Inspetor. Em sua juventude, trabalhava entre os f orçados do Midi. Ant es de prosseguirmos, ent endamo-nos sobre estas palavras face humana, que usamos há pouco a respeito de Javert. A f ace humana de Javert consistia em um nariz chato, com duas narinas muito abertas para os quais subiam, dos dois lados de seu rosto, enormes suíças. Gent e se sentia mal na pr imeir a vez em que se deparava com essas duas f lorestas e essas duas cavernas. Quando Javert ria, o que era muito raro e terr ível, seus lábios muito f inos separavam-se, deixando ver não só os dentes, mas também as gengivas, produzindo ao redor do nariz uma dobra achatada e selvagem que lhe dava o ar de um f ocinho pr óprio de animais f erozes. Javert, quando sér io, era um cão; quando r ia, transf ormava-se num tigre. Quanto ao mais, cabeça pequena e queixo volumoso; os cabelos caídos sobre as sobrancelhas escondiam- lhe a f ronte; entre os dois olhos, uma ruga permanente como se f ora uma estrela de cólera; olhar obscuro, boca af etada e temível, um ar de comando feroz. (2013, p. 143)..

(29) 28. Essas. representações. importância. para. que. de. possamos. infâncias avançar. são em. de. fundamental. nossas. leituras. comparativas entre Dickens e Ramos. Suas respectivas “infâncias”, tão díspares, mas aproximadas pelas cenas de violência experimentadas em. seus. cotidianos,. comparativo.. servem. de. nutrição. para. nosso. trabalho.

(30) 29. 3. PERFIL DE GRACILI ANO. 3.1. INFORMES BIOGRÁFICOS Nascido em Quebrangulo, em 27 de outubro de 1892, numa. família modesta do interior de Alagoas, Graciliano Ramos de Oliveira viveu, até sua adolescência, em fazendas e pequenas cidades do interior de Pernambuco e Alagoas, no sertão do Brasil. Nessa época, a seca era constante e os castigos advindos dela deixaram marcas profundas na vida do escritor. Sua alfabetização também lhe deixou sequelas de sofrimento, dado a dureza e a violência do regime familiar em que ele viveu. Segundo ele: “Aprendi a carta de ABC em casa, aguentando pancada”. Sua obra Infância, publicada em 1945, retrata fielmente essa violência. Em Cartas, publicadas postumamente nos anos 80, por sua própria esposa, reproduz-se o depoimento do escritor sobre suas origens: Nasci em 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo, Alagoas, donde saí com dois anos. Meu pai, Sebast ião Ramos, negociante miúdo, casado com a f ilha dum criador de gado ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma f azenda em Buíq ue, Pernambuco, e levou para lá os f ilhos, a mulher e os cacar ecos. Ali a seca matou o gado – e seu Sebast ião abr iu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96. Da f azenda conser vo a lembr ança de Amaro Vaqueiro e de José Bahia. Na vila conheci Andr é Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeir a, padr e José Ignácio, Felipe Benício, Teotoninho Sabiá e f amília, seu Batist a, dona Marocas, minha prof essor a, mulher de seu Antônio Just ino, personagens que utilizei muitos anos depois. (RAMOS, 1981, p. 13). Filho de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos, tendo quinze irmãos, sendo ele o mais velho, Graciliano escreveu sua obra (início do século XX) numa época em que o ar otimista da era das revoluções saía de cena, dando margem a uma atmosfera mais pessimista e bastante econômica de esplendor. Na Europa, período de indefinição e transformação social, iniciou-se um.

(31) 30. processo. de. mudança. de. mentalidade,. motivado. pelas. grandes. descobertas científicas. A sociedade europeia, tipicamente capitalista e burguesa, abraçou o capitalismo como forma econômica o que trouxe mais miséria aos proletariados e acúmulo de capital a classe alta, conforme atesta Hobsbawn (2006). Já na literatura, o artista não via mais o romantismo como a fonte de explicação para suas inquietações. Ele se engana com sua própria arte e desconfia da realidade. No Brasil do final do século XIX, os primeiros anos da República são anos de inquietude econômica, também. O Nordeste, castigado pela seca e destroçado pela guerra de Canudos (1896-1897), foi alvo de batalhas entre políticos e cangaceiros, os quais demandavam dos coronéis o pagamento pela proteção de suas fazendas. Na região Norte, do imenso território brasileiro, a borracha traz riqueza e prosperidade a uma região desconhecida pelo cenário mundial. Já no sudeste do Brasil, São Paulo é a cidade mais próspera e, a produção de café atrai imigrantes do país e do exterior, todos na esperança de conseguir trabalho e melhor qualidade de vida. A literatura surge, então, como representação desses contrastes sociais e econômicos, embora é sabido que a literatura como fenômeno social, nem retrata a sociedade tal qual como ela é, tampouco ela testemunha a sociedade e a história de seu povo. Segundo Nicolau Sevcenko (1983): O ponto de intersecção mais sensível entre a histór ia, a lit eratura e a sociedade está concentrado evidentemente na f igura do escr itor. Eis porque uma análise que pretenda abranger esses três níveis deve se volt ar com maior atenção para a situação particular do literat o no inter ior do meio social e para as car act er íst icas que se incorporam no exer cício do seu papel em cada per íodo. Eles juntamente com as editoras, os livros, as livrar ias, academ ias, conf rarias e o público constituem o aspect o palpável, visível da instituição literár ia. (p. 246). Assim, podemos afirmar que Infância, de Graciliano Ramos, se apresenta como uma excelente fonte documental que nos informa acerca dos primeiros anos de vida de seu autor em sua representação do que ele viveu, assim como das intenções do autor para com seu.

(32) 31. trabalho.. É. razoável,. nesse. momento,. não. confundir ficção. com. autobiografia. Candido, em seu ensaio “A revolução de 1930 e a cultura” (1989, p. 186) avalia o período: “Graças a isto, no decênio de 1930, o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um direito”, trazendo níveis de “aceitação” da escrita de alguns escritores, dentre eles Graciliano Ramos. Sendo assim, a produção literária do final desse século se distribui e alguns escritores publicam obras sobre as diferentes regiões do Brasil, sobre os grandes centros urbanos, sobre o funcionalismo público, sobre as crianças, os sertanejos. Graciliano Ramos narra todos esses assuntos em sua obra, majestosamente, graças a sua vivência entre sertão, lugarejos e capitais. De acordo com as palavras de Paul Ricoeur (2007, p. 416), o tempo decorrido torna-se um tempo que pode ser recuperado, pelo historiador, por meio da escrita memorialista, como um lugar de memória. Nesse sentido, essa escrita como lugar de refúgio da própria memória do escritor, em todas as suas dimensões, não nos leva somente ao que foi narrado, mas também nos desloca no tempo e no espaço, abrindo perspectivas as quais dão significado ao passado, pois o acontecimento vivido na realidade é infinito, ilimitado e se apresenta como chave de resposta para dar sentido ao antes e o depois. Da mesma forma, W alter Benjamin se ref ere a obra de Proust: Sabemos que Proust não descreveu em sua obra um a vida como ela de f ato f oi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém esse comentár io ainda é dif uso, e demasiadam ente grosseiro. Pois o im portante, par a o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. (1994, p.37). No Brasil, a literatura produzida entre 1902 e 1922 é considerada precursora do modernismo, sendo 1922 o ano da Semana de Arte Moderna, marco da chegada do Modernismo. Antes dessa época, a principal. característica. do. romance. brasileiro. eram. obras. que. tornassem o Brasil mais conhecido, se distanciando das classes sociais, alvo da maior parte das obras escritas, até então. Em meados.

(33) 32. do Século XX, portanto, as narrativas se voltaram mais para os acontecimentos históricos que refletissem a história e os problemas da época, que fossem o retrato do Brasil daquele século. Surgiram, assim, os. autores. da. geração. de. 1930,. retratando. questões. sociais. e. ideológicas, que iam das mazelas da seca e miséria de seus habitantes à travessia dos retirantes de um nordeste devastador, enraizado na fome que alimenta a vida do sertanejo. Com relação a essa nova modalidade narrativa, Candido (1989) afirma:. É o caso do “romance do Nordeste”, considerado naquela altura pela média da opinião como o romance por excelência. A sua voga provém em parte do f ato de radicar na linha da f icção reg ional (embora não “regionalista”, no sentido pitoresco), f eita agora com uma liberdade de narração e linguagem ant es desconhecida. Mas der iva t ambém, do f ato de todo o País ter tomado consciência de uma parte vital, o Nordeste, representado na sua realidade viva pela literatur a (p.187).. Vemos, então, que o Brasil desse fim da primeira metade do Século XX, é marcado pela diversidade cultural e pela desigualdade social. É, portanto, a denúncia da realidade que cerca seu povo. Na segunda metade do Século XX, a literatura brasileira vive uma espécie de acordo com as ideologias políticas e religiosas dando, assim, liberdade aos autores da época produzirem suas obras tendo como base histórica os horrores das duas grandes guerras. A literatura precisava, dessa forma, dar respostas aos muitos questionamentos dos “sobreviventes”. que. já. não. encontravam,. na. religião. e. na. espiritualidade, razões para estar no mundo. Dessa forma, vê-se que as denúncias sociais são o cerne de Infância (1945), ano de início da era de Vargas. Portanto, naquela época não havia outra forma de expressar as distorções desses “horrores” senão através da literatura. Historicamente, a revolução de 1930 surgiu exatamente como forma de protesto as oligarquias cafeeiras. Getúlio Vargas, sentindo-se ameaçado. pelos. movimentos. de. esquerda,. resolve. perseguir. os. manifestantes e foi nessa perseguição que Graciliano foi preso, em.

(34) 33. março de 1936, em Maceió, sem culpa estabelecida, mas acusado de subversão. Em agosto, ainda na prisão, publica o romance Angústia. Foi libertado em 1937 (quase um ano após a prisão), já na cidade do Rio de Janeiro. Esse período serviu de tema e inspiração na vida de Ramos, levando-o a escrever Memórias do Cárcere, com publicação póstuma em 1953. Em uma carta enviada a sua esposa Heloísa, quando estava preso, Graciliano comenta sobre essa ausência de motivos. para. sua. prisão:. “Estou. resolvido. a. não. me. defender.. Defender-me de quê? Tudo é comédia e de qualquer maneira eu seria um péssimo ator”. A palavra “opositor”, usada por Candido, definia os escritores dessa época: Uma das consequências f oi o conceito de intelectual e artista como opositor, ou seja, que o seu lugar é no lado oposto da or dem estabelecida; e que f az parte da sua natureza adotar uma posição cr ít ica em f ace dos regimes autoritár ios e da mentalidade conser vadora (1989, p.195).. Em 1941, a devastação da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) agravou-se após a destruição de Pearl Harbor. Outro fato que marcou, negativamente, o mundo, em 1945, foi o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Havia sido descoberta uma forma de o ser humano exterminar sua própria raça. A ciência acabara de cruzar a última fronteira ética. A literatura surge, nesse contexto histórico, mais intimista, procurando responder aos inúmeros questionamentos provenientes desses atos de atrocidades. Logo, as reflexões em torno do tema “estar no mundo” passam a definir a prosa literária dessa época e as obras de Graciliano Ramos, sobretudo Infância e Vidas Secas, são exemplos claros dessa inquietude social. As questões religiosas também entram em conflito, diante de tantos percalços. sociais,. sendo. esses. temas. um. dos. elementos. mais. recorrentes retratados nas obras dessa metade do século XX. Com isso, os escritores dessa fase se utilizaram da prosa narrativa para denunciar uma realidade social que tolhia os direitos da classe social.

(35) 34. menos favorecida, e vemos Graciliano como o maior representante dessa geração. Assim como afirma Alfredo Bosi (1994), em História Concisa da Literatura Brasileira, vemos que a visão realística expressada nas obras de Graciliano é um retrato fiel dos acontecimentos de sua geração:. O realismo de Graciliano não é orgânico nem espontâneo. É cr ít ico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outr os, nem a si mesmo. Sof rendo pelas distâncias que o separam da placenta f amiliar ou grupal, introjeta o conf lito numa conduta de ext rema dureza que é a sua única máscara possível. E o rom ancista encontr a no trato analítico dessa máscara a m elhor f órmula de f ixar as tensões sociais como primeiro motor de todos os comportamentos (p. 402).. Para ilustrar essa afirmação de Bosi, destacaremos um trecho de ramos, em Vidas secas, o qual mostra essa realidade que as tensões sociais provocavam em meados do Século XX:. Na planície avermelhada os juazeir os alargavam duas manchas verdes. O s inf elizes t inham caminhado o dia inteiro, est avam cansados e f amintos. Ordinar iament e, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem pr ogredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A f olhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala (RAMOS, 2008, p.9).. Vemos nesse trecho que Graciliano encontra uma maneira de retratar o impacto do mundo externo sobre o ser, em que o enredo é proveniente do contexto socioeconômico e o espaço onde o indivíduo se relaciona. Em alguns trechos da obra de Graciliano Ramos, a exemplo de Infância (2011), e no livro de sua filha Clara Ramos (1979), o pai e a mãe dele foram claramente expostos, quanto as suas característica s pessoais (mãe: antipática, pai: duro), ao contrário de Charles Dickens,.

(36) 35. cujos pais não foram, explicitamente, apesar das mágoas a ele causadas:. “Minha. mãe. tinha. a. franqueza. de. manifestar-me. viva. antipatia. Dava-me dois apelidos: bezerro-encouraçado e cabra-cega” (RAMOS, 2011, p.146). O trecho destacado abaixo, nos dá uma boa ideia dessa concepção que ele tinha de seus pais e que ele retrava, em suas obras, abertamente:. Foi o medo que me orientou nos pr imeiros anos, pavor. Depois as mãos f inas se af astaram das grossas, lentamente se delinearam, dois seres que me impuseram obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as f inas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas – e os meus receios esmoreciam. As grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos. (...) o mundo era complicado. (RAMO S, 2011, p.14-15).. E, as descrições frias de suas lembranças amargas, seguem e vão além dos pequenos detalhes metafóricos estabelecidos e na dicotomia imagética entre “mãos finas e mãos grossas”. Agora, as imagens são da estética do todo, da entidade paterna e materna, de pessoas às quais sempre reivindicamos boas ações e cuidados. É, portanto, essa a descrição elaborada por Ramos, fazendo ainda a observação de que isso provém de uma ambiência cultural, em específico, da região nordeste, “da bárbara educação nordestina”. Meu pai f ora um violento padrasto, minha mãe parecia odiar-me, e a lembr ança deles me instigava a f azer um livr o a respeito da bárbara educação nordestina. (RAMO S, 1979, p. 27). Essa relação de denúncia e exploração fica bem definida nas obras do autor e a narrativa Infância a projeta no decorrer de toda a obra, de maneira bem peculiar e “cortante”. Podemos dizer que são denúncias sociais universais excluindo o autor, portanto, do contexto regionalista que a linha histórica o classifica. Trata-se, então, da utilização de um “realismo bruto”. É, através da linguagem utilizada em sua ficção, que Ramos constrói seu olhar realista. Destacaremos,.

(37) 36. abaixo, um trecho que nos serve de exemplo desse realismo bruto, onde o autor descreve “as pessoas comuns”, na obra Infância:. As pessoas comuns exalavam odor es f ortes e excitantes, de f umo, suor banha de porco, mof o, sangue. E baf os nauseabundos. Os dentes de Rosenda eram pretos de sarro de cachimbo; André Laerte usava um aventa l imundo; por detrás dos baús de cour o, brilhantes de tachas amarelas, escondiam-se camisas ensanguentadas (RAMO S, 2011, p. 122).. Seus personagens são, portanto: homens conflituosos, solitários, povoados pelo tormento, resultados da destruição, em estados “crus”, na pura realidade, com seus suores e odores e com as marcas de seus trabalhos como as “camisas ensanguentadas” e com as manchas de maus hábitos como são os “Os dentes pretos de sarro de cachimbo”, da personagem Rosenda, em Infância (2011). Publicada em 1945, época de sua filiação ao Partido Comunista, chamada por Rubens Braga de “Romance desmontável”, uma narrativa em que Eliane Zagury (1982) vê um “esfacelamento”, Infância é composta de 39 capítulos e, semelhante a Oliver Twist, foi publicada ao longo de mais de dois, como contos avulsos publicados em jornais. Essa obra foi claramente planejada pelo autor, conforme relatos em uma carta dele endereçada a sua esposa, Heloísa de Medeiros Ramos, de 28 de janeiro, de 1936: Um dia desses, no banheiro, veio-me de repent e uma ótima ideia para um livr o. Ficou-me logo a coisa pronta na cabeça, e até m e apareceram os t ítulos dos capítulos, que escrevi quando saí do banheiro, para não esquecêlos. Aqui vão eles: Sombras, o inf erno, José, as almas, letras, meu avô, Em ília, os astr ônomos, caveira, Fernando, Samuel Smiles. (RAMO S, 1981, p. 157). Dois anos depois da publicação de Infância, Insônia é publicada. Pouco antes de morrer, Ramos viaja com sua esposa à União Soviética e os.

(38) 37. relatos dessa viagem são publicados em 1954, em outra obra póstuma, Viagem. Além dessas obras de Ramos, acima citadas, podemos ainda destacar a publicação de Caetés, em 1933 (sua primeira obra) e São Bernardo, em 1934. Vidas Secas, publicado em 1938, é considerado pela. crítica. como. seu. romance. de. maior. importância,. dado,. principalmente, a sua abrangência de temas. Adoeceu, gravemente, em 1952 e morreu, na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de março de 1953, aos 60 anos de idade.. 3.2.. RAMOS: O LIRISMO DO MEMORIALISTA Analisando as obras do escritor, ao longo de sua carreira,. podemos dizer que Graciliano é um memorialista. As reminiscências são retomadas em várias de suas obras, em especial, Infância. Podemos dizer que é a obra-prima que representa a própria anatomia do interior do autor Graciliano, desde sua infância. Aqui, a literatura serve de instrumento para narrar partes de sua vida em sua amplitude, retratando a cultura de um povo, de uma região e. de. toda. uma. realidade. político-social. de. uma. sociedade,. um. posicionamento. em. determinada época. Em. Infância,. a. denúncia. social. é. com. aspirações contrárias em relação às agruras da vida sertaneja, sem grandes. perspectivas. possibilidades. em. e,. assim,. destinos. se. configura,. parcos,. em. dentro. narrativas. de. poucas. monótonas,. minguadas e repetitivas. Nisso, as relações humanas são mínimas: os acontecimentos. são. descritos. à. exaustão,. aos. mínimos. e. ricos. detalhes, como se o narrador, assim, acabasse por inserir o leitor nas cenas ou como se estivéssemos in loco e fôssemos testemunhas daquelas interações previsíveis. A narrativa de Ramos, normalmente, não obedece a expectativas lineares. Seu estilo foge do lirismo convencional, suas escolhas são propositais,. variam. entre. o. que. deve. “perecer”. e. o. que. deve.

Referências

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