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A música rap chegou ao Brasil de forma quase clandestina. Importados dos Estados Unidos, os primeiros discos de rap vieram misturados aos discos de funk e soul trazidos por produtores musicais e disk jockeys brasileiros para a realização dos grandes bailes black. Esses bailes ganharam notoriedade em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, a partir da década de 1970, como festas dançantes animadas, principalmente, pelos gêneros rock, pop music e soul. Destinados às camadas mais populares, os bailes black contavam com uma grande estrutura de som e equipamentos de iluminação. Alguns desses eventos chegaram a reunir mais de cinco mil pessoas em espaços como a tradicional casa de espetáculos carioca Canecão, causando transtorno na vizinhança por causa do som alto e do grande número de pessoas que atraía.

Não é difícil supor que, em pouco tempo, a disponibilidade de espaços para a realização dos grandes bailes cessou. No Rio de Janeiro, os organizadores foram obrigados a transferir os bailes black para a zona norte da cidade. Ali, no subúrbio, os bailes vicejaram, trazendo junto com os ritmos dançantes o engajamento da música negra norte-americana, cujas mensagens de protesto e contestação contidas em algumas canções não era compreendidas pelo público brasileiro. Ainda assim, as equipes tentavam sensibilizar os freqüentadores dos bailes para o estilo “black is beautiful” da época.

No pacote musical importado dos Estados Unidos, alguns raps eram incorporados ao repertório dos bailes, despertando o interesse de parte do público freqüentador e acentuando as diferenças entre os estilos das músicas funk e rap. De acordo com Micael Herschmann, foi a partir dos anos 80 que o hip hop começou a encontrar espaço para se desenvolver no país, especialmente na cidade de São Paulo.

O hip hop ‘nacional’ surgiu em meados da década de 1980, nos salões que animavam a noite paulistana no circuito negro e popular dos bairros periféricos

e contou, nos seus primeiros eventos, com a forte presença de grupos norte- americanos e alguns poucos expoentes brasileiros. (2005: 25)

A disseminação do hip hop entre os jovens das periferias, subúrbios e favelas dos grandes centros urbanos do Brasil ocorreu paulatinamente. Primeiro com a execução dos primeiros raps norte-americanos, depois com os filmes e as exibições de break. Em seguida vieram as competições de dança de rua, a formação dos primeiros grupos de rap nacionais e a produção de grafites coloridos em muros e paredes de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

De maneira análoga ao que ocorreu nos Estados Unidos, o hip hop no Brasil conquistou seus primeiros apreciadores junto a um público inserido em um processo de estigmatização social (e racial): jovens marginalizados, desempregados, trabalhadores informais ou com pouca qualificação profissional, confinados em bairros pobres e desassistidos onde – não raras vezes – a violência e o preconceito deixam registradas as suas marcas. Inspirados na filosofia do confronto social que caracterizou a sociedade norte-americana nas últimas décadas do século XX, os rappers brasileiros descobriram a música como meio de expressão e enfrentamento contra a ordem social discriminatória vigente. Em artigo que analisa a auto-representação de grupos marginalizados, Regina Dalcastagnè destaca que:

Mais do que na literatura, a busca de auto-expressão dos grupos dominados sempre passou pela música popular e, nessa, hoje, em especial pelo rap – que também possui uma estrutura eminentemente discursiva e narrativa. Trata-se da procura consciente de uma voz própria, genuína, como mostram a ênfase ininterrupta na afirmação da diferença em relação á experiência de vida dos

playboys [...] e a enunciação insistente do nome do rapper, em meio às letras”

(DALCASTAGNÈ, 2007:29)

Espécie de manifesto cultural, os raps buscam conscientizar os “manos”22 sobre a importância da coesão do grupo em torno de princípios como o orgulho de ser negro, o compromisso com a própria comunidade e a negação do crime como forma de ação. Esse posicionamento conferiu ao rap nacional o status de gênero musical politizado. Em entrevista concedida à revista Carta Capital, o rapper brasileiro Mano Brown reconhece a força dos versos e da música do rap como veículo de comunicação. Para o cantor e compositor, o rap “faz o que nenhum outro veículo faz: conta a verdade como ela é e aponta soluções. É direcionado ao povo

negro, apesar de muitos brancos ouvirem. Mas, em sua essência, é uma música negra, para negros” (2004:13).

De início, o hip hop mobilizou apenas a juventude negra com pouca qualificação profissional, que vivia na periferia e trabalhava nas grandes cidades, em ocupações mal remuneradas. Entretanto, as batidas do rap ganharam as ruas e – com o passar dos anos – transformou-se em produto da indústria cultural. Por meio de um processo de midiatização, o rap repercutia nas rádios, em programas de TV e até em comícios políticos. O resultado dessas ações foi a popularização do gênero musical, que rompeu a fronteira étnica e social para conquistar público, também, entre os jovens brancos mais abastados. Corrobora com esse entendimento a afirmação de que “alguns ‘playboys’ já descobriram o rap, e desfilam em carros com os ‘hits’ do Racionais MCs em alto e bom som; muitos roqueiros e sambistas já reservam bons momentos de suas vidas sonoras para conhecer e curtir o ritmo criado pelos DJs” (GEREMIAS, 2006:7).

A questão do enquadramento da cultura hip hop como uma manifestação característica da população preta23 e pobre das periferias das grandes cidades brasileiras tem respaldo no modelo midiatizado dos Estados Unidos e, de acordo com Mickey Hess, também se repete nas discussões sobre o rap canadense, holandês e francês, que enxerga a imagem do hip hop afro-americano como a imagem do verdadeiro hip hop (2005:1). No Brasil, a questão da identidade étnica abordada nos raps nacionais evidencia a dicotomia entre brancos e negros também na forma de “playboys” e “manos” e pobres e ricos. O fato de haver mais negros, mestiços e afro- descendentes entre a população jovem pertencente às camadas pobres da população pode explicar o sentido de representação que esse grupo experimenta diante dos versos dos raps. Pode, também, ajudar a explicar a construção de um imaginário social que identifica o gênero rap à juventude morena e inquieta das comunidades, dos grupos de office-boys, moto-boys e população carcerária. Entretanto, na realidade brasileira, a cisão social se mostra mais evidente do que a racial e, do ponto de vista do mercado consumidor, há anos o gênero rap expandiu suas fronteiras e conquistou adeptos entre a juventude mais abastada das classes média e alta.

Seguindo o modelo norte-americano, a indústria fonográfica nacional lançou um rapper branco no mercado no ano de 1993: era Gabriel, o Pensador. Jovem carioca que cresceu na Zona Sul, longe das dificuldades e dos problemas sociais existentes nos morros, Gabriel gravou seu

22 Forma de identificação usada pelos integrantes das comunidades hip hop para designar seus pares, seus iguais. 23

primeiro disco pelo selo de uma grande gravadora, a Sony, no ano de 1993. Com uma temática de crítica social bem humorada, o cantor conseguiu vender mais de um milhão de cópias do seu terceiro CD, Quebra Cabeça, no ano de 1997. Ao contrário do que aconteceu com outros artistas e grupos de raps nacionais, Gabriel, o Pensador teve espaço em programas televisivos de auditório e músicas executadas à exaustão em estações de rádio de freqüência modulada.

Filho de uma jornalista que, à época do seu lançamento como cantor, trabalhava como assessora de imprensa do Presidente da República, Gabriel deixou de fazer parte do elenco de artistas da gravadora Sony no ano de 2006, depois que gravou o CD Cavaleiro Andante. Apesar da sua performance no mercado fonográfico, o rapper carioca Gabriel, o Pensador, não é reconhecido dentro da cultura hip hop como uma unanimidade do rap.

O processo de nacionalização do rap, na década de 1990, marcou o ponto de distanciamento entre a temática funk e a temática rap. A primeira, mais dançante e bem- humorada, optou pelo caminho da erotização, com coreografias que remetem à sexualidade dos jovens, como a ‘dança da bundinha’ ou a ‘dança da motinha’. A segunda traduziu-se pelo engajamento político, pelo protesto e pelas reivindicações do movimento negro. Isso não quer dizer que o rap não seja estigmatizado. Ele o é. Entretanto, goza de um pouco mais de legitimidade em razão do hip hop ser compreendido como uma expressão cultural.

O hip hop no Brasil não funciona como nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos ele uniu a música, a dança, a arte de desenhar nas paredes [...]. Os caras passavam para a parede e para a dança aquilo que eles diziam nas músicas. Aqui a realidade é outra, entendeu? As pessoas não dançam nas ruas, as pessoas quase não grafitam, são poucos os caras que fazem isso. O rap fala diretamente ao povo, saca? É uma música mais forte do que foi a música de protesto na época da ditadura [...]. Nos Estados Unidos, você atinge o cara pela dança e pelo grafite e aqui isso acontece muito pouco. O canal é o rap, sacou? (KDJ apud HERSCHMANN, 2005: 202)

A partir do trabalho de Micael Herschmann (2005) e contatos preliminares com rappers e DJs é possível identificar no discurso de alguns jovens ligados ao movimento hip hop a aspiração de tornarem-se referência ou exemplo para o seu público e comunidade. Em Brasília, o rapper Dino Black afirmou considera-se o porta-voz da periferia (BLACK, 2008). Ainda de acordo como Geremias, “a experiência de alguns no mundo da cultura serve, então, como um espelho,

um exemplo de que é possível ‘sair do gueto, muito embora o gueto nunca saia de você’” (2006:95).

A consolidação do rap no Brasil foi favorecida pelo sucesso do movimento nos Estados Unidos. Puxada pela identificação da juventude das favelas e periferias com as “armas ideológicas”24 produzidas por grupos como Racionais MCs, Pavilhão 9 e Câmbio Negro, a música rap ganhou notoriedade e vendeu milhares de discos. A descoberta desses artistas e o despertar para suas músicas parecem romper com uma imagem idílica do Brasil, país formado por várias raças, aonde não há racismo e nem guerras ou sinais de violência. No lugar dessa visão, o retrato que se vê é a de uma nação socialmente fragmentada, cuja sociedade convive com enormes contrastes advindos de uma perversa concentração de renda e profundas carências estruturais (HERSCHMANN, 2005).

As representações promovidas pelos rappers sugerem um Brasil hierarquizado e autoritário. Revelam, assim, os conflitos diários enfrentados pelas camadas menos privilegiadas da população: repressão e massacres policiais; a dura realidade dos morros, favelas e subúrbios; a precariedade e a ineficiência dos transportes coletivos; racismo e etc.

Nessas representações associadas ao cotidiano duro e violento das periferias, parte da juventude das periferias se reconhece e expressa seu descontentamento. Mano Brown, compositor e MC do principal grupo de rap do país, o Racionais MCs, denuncia os contrastes sociais resultantes da estrutura sociopolítica do Brasil idílico no rap ‘Fim de semana no parque’:

Malicioso e realista sou eu Mano Brown

Me dê quatro motivos para não ser

Olhe o meu povo nas favelas e vai perceber Daqui eu vejo uma caranga

Toda equipada e um tiozinho guiando Com seus filhos ao lado

Estão indo ao parque

Eufóricos, brinquedos eletrônicos Automaticamente eu imagino A molecada lá da área como é que ta Provavelmente correndo para lá e para cá Jogando bola

Descalços nas ruas de terra Brincam do jeito que dá Gritando palavrão

24 Em entrevista concedida à revista Showbizz (1998) e replicada em citações verbais e artigos, os rappers KL Jay

É o jeito deles

Eles não têm videogame Às vezes nem televisão

Mas todos eles têm São Cosme e Damião A única proteção.

As mensagens contidas em grande parte dos raps nacionais são interpretadas pelo aparato de segurança pública como potenciais incitadores de violência, racismo e conflitos. Essas letras, entretanto, têm o mérito de projetar a realidade das favelas e das periferias por toda a sociedade, além de inserir um imenso contingente de jovens pobres e socialmente invisíveis no imaginário coletivo. Algumas músicas, classificadas dentro do estilo gangsta rap25, fazem apologia ao crime. Por essa razão, os eventos que contam com a participação de break-boys, DJs e MCs são alvos constantes da vigilância e da perseguição de policiais no Brasil.

A preocupação com a estigmatização e as constantes cobranças decorrentes, principalmente, da “conscientização política” atribuída ao discurso do hip hop fizeram com que os jovens ligados ao Movimento adotassem uma espécie de código de conduta, através do qual poderiam influenciar na formação das gerações mais novas. Nesse sentido, Herschmann lembra que no Brasil:

Os b-boys cobram de cada um dos membros uma vida sem ‘vícios’, um engajamento e uma postura, muitas vezes, rígidos, que devem estar expressos, inclusive e principalmente, na arte que realizam. Boa parte dos entrevistados durante a pesquisa se dizia contra o sexo livre, as bebidas e as drogas de modo geral. (HERSCHMANN, 2005: 195)