• Nenhum resultado encontrado

Carregamos todos uma história feita de traços comuns ao mesmo ofício.

Miguel Arroyo

Ingressei no magistério em 1988 como professora estagiária, contratada pela Rede Pública Estadual de São Paulo. Atuando no 1º ciclo do ensino fundamental (1ª a 4ª série), numa escola situada na periferia de São Bernardo do Campo, meu trabalho consistia em acompanhar a prática das professoras, para adquirir experiência e substituir suas eventuais faltas. A realidade, contudo, era bem diferente. Como havia 18 salas de aula e eu era a única estagiária da escola, quase todos os dias assumia uma sala diferente. Com isso, poucas vezes pude, de fato, acompanhar a prática das professoras, objetivo primeiro do estágio.

Nessa época, vivenciei um momento bem característico da profissão enquanto professora estagiária: não me sentia parte do grupo; algumas professoras demonstravam claramente que não apreciavam a presença de estagiárias na sala de aula; e não era convidada para participar do HTPC. Sinto que, profissionalmente, esse foi o momento mais difícil que enfrentei, pois se tratava de um trabalho desarticulado: um dia estava na 1ª série; outro dia, na 4ª; outro dia, na 2ª; isso tudo sem nenhuma experiência anterior como professora. Esse momento, porém, teve, obviamente, aspectos positivos significativos, dentre os quais destaco o fato de ter descoberto minha preferência pelas séries iniciais de alfabetização e adquirido experiência profissional por meio do acompanhamento de boas práticas de algumas professoras e das substituições que realizava. Podia-se considerar que o clima característico nessa unidade escolar era baseado na cultura do individualismo.

No ano seguinte, em 1989, defrontei-me com a necessidade de assumir, em caráter permanente, uma sala de aula, pois o número de professores era insuficiente para o número de classes, uma vez que muitas deles haviam solicitado remoção para escolas menos “afastadas”. Nesse momento, já pude constatar o que considero uma característica inerente à cultura das escolas: quem tinha mais pontos em seu

curriculum transferia-se para escolas mais centrais e “melhores”, como diziam

algumas professoras. Tal mudança ocorria mediante a remoção anual de professores, portanto as escolas de periferia, de maneira geral, ficavam com o quadro docente incompleto, composto em sua maioria por professores jovens, com pouca experiência no magistério. Dessa maneira, a periferia ficava quase sempre – e ainda fica – em desvantagem em relação às escolas mais centrais e mais bem localizadas. Em virtude dessa situação, as estagiárias acabavam assumindo algumas classes.

Assim, assumi uma classe de primeira série, até por falta de opção, porque eu era a última da escala de escolha de classes. Nesse momento, pude identificar outra característica da cultura das escolas, uma espécie de rito de iniciação em que os professores mais inexperientes sentiam-se obrigados a ficar com as turmas de 1ª série ou com as classes consideradas pelos mais experientes como “salas- problema”. Tratava-se, implicitamente, de salas com dificuldade de alfabetização, implicando um trabalho que aqueles professores mais experientes, que faziam parte do quadro docente da escola havia mais tempo e que, portanto, tinham certos

privilégios, não precisariam mais ter, afinal, no dizer deles, já haviam “sofrido o suficiente” e que “seria a vez dos mais novos”.

As séries iniciais (1ª e 2ª séries) eram consideradas mais trabalhosas pelos professores, porém, contraditoriamente, eram assumidas pelos professores mais inexperientes, sem uma maior reflexão crítica a respeito dessa situação pedagógica e de suas conseqüências para a aprendizagem dos alunos. Ora, se nessas séries era mais difícil se desenvolver um trabalho pedagógico, por que deveriam ser assumidas pelos professores mais inexperientes da escola? O principal problema a ser enfrentado e resolvido não seria a dificuldade de aprendizagem dos educandos? Essa característica de desconsiderar uma reflexão em situações como a acima citada demonstra, a meu ver, uma atitude de omissão de diretores, coordenadores e professores. Assim, considero que, nessa escola, questões sérias do cotidiano pedagógico eram consideradas corriqueiras, sem nenhuma relação com a aprendizagem dos alunos, demonstrando, por parte dos educadores, uma dificuldade em identificar e assumir as reais causas dos problemas enfrentados no cotidiano escolar, bem como em refletir acerca da própria prática. Isso evidencia, portanto, uma ausência de planejamento e avaliação do trabalho pedagógico, visto que o planejamento “deve ser concebido, assumido e vivenciado no cotidiano da prática social docente, como um processo de reflexão” (Fusari, 1990, p. 45).

Fusari (1992), discorrendo sobre a formação contínua em serviço, aponta a importância da reflexão crítica e coletiva sobre o cotidiano escolar. Para o autor, é necessário viabilizar um planejamento que considere a análise do conjunto de atividades que constituem a organização da escola como um todo, tais como: matrícula; agrupamento dos alunos; atribuição de aulas e elaboração de horários, entre outras. Além disso, aborda a relevância de tais situações coletivas para a formação da equipe escolar, destacando o papel do diretor nesse processo. Assim, de acordo com Fusari (1992):

... isto não deve ser fruto de um acaso e sim de uma formação de educadores nos cursos regulares, nas situações de capacitação oferecidas pelo Estado, e também de um trabalho realizado no cotidiano da Escola, no seu dia-a-dia, no qual, liderados pelos

diretores, os demais educadores escolares crescem em

Realizando uma retrospectiva crítica, penso nos tantos erros cometidos e nas dúvidas acumuladas. Contudo, apesar das muitas dificuldades, a experiência como professora estagiária foi significativa, pois contribuiu para minha reflexão sobre a organização do cotidiano escolar e algumas características inerentes a sua cultura.

Segundo alguns autores (Silva, 1998; Glatter, 1995; Fullan e Hargreaves, 2000), a cultura escolar é fator determinante nas relações entre os sujeitos envolvidos no processo educativo, portanto, do ponto de vista que analiso e defendo nesta investigação, esse tipo de cultura influencia fortemente a formação dos professores em serviço, já que:

Se existe o sujeito humano, existe também a experiência humana, que é a prática com significado para quem realiza. Se existe o significado, existe a cultura, com suas diversas possibilidades de compreender o real (Silva, 1998, p. 77).

Penso que a experiência por mim vivenciada foi importante para definir a profissional na qual fui me constituindo e, nesse sentido, a prática como estagiária foi determinante para minhas ações posteriores como diretora escolar, já que em minha vivência pude constatar a omissão de alguns diretores em questões que interferem significativamente na formação da equipe escolar e na qualidade de ensino. Segundo Fullan e Hargreaves (2000, p. 47), “entre os vários fatores que moldam a espécie de pessoa e de professor, um dos mais importantes é a maneira como as escolas e os diretores os tratam’’.

Em 1990, assumi outra sala e, nesse mesmo ano, passei no concurso público estadual de professores de 1ª a 4ª série. Assim, depois de ter trabalhado durante três anos como professora estagiária, assumi uma sala efetiva na rede estadual.