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FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO

2.1 INSERÇÃO DA MULHER NA EDUCAÇÃO ESCOLARIZADA E A CONQUISTA DO MAGISTÉRIO

A exclusão feminina do mundo escolarizado perdurou até o século XIX, quando as meninas passaram a ter o direito de adquirir instrução fora do espaço doméstico, em colégios, inicialmente particulares, depois em escolas públicas, mas, mesmo assim, envoltas em um clima de muito preconceito, já que até então a educação feminina era ministrada nos lares ou em capelas sob a tutela da igreja e consistia em um ensino muito limitado, sem aprofundamento, principalmente em áreas como história e geografia, com direito a aprender somente uma língua

42 estrangeira, preferencialmente o francês, o que evidencia, conforme Marta Leoni Lima (1997), a limitada educação que era direcionada às mulheres.

Até o início do século XX, a mulher fora educada para se adaptar aos modelos sociais de boa conduta feminina e, mesmo nesse período, apesar dos avanços científicos e tecnológicos, as convenções sociais permaneciam quase intactas uma vez que ainda eram dominantes no imaginário social princípios que vetavam à mulher o acesso ao mercado de trabalho (salvo raras exceções), ao meio intelectual ou aos estudos mais avançados, que eram destinados aos homens. Segundo a concepção da época, o trânsito de mulheres nesses espaços poderia corrompê-la e causar uma espécie de “degeneração da frágil natureza feminina”. Por isso, durante séculos, a mulher foi impedida de freqüentar a escola, considerada imprópria para elas.

As significativas mudanças socioeconômicas que ocorrem em âmbito mundial no século XIX e na primeira metade do século XX processo de urbanização e industrialização, implantação do regime republicano no Brasil, duas guerras mundiais, avanços tecnológicos provocaram modificações nas formas do ser humano se organizar socialmente. O avanço do sistema capitalista e as novas relações de trabalho estabelecidas bem como os novos postos de trabalhos criados exigiram uma reestruturação nas várias áreas sociais, principalmente, no campo educacional. Assim, em decorrência do crescente avanço industrial e tecnológico, o ensino precisou se tornar mais especializado e técnico para atender às novas demandas dos trabalhadores, que buscavam qualificação profissional. (TANURI, 2000).

Essas conquistas tecnológicas, representadas, principalmente, pelo avanço dos meios de comunicação, foram muito bem utilizadas pelas mulheres para difundir seus ideais de igualdade e denunciar a opressão que vivenciavam no modelo de sociedade patriarcal11 e, assim, no início do século XX, o movimento

11 “O patriarcado é uma ordem social de gênero, com base em um modo de dominação no qual o homem é o paradigma. Essa ordem assegura a supremacia dos homens e do sexo masculino sobre a inferioridade prévia das mulheres e do feminino. É também uma ordem de dominação de alguns homens sobre os outros e de alienação entre as mulheres”. Tradução nossa do original de Marcela Lagarde: “El patriarcado es un orden social

genético de poder, basado en un modo de dominación cuyo paradigma es el hombre. Este ordena segura la supremacía de los hombres y de lo masculino sobre la inferiorización previa de las mujeres y de lo femenino. Es asimismo un orden de dominio de unos hombres sobre otros y de enajenación entre las mujeres” (1997, p. 52).

43 feminista desponta com várias reivindicações, dentre as quais o direito ao voto como meio de alcançar maior participação política e social. Com ações organizadas nas ruas e praças públicas, as mulheres romperam com a “clausura” do espaço doméstico formando um movimento organizado que passou a exigir do Estado e da sociedade civil a igualdade de direitos e o direito à educação e à profissionalização.

O movimento feminista organizado, no Ocidente, foi um fenômeno do século XIX, segundo Guacira Louro (2008): a sua “primeira onda”12

data da virada para o século XX quando as manifestações contra o sexismo adquiriram visibilidade e expressividade, com o chamado sufragismo, que visava a extensão do direito de voto às mulheres. Após o alcance dessa meta, seguiu-se uma desaceleração do movimento que, no final da década de 60, retoma novo fôlego, com a chamada “segunda onda”, não mais apenas com preocupações políticas e sociais, mas começando a investir em formulações teóricas que penetraram as Universidades por meio de militantes feministas que ali se encontravam.

O objetivo das estudiosas feministas, nos primeiros tempos, foi tornar a mulher visível como sujeito da Ciência. Dessa forma, os estudos iniciais se caracterizam pela descrição das condições de vida das mulheres em diferentes instâncias e espaços, na tentativa de evidenciar as desigualdades entre os sexos, denunciando a opressão e a subordinação feminina. Seu grande mérito foi transformar a mulher em tema central, colocá-la em evidência, o que se deu por meio da descrição, da crítica ou mesmo da celebração das características tidas como femininas já que, anteriormente, a mulher era vista como exceção, como um desvio à norma masculina.

As feministas do início do século XX acabaram reforçando esse discurso como estratégia para que as mulheres pudessem ter acesso à instrução e se inserir em uma profissão de forma a alcançar a tão sonhada independência financeira. Ao reafirmarem o discurso masculino sobre as funções essenciais atribuídas às

12 A “primeira onda” do feminismo se refere a um período intenso e longo de atividade feminista ocorrido durante o século XIX e meados do século XX, partindo do Reino Unido e dos Estados Unidos e se alastrando pelo resto do mundo. Daí a utilização do nome

onda, alusão ilustrativa ao movimento de ondas produzido por uma pedra lançada em um

lago. Assim foi o feminismo, um movimento que teve seu centro de origem, principalmente, nos Estados Unidos e que se dispersou por outros espaços, por outros países, cujo foco de reivindicação, originalmente, foi a promoção da igualdade, nos direitos contratuais e de propriedade, para homens e mulheres, e, depois, nos direitos politicos, que o tornou conhecido como movimento sufragista.

44 mulheres, as feministas, estrategicamente, evitavam o confronto e o desgaste, esquivando-se do rigor dos mecanismos de controle masculino. Assim, segundo Jane Almeida, a persuasão e o convencimento mais do que a luta e o enfrentamento, se tornaram estratégias mais eficazes, naquele momento, para o alcance de seus objetivos.

Nos primeiros anos do século XX, algumas conquistas femininas permitiam às mulheres freqüentar escolas, porém não as universidades; tinham a possibilidade de trabalhar no magistério, mesmo ganhando pouco, e possuíam um pouco mais de liberdade, embora severamente vigiada. (1998, p. 37).

Embora o discurso em voga fosse o de que a educação aprimoraria, na mulher, seus atributos supostamente “naturais”, o acesso à educação se configurou como o primeiro passo de um processo de emancipação que atingiu seu ápice no final do século XX. Contudo, não podemos nos esquecer de que “na realidade, o fim último da educação era preparar a mulher para atuar no espaço doméstico e se ocupar do cuidado do marido e filhos, não se cogitando que pudesse desempenhar, efetivamente, uma profissão assalariada”, ainda segundo Almeida (1998, p. 19).

Naquele período, a ideologia positivista de higienização social voltava suas preocupações, principalmente, para a moralidade e os bons costumes e para a manutenção da família patriarcal. Daí porque foi construído o discurso de que a mulher possuía a virtude da moralização social, sendo seus atributos de mãe e esposa cada vez mais destacados e valorizados, um discurso que, tacitamente, criou impedimentos para que ela mesma viesse a se interessar por assuntos que fugissem à órbita doméstica. Desse modo, a ideologia difundida pelo pensamento positivista tentava legitimar na sociedade a ideia de que a principal aspiração feminina deveria ser o casamento, razão pela qual, de acordo com Jane Almeida,

[...] a concepção implícita na freqüência das escolas normais pelas mulheres, e na educação feminina de um modo geral, continuava atrelada aos princípios veiculados de ela ser necessária, não para seu aperfeiçoamento ou satisfação, mas para ser esposa agradável e mãe dedicada. Isso também legitimava sua exclusão de outros níveis de ensino e justificava currículos que privilegiavam prendas domésticas em detrimento de outras disciplinas. (1998, p. 62).

45 Como a sociedade passava por um processo de reestruturação em que novas relações de trabalho eram estabelecidas e o Capitalismo se consolidava cada vez mais, a moralidade burguesa passou a combater a ociosidade e investiu, segundo Susan Besse (1999), no enaltecimento da ocupação, condenando a desocupação, o “parasitismo” das mulheres (burguesas) que ficavam em casa à toa, sem fazer nada, terminando a mulher por incorporar essa ideologia da supervalorização do trabalho e passando a ver, como toda a sociedade, o tempo ocioso (comum, na realidade doméstica das mulheres das camadas médias e altas da sociedade) como tal.

Para a nova ordem social, seria incoerente manter as mulheres imersas no parasitismo, contudo, não era sensato inseri-las em qualquer atividade laboral devido às implicações morais. Nesse sentido, a educação da infância foi considerada a atividade ideal a ser exercida pelas mulheres, pois, além de não oferecer riscos à moral feminina, estas já possuíam o “nato” dom de educar, devido à maternagem, além de atributos como delicadeza, zelo e docilidade, fundamentais ao exercício do magistério, que passou então, a ser considerada a profissão ideal para elas. No discurso burguês, essa profissão deveria ser exercida com amor e dedicação e seu exercício pressupunha abnegação, um verdadeiro sacerdócio, com um valor mais moral do que social, portanto, uma profissão ideal para a mulher. (LOURO, 1997). Graças a esse discurso androcêntrico sobre a relação entre docência e maternagem, houve uma crescente desvalorização do magistério primário, visto que, considerando-se a mulher como naturalmente apta a exercê-lo, não haveria mais porque se preocupar com a profissionalização dessa atividade: bastava a vocação.

Esse discurso foi utilizado, então, como estratégia, pelo próprio movimento feminista na tentativa de romper com o confinamento do espaço doméstico, para conseguir uma rápida inserção das mulheres no campo de trabalho, na busca da tão sonhada independência financeira e, aos poucos, como forma de se libertar da dominação e opressão a que eram submetidas na sociedade patriarcal.

De fato, o sistema de dominação patriarcal com o qual as mulheres conviviam (e ainda convivem) socialmente gerava conseqüências negativas, como a limitação de sua liberdade e de sua autonomia, comprometendo suas conquistas pessoais e profissionais. Entretanto, não podemos conceber que as mulheres tenham aceitado essa imposição passivamente, pois, ao contrário, mesmo sob

46 condições de muita opressão, as mulheres recriavam estratégias para subverter em seu favor a dominação masculina.

O poder é algo que se exerce, de que ninguém tem a posse ou o controle total, diz Michel Foucault (2008, p. 99): “O poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação”.

[...] não se pode tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder − desde que não seja considerado de muito longe – não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. (FOUCAULT, 2008, p. 103).

Assim, segundo Foucault, o exercício da dominação não ocorre de forma unilateral entre os envolvidos no processo. Todo sujeito, na dinâmica de suas relações sociais, possui a sua parcela de poder, ainda que essas não sejam paritárias. Assim, não sendo as relações de poder unilaterais, não havendo, portanto, indivíduo que, dentro de um sistema de relações sociais, seja desprovido de poder, para toda dominação, há sempre manifestações de resistência. No caso das mulheres, elas conseguiram subverter a dominação masculina burlando o poder dominante, melhor dizendo, exercendo a sua parcela do poder de resistência ao se reapropriarem do discurso androcêntrico em favor de seus interesses. Sobre isso, diz Rachel Soihet:

Por outro lado, a incorporação da dominação não exclui a presença de variações e manipulações, por parte dos dominados. O que significa que a aceitação, pela maioria das mulheres, de determinados cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente, construir um recurso que lhes permita deslocar ou subverter a relação de dominação. Compreende, dessa forma, uma tática que mobiliza para seus próprios fins uma representação imposta-aceita, mas desviada contra a ordem que a produziu. Assim, definir os poderes femininos permitidos por uma situação de sujeição e de inferioridade significa entendê-los como uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina, contra o seu próprio dominador. (1997, p. 12).

47 Nesse contexto, o magistério significou para as mulheres a oportunidade de subverter o discurso androcêntrico a favor de seus reais interesses de emancipação e conquista da independência financeira.

Outro fator preponderante para a inserção da mulher no magistério foram as então novas concepções sobre a Educação que, com o Movimento Escolanovista da década de 1930, passou a ser vista como redentora social, como sustentáculo do progresso e da modernização social, levando a um maior investimento na educação, ao aumento do número de vagas na rede de ensino do país (LUCKESI, 1994) e, consequentemente, à ampliação das vagas para a atuação docente, tornando propícia a absorção do grande contingente feminino com o curso de magistério. Além disso, a abertura de novos campos de trabalho, devido ao crescimento do sítio industrial no Brasil, fez com que os homens migrassem da educação para outras profissões melhor remuneradas, ampliando ainda mais o número de vagas nas cadeiras do magistério.

Não restam dúvidas de que a profissão docente foi fundamental na conquista da independência econômica das mulheres, principalmente, das classes médias e populares, que não conseguiam, com o casamento, a tão desejada ascensão social, muito comum nas elites, e que encontraram no magistério um meio de garantir sua independência financeira, além da possibilidade de inserção no espaço público e do acesso a níveis escolares cada vez mais altos, como a Universidade, por exemplo, que se tornou inevitável. Finalmente, também para as mulheres das classes populares, essa era uma forma de não depender da caridade alheia para sobreviver, pois, ao terem uma profissão poderiam obter os meios de se sustentar e viver dignamente.

O exercício de uma atividade remunerada para as mulheres das camadas mais abastadas da sociedade, diferentemente das mulheres das camadas menos privilegiadas para as quais o trabalho fora do lar já fazia parte da rotina, sendo mesmo necessário à subsistência, foi algo novo. Além disso, ao exercer uma profissão, as mulheres, além de saírem da esfera doméstica, passaram a ter maior liberdade e autonomia em um mundo em que o homem era o dominante. Conforme Jane Almeida:

Durante muito tempo a profissão de professora foi praticamente a única em que as mulheres puderam ter o direito de exercer um

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trabalho digno e conseguir uma inserção no espaço público, dado que os demais campos profissionais lhes foram vedados. O fato de não ingressarem nas demais profissões, acessíveis somente ao segmento masculino, e a aceitação do magistério, aureolados pelos atributos de missão, vocação e continuidade daquilo que era realizado no lar, fizeram que a profissão rapidamente se feminizasse. (ALMEIDA, 1998, p. 23).

Contudo, o processo de desvalorização pelo qual passou a profissão de professor, iniciado ainda no século XIX e acentuado ao longo do século XX, foi, equivocadamente, atribuído ao ingresso das mulheres nessa profissão. Jane Almeida (1998), entretanto, relaciona a feminização do magistério aos processos de mudança atrelados à divisão sexual do trabalho e às relações patriarcais de classe, afirmando que esse processo de desqualificação ocorreu independentemente de serem os homens e/ou as mulheres maioria nesses campos de trabalho. Essa desvalorização se deveu, dentre outros fatores, às novas conjunturas socioeconômicas e aos recentes imperativos ideológicos liberais para os quais as atividades de cunho social voltadas para os segmentos menos favorecidos da sociedade careciam de prestígio e de valor, tanto no plano simbólico quanto no plano material, ou seja, econômico.

No sistema capitalista áreas de trabalho voltadas para obras sociais tendem a sofrer desqualificação. As profissões voltadas para a elite e para o sistema produtivo e tecnológico sempre se encontram mais qualificados, prestigiados e bem remunerados. (ALMEIDA, 1998, p. 63).

Não podemos esquecer, ainda, que a ocupação do magistério pelas mulheres não foi livre de conflitos e questionamentos, uma vez que essas representavam uma ameaça aos homens que, em consequência disto, perderiam espaços e favoritismo na profissão. Sobre isso, reflete, ainda, Jane Almeida:

[...] o trabalho que desenvolveram [as mulheres] no magistério fez parte de um movimento muito maior na educação e na sociedade, por desafiar os preconceitos do patriarcado e da existência feminina num meio eminentemente masculino. Atitudes que levaram a questionamentos da própria condição feminina e dos papéis sexuais desempenhados por homens e mulheres e do trabalho realizado por professores e professoras. (1998, p. 77-8).

49 Logo, aceitar a ideia de que o ingresso das mulheres no magistério promoveu a desvalorização de uma profissão que sempre foi mal remunerada por sua própria configuração e razão social é admitir uma concepção reducionista, estereotipada sobre o ser feminino, pautada na suposta inferioridade sexual e nas assimétricas relações de gênero.

Inserir-se no magistério primário significou para as mulheres sair de um lugar invisível, individual, para a visibilidade, o coletivo, o social. A partir de sua inserção na profissão docente, as mulheres, aos poucos, foram conquistando espaço, ingressaram na Universidade e, por conseguinte, passaram a ocupar novas profissões mais prestigiadas socialmente. Contudo, a desvalorização e a desigualdade no magistério e em outras profissões, mesmo com as mulheres ocupando os mesmos cargos que os homens, permanecem até os dias atuais.