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4.5. Dever de lealdade

4.5.1. O insider trading

Entende-se por insider trading o uso de informação privilegiada, “por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários”. Em outras palavras, ocorre o ilícito em comento sempre que houver ofensa à regra prevista no artigo 155, §§ 1º a 4º, da LSA.58

58 Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus

negócios, sendo-lhe vedado: (...)

§ 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários.

§ 2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de subordinados ou terceiros de sua confiança.

§ 3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já conhecesse a informação.

§ 4o É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)

71 Em detalhes, o insider trading é a figura que, devido ao cargo que exerce na companhia, tem acesso a informações privilegiadas e sigilosas antes de divulgadas no mercado, e que têm o condão de modificar a cotação dos valores mobiliários da companhia aberta, utilizando-se dessas informações relevantes para obter vantagem para si ou para outrem.

Por conseguinte, é possível afirmar que o insider trading é o exemplo clássico de ofensa ao dever de lealdade. E sobre o cumprimento do dever de lealdade, é interessante anotar que, em determinadas situações, o insider será leal com a companhia se guardar segredo, ao passo que, em outras, a lealdade se dará com a ampla divulgação da informação. Por essa razão, cabe ao administrador, que é o detentor da informação privilegiada, ser leal não só à companhia, mas também ao cargo que ocupa, ao mercado e aos investidores.

Sobre o risco do insider trading, uma das maiores preocupações das companhias, em geral, é a troca constante de informações entre os órgãos sociais e os administradores da sociedade anônima, notadamente no que tange à especulação sobre as ações da companhia.

Por essa razão, o exercício de uma gestão transparente e a publicidade dos atos praticados, em relação aos membros dos órgãos sociais, são exemplos das medidas mais eficientes para combater o abuso do uso da informação, haja vista a possibilidade de se anular as operações realizadas, se comprovadas as irregularidades.

Ainda sobre os instrumentos profícuos de combate ao insider trading, é possível afirmar que a regulação da informação é um bom exemplo disso, já que é um meio eficaz de proteção do investidor, pois este, ao menos em tese, tem condições de decidir sobre o melhor investimento a ser realizado.

Os objetivos do conjunto normativo regulador são os seguintes: i) garantir o cumprimento do dever de diligência para os investidores; ii) prevenir as práticas do insider trading, estabelecendo a equidade entre os investidores.

Para prevenir a prática do insider trading, é possível citar algumas condutas eficazes para tanto:

i) o dever de informar deve ser capaz de socorrer a todos os participantes do mercado;

72 ii) a publicidade da informação deve garantir o acesso a todas as informações disponibilizadas;

iii) a publicidade das informações deve ser feita sistemática e organizadamente (levam-se em conta o horário da divulgação, o horário de funcionamento das bolsas etc.);

iv) redução da periodicidade da divulgação de algumas informações (resultados contábeis, exigida a cada três meses, na maioria dos mercados);

v) publicidade imediata dos fatos relevantes isolados.

Dito isto, é possível perceber que a repressão ao insider trading e à manipulação das informações são corolários naturais da adoção do princípio do disclosure. Por outro lado, a regulação do insider trading é uma medida, ao mesmo tempo, preventiva e repressiva. A primeira porque decorre da adoção, como princípios básicos, dos deveres de lealdade e de informar. A outra porque também ataca as condutas vedadas que são caracterizadoras do insider trading.

Nesse contexto, é relevante debater sobre a evolução normativa do insider trading no Brasil. Entre os anos de 1940 e 1976, as companhias abertas eram regidas pelo Decreto-Lei 2.627/40. Este fazia menção apenas singela da obrigação de prestar informações, pois exigia tal providência apenas de companhias estrangeiras, o que se demonstrou completamente ineficaz para a prevenção e/ou repressão do insider trading.

Nesse intervalo, a Lei nº 4.728/65 definiu que, dentre as competências do Banco Central do Brasil (BACEN), caberia a tal instituição “fiscalizar a utilização de informações não divulgadas ao público em benefício próprio ou de terceiros, por acionistas ou pessoas que, por força de cargos que exerçam, a elas tenham acesso” (art. 3o., X). Contudo, esse dispositivo, na prática, se mostrou ineficiente para vencer

a prática do insider trading e para criar estruturas fiscalizadoras.

Diante disso, a Resolução-BACEN nº 88, de 1968, procurou complementar a Lei 4.728/65, exigindo das companhias “compromisso formal de revelarem, prontamente, ao público, as decisões tomadas pela Diretoria e pela assembleia geral com relação a dividendos, os direitos de subscrição ou outros relevantes que possam afetar os preços dos títulos ou valores mobiliários de sua emissão, ou

73 influenciar as decisões dos investidores”59. Essa regra administrativa representou a

gênese, no âmbito normativo brasileiro, do que hoje se chama de “fato relevante”. Nessa esteira, com o advento da Lei nº 6.404/76, o insider trading passou a ser regulado de maneira taxativa, nos moldes preventivos e repressivos. E mais, paulatinamente, a proibição foi se expandindo para os demais atores do mercado, em razão das normas criadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Um exemplo disso é a Instrução Normativa CVM nº 31/8460 que, no seu artigo 11,

parágrafo único, alargou a vedação “a quem quer que tenha conhecimento de informação referente a ato ou fato relevante, sabendo que se trata de informação privilegiada ainda não divulgada ao mercado”.

Não satisfeita com isso, a CVM, em 2002, aperfeiçoou a referida norma, visto que proibiu a negociação de valores mobiliários por controladores, administradores, membros do conselho fiscal e pessoas que participem de órgãos que tenham funções técnicas ou consultivas nos momentos que antecedem a divulgação de fatos relevantes, demonstrações financeiras e operações societárias.

Ademais, um ano antes, o insider trading foi tipificado como crime, em razão do artigo 27-D, criado pela Lei nº 10.303, que alterou a Lei de Mercado de Capitais (Lei nº 6.385/76). Neste ponto, é válida a leitura da lição de Fabio Ulhoa Coelho sobre a matéria:

Até a reforma da LCVM de 2001, esse administrador respondia apenas no âmbito civil, indenizando eventuais prejuízos na operação, e no administrativo, perante a CVM. A partir de então, a lei passou a tipificar o uso de informações privilegiadas como crime (LCVM, art. 27-D), atribuindo aos administradores de companhia aberta que descumprem o dever de informar também a responsabilidade penal.61

Diante disso, sobre o trabalho da CVM no combate ao insider trading, traz-se à baila um estudo desenvolvido pelo Núcleo de Estudos em Mercados e Investimentos da Fundação Getúlio Vargas (Direito – SP), coordenado pela professora Viviane Muller Prado e executado pelo pesquisador Renato Vilela.62

59 Extraído de: <http://www.bcb.gov.br/pre/normativos/res/1968/pdf/res_0088_v1_O.pdf>, acesso em

07.03.2015, às 10h16min.

60 Extraído de: <http://www.cvm.gov.br/legislacao/inst/inst031.html>, acesso em 07.03.2015, às

10h23min.

61 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 2: direito de empresa / Fábio Ulhoa

Coelho. – 11. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 251.

74 Segundo os números levantados, de 2002 a 2013, a CVM julgou 677 processos administrativos sancionadores, dos quais 34 se referem à prática de insider trading, ou seja, 5% do total. Isso representa uma média de 3 (três) casos por ano.

O estudo aponta que, nesse período, 171 pessoas foram investigadas por uso de informação privilegiada. Para tornar a apuração dos fatos mais didática, o perfil dos indiciados foi dividido em três categorias, a saber:

i) interna – com 45 investigados, agrupa as pessoas com vínculo direto e permanente com a sociedade anônima emissora dos papeis negociados com o uso de informação privilegiada (acionistas, administradores e funcionários);

ii) externa – composta por profissionais e instituições sem vínculo direto com a companhia, mas que realizam tarefas relacionadas às operações ou negócios que criam a informação privilegiada (advogados e consultores), soma 12 investigados;

iii) mercado – é a classe mais volumosa, com 114 denunciados, e reúne as figuras que, de certa maneira, alcançam e se aproveitam ilicitamente da informação privilegiada, como investidores da bolsa ou corretoras de valores.

Em relação ao resultado das investigações (de 2002-2013), a pesquisa informa que o menor percentual de condenações está na categoria mercado, com apenas 20,17%, conforme adiante esmiuçado:

Indiciados Absolvidos Condenados

Investidores 40 36 4

Corretoras de valores/Funcionários 38 33 5

Ex-administradores 5 1 4

Bancos e funcionários 5 5 0

Fundos/Pessoas que o administram 19 12 7

Familiares 7 4 3 Total 114 91 23 <http://media.wix.com/ugd/66710c_e1b69e3f3f6843b092456f8551464531.pdf>, acesso em 07.03.2015, às 10h45min. <http://media.wix.com/ugd/66710c_e2e52cc4189a4372998d723589c0966d.pdf>, acesso em 07.03.2015, às 10h55min.

75 Por outro lado, em relação às outras categorias, nota-se um percentual maior de condenações, no período de 2002 a 2013, de acordo com os números abaixo:

Categoria Interno (26,66% de condenações)

Indiciados Absolvidos Condenados

Acionistas da Emissora 10 9 1

Administradores 30 19 11

Funcionários 5 5 0

Total 45 33 12

Categoria Externo (25% de condenações)

Banco da operação 3 3 0

Consultoria 5 4 1

Assessoria Jurídica 4 2 2

Total 12 9 3

Portanto, resta evidente que, ao longo dos anos, o ordenamento jurídico brasileiro reforçou seus mecanismos de combate ao insider trading, pois foram criados vários instrumentos normativos para tentar coibir tal prática ilícita, a fim de garantir maior segurança e credibilidade ao mercado de capitais praticado no país, o que pode ser constatado pelos números acima apontados.

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