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A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA NO E STADO DE D IREITO BURGUÊS SOB

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A GÊNESE FILOSÓFICA DA EXPRESSÃO

2.2. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA NO E STADO DE D IREITO BURGUÊS SOB

Os cafés, salões e comunidades de comensais, ainda que diferentes entre si, apresentam, segundo Habermas, três critérios institucionais comuns às discussões ali realizadas: i) uma sociabilidade eficaz para instar, ao menos na prática comunicativa, uma espécie de igualdade de status entre os convivas (palestrantes, ouvintes e espectadores), reivindicando (objetivamente) uma simetria por se apresentarem todos sob a condição não de intelectuais ou leigos, mas de “meramente humanos”; ii) a universalização das questões, possibilitando a problematização de qualquer assunto levado à discussão, inclusive obras intelectuais e culturais, agora acessíveis nesses espaços, tal qual mercadorias63; e iii) o não-fechamento do público, que passa a se apropriar dos objetos em discussão, podendo desta efetivamente participar.

O público dos cafés transforma os artigos de jornais em objeto de conversações e, na via inversa, fazem de si próprios fonte de crítica e informação, quando suas cartas são publicadas nos jornais, na seção dedicada à opinião dos leitores. O assunto discutido transporta-se para o papel e, de sua leitura, reingressa na conversação.

Nesse contexto, em que o público que lê e discute também tem a si como tema, surge a figura dos hebdomadários moralistas, articulistas que tratam de questões relacionadas ao auto-entendimento como se aspirassem ao recorte da realidade para submetê-lo à lupa da reflexão. Num processo de “continuidade supratemporal do processo de iluminação recíproca”, os artigos trazem temas diversificados que são

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Nas primeiras décadas do séc. XVIII, com a substituição do mecenas, enquanto contratante do escritor, pela figura do editor, voltado ao interesse do público, a distribuição de obras no mercado se diversifica e também auxilia na universalização das questões. Num momento em que qualquer um pode reivindicar competência para discutir arte, o “gosto” refletido no julgamento de leigos dá contorno à instância crítica dos amateurs éclairés que, na condição de “entendidos”, apóiam-se na autoridade do argumento para conduzir a conversação crítica como mandatários ou pedagogos do grande público; enquanto “árbitros de arte”, os pareceres por ele emitidos “só valem enquanto não contraditos”. Habermas cita, como exemplo, revistas alemãs da época, especializadas em “conversação argumentativa” para a confecção de críticas teatrais e literárias; muitas das resenhas constituíam verdadeiros informes publicitários (HABERMAS,

continuamente revisitados, como um espelho que insiste em convidar o público para a reflexão crítica de si64.

Pela perspectiva da argumentação literária, “em que a subjetividade oriunda da intimidade pequeno-familiar se comunica consigo mesma para se entender a si própria”, emerge no interior das variadas plataformas de discussão uma esfera pública política, que tem como tarefa “a regulamentação da sociedade civil (por oposição à res pública)”65.

Enfrentar a autoridade monárquica, contudo, alberga aspectos polêmicos. Pelo aparato estatal, o príncipe afirma sua soberania valendo-se apenas do arbítrio, mantendo em segredo as práticas imperiais para assegurar sua dominação sobre o povo, que é considerado imaturo. Já de acordo com a esfera pública institucionalizada, o contraponto à autoridade arbitrária estaria na autoridade legitimada em leis gerais e abstratas:

À “lei”, essência das normas gerais, abstratas e permanente, à cuja mera aplicação se pretende que a dominação seja reduzida, é inerente uma racionalidade em que o correto converge com o justo.66

Nesse ponto, “uma opinião pública nascida da força do melhor argumento” requer o reconhecimento de que exerce sua racionalidade de forma pretensamente moral, para conjuminar o certo com o correto, e extrair dessa racionalidade o critério material das leis:

Por isso, “leis” que ela agora gostaria que também fossem válidas para a esfera social, precisam assegurar-se, além dos critérios formais de generalidade e abstrações, também a racionalidade como um critério material. Só nesse sentido, explicam os fisiocratas, é que a opinion publique reconhece e torna visível a ordre naturel, para que o monarca esclarecido possa, então, fazer dela, configurada em normas gerais, a base de sua ação – a soberania deve ser, por esse caminho, levada a convergir com a razão”.67

A justificação da obediência à regulamentação adota como critério de legitimidade a vocalização da opinião racionalizada no âmbito da esfera pública burguesa, pretensamente neutra em relação ao exercício político do poder, do qual, desde então e até os dias de hoje, foi possível antever sua face jânica:

64 Ibidem, p. 56. 65 Ibidem, p. 68-69. 66 Ibidem, p. 71. 67 Ibidem, p. 72.

De um lado, temos o poder puramente fático, tornado efetivo pelo fato da força, sem qualquer justificação ético-normativa; de outro, o poder legítimo ou aspirante à legitimação. O desafio suscitado pela legitimidade das ordens de domínio surge precisamente da dicotomia entre a possibilidade do poder prevalecer em face do uso exclusivo da coerção em um dado grupo social, e a sua aptidão de lograr reconhecimento e adesão através de critérios axiológicos de justificação.68

A busca por um consenso legitimador junto à opinião pública e pela via racional-laica pretendeu tornar especialmente relevantes os critérios de generalidade e abstração. Se as leis têm validade geral, garante-se a individuação; se objetivas, permitem o desenvolvimento da subjetividade; em sendo abstratas, possibilitam sua subjugação a qualquer caso concreto de forma equitativa e igualitária. A conjuminação da vontade para aceitação de critérios axiológicos, do que é certo e correto, não poderia ser feita sem uma racionalidade moral pretensiosa69.

Como visto, ao defender o postulado da publicidade, Kant visou, na garantia do uso público da razão, a interface possível entre política e moral pela legitimação da esfera pública como tribunal em que ocorre a aceitação e o reconhecimento das leis como leis universais e racionais70.

Para o filósofo, depreender dessa esfera a competência legislativa e a legitimidade advinda da opinião pública, excluindo da discussão os não-proprietários, não violaria o princípio da publicidade, pois a esses estaria reservada a condição de cidadãos passivos71, o que não os impedia de alcançar uma cidadania ativa, com o devido talento, esforço e alguma sorte.

Na filosofia kantiana, os pressupostos sociais “se estabeleceriam por si como a base natural do Estado de Direito e de uma esfera pública capaz de funcionar politicamente”, externando sua crença em uma justiça imanente ao livre-intercâmbio de mercadorias (laissez-faire) num processo em que seria possível a equiparação entre bourgeois e homme, “dos proprietários privados pura e simplesmente interessados com indivíduos autônomos”. Os cidadãos, esclarecidos que eram, atingiriam o interesse geral quando buscassem concretizar, pelo uso público da razão, o progresso de todos na constância do dever moral de sua existência.

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DINIZ, Op.Cit., p. 52-53.

69 HABERMAS, MEEP, p. 72. 70 Ibidem, p. 132.

71 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010.

Kant ingenuamente atribui ao público a capacidade do “iluminismo continuado”, garantido pela publicidade, e que certa ordem natural e espontânea, de viés cosmopolita, colocaria a salvo as reivindicações sócio-políticas justas, baseadas na autonomia privada das relações albergadas em uma esfera pública burguesa, elevada agora a princípio de organização do Estado liberal de Direito. As considerações históricas feitas a respeito dessa utópica legitimidade não desmerecem o pensamento de Kant. Ainda que Habermas identifique certo déficit conceitual da filosofia política kantiana, não há como afastar a grandiosa guinada conceitual de representatividade pública para o conceito de publicidade, entendida a serviço da representatividade volitiva de um público e, não menos importante, porque alçada a princípio de ordenação jurídica a estabilizar o exercício do poder.72

Caso a consciência moral articulada na discussão crítica delineasse uma esfera pública efetivamente acessível à pessoa de todos os concernidos, restaria possível, enfim, a formação pública da vontade coletiva, de forma verdadeira e justa, algo que, se não fosse apenas uma ficção denunciada por Hegel, se condensaria na opinião pública por excelência.