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A PONTAMENTOS ACERCA DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA JUNTO À OPINIÃO PÚBLICA

4. A OPINIÃO PÚBLICA DIANTE DO CONCEITO DE JUSTIÇA

4.4. A PONTAMENTOS ACERCA DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA JUNTO À OPINIÃO PÚBLICA

“A opinião pública clama por justiça!” A exclamativa é comum nos veículos de mídia, normalmente para destacar algum assunto de grave comoção. O apelo aclamativo foca uma cognição do termo ligada a orientações de valor, mas que se diferencia das meras preferências por meio de uma qualidade obrigatória, dando contornos a uma compreensão intuitiva de justiça:

A consciência reflexiva daquilo que, considerado como um todo, é “bom” para mim “ou para nós” ou que é “determinante” para o meu (ou o nosso) modo consciente de levar a vida torna possível (na tradição de Aristóteles ou de Kierkegaard) uma espécie de acesso cognitivo às orientações de valor. Aquilo que, em cada caso, é valioso ou autêntico impõe-se-nos, em certa medida, e diferencia-se das meras preferências por meio de uma qualidade obrigatória, que remete para além da subjetividade das necessidades e das preferências145.

Na visão ético-existencial, a compreensão intuitiva de justiça é, de certa forma, revista. A partir da perspectiva de uma concepção própria e individual do bem, de um projeto de vida pessoal, a justiça adaptada às relações interpessoais apresenta-se como um valor que pode ser ponderado em relação a outros valores e preferências, e não como escala de medida para julgamentos imparciais, independente dos contextos.

Não menos comum é a idéia de justiça transferida para a figura da autoridade, vinculada às instituições coercitivas (judiciário, polícia): sua força de contingência é assimilada sem esforços pelo mundo da vida, circunscrita às certezas intuitivas que se

144 HABERMAS, FV, p. 113, v. I. 145

entendem inquestionavelmente por si mesmas146. Seu sentido é culturalmente transmitido, e seu poder, habitualmente exercitado instrumentalmente.

Os conteúdos normativos de validade autoritária, por exemplo, exercem certo fascínio pelo poder vingador, quase mítico. A validade se vê revestida do próprio factual a partir de uma certa familiaridade – ou, não raramente, por condições arbitrariamente impostas147.

Há, nesse particular, uma estabilização de expectativas alimentadas por certezas que retroalimentam o mecanismo social estabilizador, neutralizando qualquer ponto de vista argumentativo, seja pragmático, ético ou moral. Nessa esfera pública, apesar de ocorrerem relações linguisticamente mediadas, nada é tematizado, tampouco questionado, apenas aceito:

Na medida em que se freia a mobilização comunicativa de argumentos, provocando automaticamente o silenciamento da crítica, as normas e valores autoritários passam a formar para os que agem comunicativamente um leque de dados que permanece subtraído à corrente de problematização de entendimento. A integração social, que se realiza através de normas, valores e entendimento, só passa a ser inteiramente tarefa dos que agem comunicativamente na medida em que normas e valores forem diluídos comunicativamente e expostos ao jogo livre de argumentos mobilizadores, e na medida em que levarmos em conta a diferença categorial entre aceitabilidade e simples aceitação.148

A aceitação do direito como instrumentário da estabilização de expectativas de comportamento encontra guarida inclusive na própria sociologia, derivada da intervenção prescritivista e racionalista das teorias contratualistas clássicas. Por essa via, o direito se especializa na generalização temporal, social e objetiva das expectativas, “permitindo uma solução de conflitos contingentes, de acordo com o seguinte código binário: lícito, ilícito”149.

146 HABERMAS, FV, p. 58, v. I. 147

Habermas cita Durkheim, também para ilustrar o fascínio despertado pelas instituições detentoras de poder, a partir da generalização de modos de agir institucionalizados, aos quais todos devem se conformar para que o risco de dissenso seja interceptado na própria dimensão da validade. Aqui também não há que se falar em tensão entre facticidade (compreendida na coação de sanções exteriores) e validade (presente na força ligadora de convicções racionalmente motivadas) HABERMAS, FV, p. 42-45, v. I.

148

HABERMAS, FV, p. 58-59, vol. I. Habermas deixa claro que tal situação de silenciamento da crítica ocorre na socialização comunicativa em geral, mas ressalta que mesmo no âmbito da validade jurídica, em que se contrapõem positividade e pretensão à legitimidade do direito, são verificáveis os mesmos momentos de circunscrição e não-circunscrição do mecanismo comunicativo.

149

O próprio sistema jurídico enfeixa um circuito deontológico fechado de comunicação e passa a se delimitar auto-referencialmente. De modo autônomo, constitui e reproduz os atos jurídicos; internalizado em si mesmo, só é acessível ao mundo exterior através de observações. A autocompreensão do sistema jurídico não é “normativa”, ela é meramente cognitiva, pois aqui são deixados de lado aspectos da normatividade nos quais se antevêem a validade do direito, reduzido à função de aplicação jurídica150.

Retornando à idéia de aceitação, que fundamenta os fatos (verdade), e de aceitabilidade, exigível por pretensões propositivas (validade), pode-se, ainda, tentar extrair a concepção de justiça de normas justas que responderiam à pergunta: “Como é possível a ordem social?”

O simples questionamento descortina, ainda que timidamente, a tendência à argumentação. Mas aqui, de novo e não raras vezes, a força produtiva de uma opinião sobre normas justas perde-se diante da positividade instrumental do direito que, pela coerção juridicamente legitimada na figura do Estado, garante um nível médio de aceitação da regra, estabilizando artificialmente as relações sociais. Tal positividade reveste-se da própria aceitabilidade.

Por isso, do emprego autoritativo do direito, já previamente legitimado, deriva- se a força fática da validade, que nela se funde151. Não é por menos que seja bastante cultivada, junto à esfera pública, a opinião de que a perpetuação de um ordenamento estável demanda normas com pretensões de validez obrigatória, concretizadas na racionalidade de acordo com os fins152, substituindo a “autoconsciência moral irrefletida dos participantes por um cálculo de benefícios, feito a partir da perspectiva do observador”153.

Tal ordenação utilitarista converge para interações estratégicas, que desconsideram as irrupções vindas do mundo da vida; apesar de tê-lo como pano de fundo, sua neutralização é inevitável. A coordenação da ação voltada para fins concebe os participantes da interação apenas como fatos sociais154.

150 Ibidem, p. 74.

151 Ibidem, p. 60-61. 152

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. (Biblioteca Tempo Universitário, 90 – Série Estudos Alemães), p. 83. Doravante PPM.

153 HABERMAS, IO, p. 14. 154

Referida ordem instrumental, de viés hobbesiano, encontra uma modalidade mais promissora nas interações existentes nas ciências da economia e da organização, cujas atividades são orientadas pela racionalidade relacionada aos meios, de caráter funcional para a conservação do sistema, entendido este na forma descrita por Parsons155. Como exemplo, podemos citar o sistema econômico, que tem no dinheiro, no lugar da linguagem, seu código de comportamento e seu mecanismo de integração social.

Há outra hipótese um pouco mais dinâmica de vislumbrar a justiça dentro de certa ordem social: a partir da regulamentação normativa das interações estratégicas. Habermas identifica aqui uma maior preocupação, ainda que formal, com o entendimento, uma vez que nesse ordenamento “os próprios atores se entendem.”. Na prática, é forte a tendência desse tipo de ordenamento demandar uma coordenação da ação aberta não a enfoques meramente objetivadores, mas performativos, em que a obediência às normas busque sua justificação normativa pelas partes em litígio, dando contornos a uma facticidade social que não mais mantém uma relação interna com a pretendida legitimidade da ordem jurídica156.

Em outra passagem, podemos observar que dependendo de como são direcionados os mecanismos de coordenação da ação, se para a dissolução de conflitos interpessoais ou para a persecução de objetivos ou programas coletivos, os caminhos percorridos podem conduzir à arbitragem do litígio, para a estabilização de expectativas de comportamento, ou para a formação coletiva da vontade, referindo-se esta à escolha e realização efetiva de fins capazes de consenso.157